Com filmes indicados no Oscar 2021, a dupla cinema e jazz é uma tradição histórica no entretenimento

Esta expressão musical genuinamente negra presenteou o audiovisual com muito ritmo, classe e histórias comoventes em torno das estrelas por detrás deste gênero musical

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Quase 50 anos depois da cinebiografia
Legenda: Quase 50 anos depois da cinebiografia "O Ocaso de uma Estrela", o legado de Billie Holiday (1919-1959) volta às telonas com a interpretação da cantora Andra Day em "The United States vs. Billie Holiday"

As produções “Soul” (Disney+), “A Voz Suprema do Blues” (Netflix) e  "The United States vs. Billie Holiday" (Hulu) figuram entre as produções indicadas ao Oscar 2021. Estas obras reafirmam a relação quase centenária entre jazz e o cinema.

Filmes baseados neste gênero sonoro garantiram os principais prêmios da Academia em edições passadas. Tal tradição, agora, segue estabelecida de vez na era do “streaming”. Outro frescor adicional, os filmes citados envolvem protagonistas, diretores, produtores, músicos e elencos majoritariamente negros.   

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A sincronia destas duas expressões artísticas é gritante, ainda mais quando se repercute o fato do primeiro trabalho sonorizado ser justamente “O Cantor de Jazz” (1927). Em determinado trecho da pioneira obra, o ator Al Jolson (1886-1950) profetiza: “Você ainda não ouviu nada!”. Outrora astro da Broadway, o lituano estava certo.  

Autor de “Jazz in the Movies”, David Meeker disponibilizou versão online e atualizada desta obra na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. No artigo “Jazz on the Screen”, adentramos os serviços de um aficionado em recuperar informações acerca das peças audiovisuais irmanadas com este gênero sonoro.  

O especialista assevera que as histórias culturais, sociológicas e técnicas do jazz e da imagem em movimento atuaram em linhas paralelas, às vezes se cruzando. Ambas surgiram no final do século XIX e não foram facilmente aceites enquanto formas legítimas de expressão pessoal ou artística.

"O cinema cresceu nas casas de vaudeville, feiras itinerantes e fliperamas, jazz nas profundezas de Nova Orleans e do Delta do Mississippi". 

A revista acadêmica “African American Review” atua desde 1967. Reúne ensaios sobre literatura afro-americana, teatro, audiovisual, artes visuais e cultura. Nas páginas desta publicação, a pesquisadora Maureen Anderson reservou especial atenção ao preconceito enfrentado pelos músicos de jazz. 

O estudo “The White Reception of Jazz in America” (2004) esmiúça o teor das revistas dedicadas à cobertura musical dessa época.  “De 1917 a 1930, a América branca foi forçada a perceber que uma nova forma de música, o jazz, surgindo nas ondas do rádio e aparecendo em clubes de todo o mundo, estava aqui para ficar”.  

Este caminho, no entanto, era tortuoso. O tratamento editorial destas publicações buscava a todo custo desqualificar esta expressão. As críticas atacavam o jazz como uma “música de selvagens primitivos e rudes, perigoso por encorajar os ouvintes a voltarem aos seus instintos animalescos”. 

Jazz, luz, ação! 

Em contrapartida, mesmo com todas as distorções e preconceitos (o “blackface” em “O Cantor de Jazz” é exemplo notório) realizadores do setor absorveram a musicalidade nas produções Hollywoodianas. Nos desenhos animados e filmes, lendas do calibre de Louis Armstrong (1901-1971), Cab Calloway (1907-1994) e Duke Ellington (1899-1974) tornaram-se presenças familiares nas telonas. 

Cinebiografias dedicadas a ídolos do jazz consolidaram outra vertente explorada à exaustão. Os conflitos internos, a entrega voraz e a relação destrutiva destes artistas propiciaram narrativas impactantes e audaciosas.  

Mais recente contribuição é a do diretor Lee Daniels ("Preciosa" e "Mordomo da Casa Branca"). Ele reconta a aura de Billie Holiday (1915-1959) em "The United States vs. Billie Holiday" (Hulu). Em 1972, Lady Day foi tema da produção com assinatura Motown: “O Ocaso de Uma Estrela”.  Concorreu a cinco indicações. 

Decifrar tais trajetórias rendeu sucessos de audiência como “Música e Lágrimas” (1954), "Bird" (1988) e "Ray” (2004). Em 2015, duas produções com recepção morna da crítica estrearam: "A Vida de Miles Davis" e "Chet Baker: A Lenda do Jazz".

No ano seguinte, “Nina”, de Cynthia Mort, foi envolto na discussão em torno da escalação da atriz Zoe Saldana para encarnar Nina Simone (1933-2003). O fantasma da “blackface” retornava ao debate público.  

Documentários e trilhas premiadas

“Jazz on a Summer's Day” (1959), de Bert Stern (1929–2013), capturou um dia do NewPort Jazz Festival realizado em 1958. A obra reafirma o brilho dos documentários em registrar acontecimentos e propor explorar com profundidade estas biografias. 

Chet Baker (1929-1988) em cena do documentário indicado ao Oscar,
Legenda: Chet Baker (1929-1988) em cena do documentário indicado ao Oscar, "Let's Get Lost" (1988)

"Thelonious Monk: Straight, no Chaser", "Let’s Get Lost" (1988), "A Great Day in Harlem" (1994), "Dave Brubeck: In His Own Sweet Way" (2010), "What Happened, Miss Simone?" (2015) são alguns exemplos. "Calle 54" (2000), de Fernando Trueba (responsável pela animação Oscar & Rira) oferta uma visão particular de nomes do jazz latino.

De Havana ao Bronx, testemunhamos as performances da pianista brasileira Eliane Elias, o sax tenor argentino Gato Barbieri (1932–2016), o pianista Bebo Valdés (1918-2013) e Tito Puente (1923-2003).

Uma seleção das trilhas sonoras de destaque na sétima arte: 

Legenda: Elmer Bernstein: "O Homem do Braço de Ouro” (1956)
Legenda: Miles Davis: "Ascensor para o Cadafalso" (1958)
Legenda: Duke Ellington: “Anatomia de um Crime” (1959)
Legenda: Martial Solal: "Acossado" (1960)
Legenda: Nino Rota: "La Dolce Vita" (1960)
Legenda: Dizzy Gillespie "The Cool World" (1963)
Legenda: Quincy Jones "A Sangue Frio" (1967)
Legenda: Vince Guaraldi: "O Natal do Charlie Brown" (1965)
Legenda: Lalo Schifrin - "Bullitt" (1968)
Legenda: David Shire: "O Último dos Valentões" (1975)
Legenda: Bernard Herrmann: Taxi Driver (1976)
Legenda: Vários artistas: “Por Volta da Meia-Noite" (1986)
Legenda: Terence Blanchard e Branford Marsalis Quartet: "Mais e Melhores Blues" (1990)
Legenda: Howard Shore e Ornette Coleman: "Mistérios e Paixões" (1991)
Legenda: Vários Artistas: Chico & Rita (2010)

Compositores como Elmer Bernstein (1922-2004) investiram na liberdade da instrumentação. Não raro, os próprios cineastas se cercaram de astros do meio. Duke Ellington, Miles Davis (1926-1991),  Dizzy Gillespie (1917-1993) e Herbie Hancock são alguns artistas que escreveram trilhas originais.

Mesmo quando o jazz perdeu território a ind´sutrpara outras vertentes sonoras (caso do rock) na indústria, produções cinematográficas utilizaram o gênero na recriação de atmosferas. Casos de Henry Mancini (1924-1994), Lalo Schifrin e do midas Quincy Jones.  

Olhar contemporâneo

Em 1987, o produtor Michael Cuscuna teceu ácida observação em torno da filmografia jazzística até então. Conhecido pelo trabalho à frente da Blue Note Records, sua crítica ao tema consta na sobrecapa do disco "The Other Side of Round Midnight".

"As frustradas ocasiões em que a indústria cinematográfica resolveu ocupar-se com a vida do jazz resultaram em baboseira melodramática ou em racismo negro. As chances para uma fita acurada e sensível sobre jazz eram nulas. Mas ainda assim aconteceu".

Cuscuna evidenciava o merecido reconhecimento de "Por Volta da Meia-Noite" (1986). O filme de Bertrand Tavernier concorreu por "Melhor Ator" (Dexter Gordon) e "Trilha Sonora Original", vencendo neste último. 

Forest Whitaker encarnou o saxofonista Charlie Parker em
Legenda: Forest Whitaker encarnou o saxofonista Charlie Parker em "Bird". Trabalho levou Oscar de "Melhor Som" em 1989
Foto: Forest Whitaker encarnou o saxofonista Charlie Parker em "Bird". Trabalho levou Oscar de "Melhor Som" em 1989

Outras personalidades por detrás da câmera beberam do jazz enquanto assinatura e até influência no modo de contar uma história. Woody Allen e Clint Eastwood estão entre estes realizadores mais populares. Spike Lee entregou sua colaboração mais próxima do jazz em "Mais e Melhores Blues" (1990).

Da nova safra, quem aparenta nutrir o mesmo pendor (sem a mesma desenvoltura) é Damien Chazelle. Dois trabalhos do jovem diretor brilharam em premiações recentes do Oscar. É dele "Whiplash: Em Busca da Perfeição" (2014) e "La La Land: Cantando Estações" (2016). 

'Soul' na disputa 

No debate contemporâneo da representatividade negra na sétima arte, "Soul" segue junto a outras produções guiadas por cineastas afro-americanos. "Amor de Sylvie" é escrito e dirigido por Eugene Ashe. Narra as escolhas de uma balconista de loja de discos (Tessa Thompson) apaixonada por um saxofonista (Nnamdi Asomugha). 

Chadwick Boseman e Viola Davis em 'A Voz Suprema do Blues'
Legenda: Chadwick Boseman é um dos destaques em 'A Voz Suprema do Blues'
Foto: divulgação

Dessa leva, "A Voz Suprema do Blues" (2020) é peça significativa por adentrar a dura realidade dos músicos de jazz nos anos 1920. Temos um cenário de exploração por parte das gravadoras. Viola Davis é pura explosão na pele da cantora Ma Rainey (1886-1939) e não está só na excelência de atuação. Temos Chadwick Boseman (1976-2020) em sua última contribuição com o cinema.

Com produção de Denzel Washington, a trilha é do saxofonista Branford Marsalis. Em "Soul", a Pixar trouxe o pianista Jon Batiste para o cargo de diretor musical. Dentre os méritos da obra, certamente estão as cenas da banda nos clubes, capazes de passar uma verdadeira sensação de autenticidade. Mesmo não sendo tema principal da animação, o jazz ecoa enquanto metáfora à vida. Nada mais comovente.