Um bar raiz com 65 anos: Vitória Bar, no Centro de Fortaleza, é patrimônio da boemia cearense

Um dos mais antigos bares de Fortaleza em funcionamento. Conheça o Vitória Bar, que acolhe uma clientela diversa: do estivador ao juiz, das garrafadas de cachaça às talagada de vinho

Esta é a primeira da série de matérias Conversa de Bar, que conta histórias da capital cearense pelas mesas da boemia

Passava das 15h quando a trilha sonora do Vitória Bar, até então seguida de sucessos noventistas de Raça Negra e Leandro & Leonardo ganhou o vozeirão de Nelson Gonçalves (1919-1998). "Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele faz doer em mim" irrompeu das caixas de som.

Em junho deste ano, o estabelecimento completou a poética marca de 65 anos de existência. O número 135 da Rua General Bezzeril sobrevive enquanto pedaço vivo da memória boêmia de Fortaleza. Escrita pelo jornalista Sérgio Bittencourt (1941-1979) para homenagear o pai, Jacob do Bandolim (1918-1969), aquela letra ganhava uma profundidade nunca percebida até então.

A música percorre as paredes do estabelecimento e noto o semblante comovido de Gildo Nogueira, um dos proprietários da tradicional casa. Calhou da música tocar no momento em que o comerciante situava a falta que o pai fazia. Seu Nogueira foi o homem responsável por erguer o Vitória Bar. Infelizmente, em maio de 2020, o criador deste universo foi vitimado pela Covid-19.

A estrutura e decoração é capaz de te levar a outra era. Todos os detalhes de mobília e disposição dos produtos preservam o ambiente construído ao longo destas seis décadas. "Já chegaram para mim com a ideia de reformar. Garanti a ele não mexer em nada, deixar do jeitinho que o bar sempre foi", certificou o filho.

Com a rotina fixa das 8h às 17h, entre terça e sábado (domingo a depender da necessidade), o bar mantém a missão de servir o fiel público. Muitos frequentadores tornaram-se amigos da família. Do apurado propiciado pelo bar, Seu Nogueira criou os oito filhos e escreveu uma história única na capital em torno do ramo etílico.

Origens do bar

Estamos na Fortaleza do final dos anos 1950. Segundo Gildo, o pai cresceu e se criou para os lados do Campo do Pio, território fincado hoje no bairro Otávio Bonfim. O futuro dono de bar chegou a jogar futebol amador com a equipe do Leão XIII e a vida de trabalho iniciou em uma mercearia de cereais localizada na Rua General Bezerril. Nem tinha casado ainda. 

O estabelecimento pertencia ao Senhor Aldenor Colares. Certo dia, o jovem empregado descobriu que o ponto vizinho à mercearia estava desocupado. Com o apoio financeiro do patrão, Nogueira conseguiu adquirir a chave do bar. A estrutura inicial era minguada. Tinha só umas caixinhas de cerveja, cachacinha pouca e aí ele começou a crescer", acrescenta Gildo.

O Vitória alçou voo e com muito suor Nogueira quitou a dívida com Senhor Colares. Continua no mesmo endereço deste então.

Meu pai sempre foi uma pessoa correta. Se você andar aqui na região todo mundo sabe quem foi o Seu Nogueira. Uma pessoa direita, honesta. Tanto que continuamos com isso aqui, né? Temos só nossa casa, não temos patrimônio"
Gildo Nogueira
Bar Vitória

Nessas seis décadas, a casa observou as inúmeras modificações sociais e estrutuais do Centrão. Duas edificações que funcionavam nas redondezas fizeram parte do cotidiano do Vitória. A poucos metros do estabelecimento funcionavam o Fórum Clóvis Beviláqua (transferido para o bairro Edson Queiroz) e o antigo Mercado Central de Fortaleza. 

A oferta e diversidade dos clientes movimentavam o balcão. Frequenta advogado, promotor e juiz. A casa também abria as portas para a turma que pegava pesado no Mercado, descarregando caixas e caixas de produtos. Tinha estivador do antigo porto e a turma que trabalhava na Agência Central dos Correios, situada a poucos metros do ponto comercial.

Até os colegas da imprensa paravam para tomar uma no Vitória. Principamente, em dias quando o Fórum recebia audiências grandes e de forte apelo na sociedade. Hoje, a rotina do empreendimento pode não ser a mesma de décadas passadas, mas a proximidade e paixão dos amigos clientes continuam as mesmas.

O canhoto bom de bola

Gildo começou a trabalhar diretamente com o pai em 1990. Para se ter uma noção da trajetória e longevidade da casa, quando assumiu o cargo, o Vitória já tinha o mesmo tempo de atividade que o atual proprietário hoje ostenta. E o comerciante é gratidão e brilho nos olhos quando relembra os 32 anos de batente.

Trabalhar e cuidar de um dos bares mais tradicionais da capital nem sempre esteve nos planos do filho de Seu Nogueira. Das coisas do destino, Gildo precisou interromper precocemente a carreira como jogador de futebol. Os gramados perderam o meia esquerdo habilidoso, mas os cearenses ganharam a certeza de que o Vitória Bar continua em boas mãos.

O familiar à frente do Vitória foi cria das categorias de base do Tiradentes. Atuou três anos no juvenil do Tigre da PM, chegando a jogar por duas temporadas na seleção cearense juvenil. Como profissional, atuou pelo glorioso Calouros do Ar na primeira divisão do Campeonato Cearense de Futebol.

Um dos momentos memoráveis da curta carreira aconteceu em julho de 1988, durante partida contra o América, realizada no Estádio Presidente Vargas. Tá achando que o relato é groselha? Conseguimos matéria e ficha técnica do confronto nos arquivos do Diário do Nordeste.

O Tremendão da Aerolândia abriu o placar aos 18 minutos, após Maninho aproveitar descuido da defesa adversária. Com a vantagem, o time passou a pressionar e aos 29, em cobrança de falta, Gildo ampliou o marcador. O América correu atrás do prejuízo e empatou com gols de Malafaia (ainda aos 40 da etapa inicial) e Zezé, aos 12 do segundo tempo.

Como ainda tinha contrato com o clube, retornou ao Tiradentes. E foi defendendo as cores do Tigre que Gildo sofreu a lesão que o tirou dos gramados. Detalhe, o acidente de trabalho aconteceu durante treino para um jogo contra o Ceará Sporting Club. É como nos contam os versos do famoso samba. "Reconhece a guerra e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima".

"Tive a infelicidade na altura dos 20 anos. O cara me deu uma pancada muito violenta, precisei fazer 10 cirurgias no joelho. Como só sabia jogar bola, disse a mim mesmo: 'Vou agora ajudar meu pai no bar dele'. E foi o que deu mais certo. Estou aqui há 32 anos e espero mais uns 32. Viu, menino ?!".

Uma tarde de Vitória

Logo após este depoimento, o irmão Francisco Carlos retorna do almoço. Óculos de lentes espelhadas, estilo Tom Cruise naquele filme famoso de avião. Ainda jovem chegou a ajudar Seu Nogueira no Vitória. "Não era a minha naquele momento", destacou Carlos, que preferiu seguir outros rumos.

Chegou a estudar Engenharia de Alimentos pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Porém, não era fácil conciliar a rotina de manter uma vaga na Federal e trabalhar simultaneamente. Após deixar o curso, Carlos atuou por áreas diversas, foi de bancário à segurança de shopping.

Dos tempos de adolescente, quando ajudava no Vitória, a lembrança principal advém da forma como o pai tocava os negócios. Era rígido na condução da seguinte regra. Não gostava de dever um centavo a ninguém e o mesmo valia para quem consumisse em seu bar.

"Algumas vezes vinham uns figuras que bebiam e não gostavam de pagar. Complicava quando era policial, o cara armado. Eu tinha medo. Já aconteceu de sujeito sair sem pagar e eu falar pro pai que estava tudo certo. Era para evitar confusão", descreve Francisco Carlos. 

Nesse quesito, adiantam os herdeiros, o Vitória é motivo de orgulho e dos maiores. Brigas ou incidentes desta natureza podem ser contados nos dedos. Muito dessa sinergia advém da paixão com a qual Seu Nogueira tocava o empreendimento. Os detalhes falam sozinhos. Nada de faltar mercadoria na prateleira, era um dos segredos do proprietário.

Amigos e família 

Em certa altura, um cidadão encosta suavemente a bicicleta em uma das colunas da entrada. Como diria Nelson Rodrigues, o cenário marcava aquele calor de "rachar catedrais" e estávamos há poucos metros da Metropolitana de Fortaleza. O solzão loucura atacando o juízo e o frequentador pede.... "Bota um vinhozinho".

Gildo balança o garrafão e pontua que o vinho é dos bons, nada desses vendidos no mercado com corante e álcool. A fera escuta e mensagem com atenção e solicita outro copo geladinho. "Bota a segunda aí que eu vou pegar agora a estrada", anunciou. 

"Esse é o Baiano", apresenta Gildo. E o cliente comenta a saudade que Seu Nogueira deixa na casa. Ele fez questão de encomendar três ampolas 600 ml de cerva. A cada meia hora, retornava para o devido reabastecimento do isopor. A tarde da quinta-feira prossegue e o caráter comunitário do Vitória e nos permite notar a relação amistosa entre as pessoas do comércio local.

Muito aproveitam o horário de almoço para "abrir o apetite". Circulam, dividem as agruras da vida. Muitos frequentadores foram convidados para o aniversário de 90 anos de Seu Nogueira. Um deles  (que pediu para não ser identificado) comprovou a informação. Ele recupera arquivos do celular e exibe as fotos. "Olha, estive lá. Estou aqui com ele nessa", aponta para o estimado aniversariante.

No expositor de vidro estão gomos de laranja meticulosamente cortadinhos. Pequenas fatias de abacaxi marcam presença também. Palitinhos de dente espalhados certificam que o mecanismo do tira-gosto funcione a pleno vapor. "Ei, Gildo? Comentou dos remédios que tem aqui", tascou Nonato, assíduo há 25 anos no Vitória. 

Os elementos medicinais da casa incluem cerca de cinco garrafadas repletas de ervas.  "Quando a pessoa tá com algum sintoma, me diz o que está passando que eu faço. Não paga nem a consulta, só o remédio", diverte-se Gildo.

Por conta do caráter curativo, os herdeiros separam as garrafas por debaixo do balcão. Tem eucalipto, marcela, jatobá, casca de laranja, canela. De cansaço a dor de garganta, inúmeros são os males que estas iguarias etílicas prometem amenizar.

O fim de tarde reluz no horizonte da General Bezerril. Outra batalha na prolífica existência do bar foi escrita naquela quinta-feira. Já longe percebo as portas do bar descendo. A ausência de Seu Nogueira é sentida, mas essa saudade é afagada pela certeza que amanhã será outro dia de luta no Vitória. Penso em Seu Domício, Tio Raimundo e nos muitos outros pais que morreram em uma tragédia que poderia ter sido evitada. Um brinde onde estiverem.