Junho de 2013: como as manifestações que sacudiram o Brasil repercutiram em Fortaleza
A capital cearense registrou um dos maiores protestos do País, no mesmo período em que acontecia a Copa das Confederações
"Copa para quem?", "Mais Pão, Menos Circo", "Queremos hospitais padrão Fifa", "Abaixo a PEC 37" e "Ei, fardado, você também é explorado": há 10 anos, essas eram algumas das palavras de ordem que estampavam cartazes e ecoavam em gritos de manifestantes durante protestos em Fortaleza, que ocorriam em meio a Copa das Confederações de junho de 2013. Uma das cidades-sede do evento, a capital cearense foi palco da vitória da Seleção Brasileira sobre o México na fase de grupos e também de violência entre Polícia e militantes.
A onda de protestos que explodia pelo País chegou com intensidade em Fortaleza no dia 19 de junho de 2013, data do jogo do Brasil contra o México na Arena Castelão. Àquela altura, atos que vinham sendo marcados principalmente por movimentos em defesa de moradia digna para as famílias desapropriadas e removidas para a execução de obras da Copa já tinham ganhado outros contornos, sendo agendados de forma "independente" em eventos do Facebook.
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Milhares de pessoas se amontoaram no entorno da Arena Castelão, em Fortaleza, para protestar contra gastos da Copa, governos, sistema político, corrupção e pautas do Parlamento Federal. A estimativa de público divulgada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) à época foi de 80 mil pessoas. Já a Polícia Militar informou um público de cerca de 20 mil.
Depois daquele dia, uma sequência de protestos violentos marcou as manifestações na Capital, com depredações, atos de vandalismo e repressão com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Para pessoas que participaram do evento à época, a resposta truculenta da Polícia no Ceará foi "inspirada" no que ocorria em outras cidades do País.
Para o doutor em Ciência política, sociólogo e professor universitário Rodrigo Santaella, que era membro do Comitê Popular da Copa na Capital à época, era como se o Estado Brasileiro quisesse dar uma resposta de que a Copa iria, sim, acontecer. Comitê Populares da Copa foram criados nas cidades-sede do evento para discutir com os governos federal e estaduais a realocação adequada das famílias afetadas pelas intervenções urbanísticas e de mobilidade para o evento. Em Fortaleza, o Comitê era formado por cerca de 20 entidades da sociedade civil.
"A ação da Polícia nessas manifestações foi muito hostil, isso no Brasil inteiro e aqui (em Fortaleza) não foi diferente. Me parece que tinha a ver com uma demarcação do Estado Brasileiro de que a Copa aconteceria, de que não seria tolerado nenhum tipo de problema, justamente para não passar uma imagem ruim para outros países. A Polícia foi muito violenta, de uma forma desproporcional"
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Panorama nacional
Em São Paulo, as manifestações iniciaram no dia 6 de junho de 2013, contra o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus, e já receberam uma resposta violenta da Polícia. Com isso, os atos seguintes tomaram maior corpo e se espalharam pelo País. No dia 17 de junho daquele ano, as manifestações contra o aumento da tarifa do transporte coletivo atingiram o ápice, com maior público e mais violência na Av. Paulista.
Àquela altura, os atos já "não eram só por 20 centavos" e também contestavam investimentos na Copa, cobrando melhorias para educação e saúde, reforma política, entre outros temas que foram refletidos em outras capitais, inclusive Fortaleza.
No mesmo dia 17, manifestantes em Brasília ocuparam a rampa do Congresso Nacional e uma das cúpulas no prédio em protestos que seguiam as mesmas bandeiras dos anteriores.
Para o deputado estadual Renato Roseno (Psol), que participou de atos em Fortaleza e em Brasília à época, havia um sentimento de insatisfação popular que acabou culminando em protestos gigantescos com pautas diferentes, mas que convergiam em relação à insatisfação política — não necessariamente em relação aos mesmos atores políticos.
"Em primeiro lugar, junho de 2013 é um fenômeno social muito complexo. Teve uma parcela de camadas de jovens urbanos que foram às ruas com pautas democratizantes, por melhorias de serviços públicos, reclamação da qualidade do serviço público. Você teve um outro sujeito que eram as pessoas atingidas por obras da Copa, que tinham características muito mais focadas na Copa. E havia certa insatisfação popular. (...) Na época, quem estava no Governo não soube dialogar com essa insatisfação. Qualquer generalização (de junho de 2013) vai ser ruim. Dizer que junho de 2013 foi uma coisa só, não foi, ele foi várias coisas"
Em junho de 2013, Roseno já era filiado ao Psol, mas não tinha mandato eletivo — apesar de ter disputado outras eleições. Ele ressalta que, em Fortaleza, as manifestações tinham cunho progressistas — com pautas que pediam melhorias em políticas sociais e de infraestrutura, comparando os investimentos nos setores com os gastos de obras da Copa, e também com pautas generalistas, como a "contra a corrupção", lideradas por grupos autônomos.
"(As manifestações) tinham um caráter voluntarista muito grande. Era um exercício de se manifestar. Você teve uma geração inteira que foi para uma manifestação pela primeira vez na vida (naquela época). Chamou atenção essa diferenciação do que era a própria política. Tinha gente que já tinha um nível de maturidade política maior, e tinha gente que não, era uma diversidade de sujeitos muito evidente. Junho não tem uma única face. A ciência política brasileira precisa entender junho melhor, não dá para colocar numa caixinha só", frisa.
Tensão em Fortaleza
Na capital cearense, manifestações organizadas pelo Comitê Popular da Copa em Fortaleza, por exemplo, já estavam ocorrendo desde o início de maio. O Comitê foi montado em 2010 para discutir com o Governo a realocação adequada das famílias que seriam afetadas por obras da Copa na Capital. O grupo buscava evitar que famílias que seriam removidas ou desapropriadas fossem realocadas em lugares distantes e sem infraestrutura, a fim de evitar uma espécie de intervenção higienista na Cidade.
Ainda em meio ao imbróglio sobre a situação das famílias afetadas, já em 2013, o Comitê começou a organizar manifestações pela cobrança de moradia digna e melhor infraestrutura nos serviços públicos. Alguns partidos políticos aderiram aos protestos, bem como outros movimentos de estudantes, acadêmicos e demais populares. Em meio a isso, atos paralelos também foram marcados por meio de eventos no Facebook.
Um deles foi o "Mais Pão Menos Circo", marcado para o dia 19 de junho de 2013, com concentração a partir das 10h em frente ao Makro (hoje, Atacadão), na Av. Alberto Craveiro. O jogo da seleção brasileira contra o México estava marcado para iniciar às 16h do mesmo dia.
Membro do Comitê Popular à época, Santaella explica que de fato a manifestação do dia 19 teve uma adesão massiva, que acabou impactando nas transformações das pautas nos atos seguintes. O contraste social também era visto nos interesses defendidos.
"No nosso caso, a gente começou numa luta contra a desapropriação, uma pauta bastante popular e específica. E isso começou a se somar, porque a gente vivia um momento de insatisfação geral do País. O que antes eram atos de moradia popular, por respeito às pessoas, se tornaram atos mais diversos"
Além de cartazes que diziam "Copa para quem?", "O poder emana do povo", "Sem violência", "queremos hospitais padrão Fifa" também havia cartazes com críticas humoradas. "Me chama de Castelão e investe em mim" e "Viemos para a rua, saímos do Facebook" eram algumas das frases. Todavia, "Não à corrupção" e críticas a partidos e políticos também foram entoados.
Confronto
Por volta das 12h do dia 19 de junho de 2013, uma multidão de manifestantes, composta majoritariamente por jovens, caminhava pacificamente pela Av. Alberto Craveiro em direção ao Castelão. Em matéria veiculado no jornal impresso do Diário do Nordeste à época, o repórter Melquíades Júnior relata que a "calmaria" acabou quando os manifestantes se depararam com um bloqueio feito pelo Batalhão de Polícia de Choque (BPChoque). Na ocasião, um grupo pequeno começou a lançar pedras contra os policiais.
Os agentes, então, reagiram com gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha. Tamanha foi a repressão policial que o estoque de munição dos policiais acabou, conforme narrou Melquíades na matéria. Os efeitos do gás lacrimogêneo atingiram moradores da comunidade do entorno do Castelão, dentro de suas próprias casas. A reação da Polícia também gerou revolta nos manifestantes, que lançaram mais pedras e objetos contra os policiais. Um carro da Autarquia Municipal de Trânsito (AMC) de Fortaleza foi incendiado. Outros atos de vandalismo também foram registrados.
Torcedores que chegavam à Arena Castelão precisaram mostrar o ingresso para poder passar. Nas manifestações, palavras de ordem eram entoadas em meio à nuvem de gás. Um dos que estavam no protesto, o cientista político Rodrigo Santaella disse que "lembra muito bem" do dia.
"Você tinha muita gente com problema com bomba de gás lacrimogêneo, com bala de borracha, eu mesmo fui atingido por bala de borracha, eu levei bomba na cara e vários colegas também", relembra sobre a repressão policial.
Já Roseno, que também participou da manifestação à época, descreve o episódio como uma "chuva de gás lacrimogênio e bala de borracha". Dezenas de pessoas ficaram feridas nos atos.
Imprensa atingida
A violência do dia 19 de junho também atingiu a imprensa. O jornalista Alan Barros, que fazia a cobertura para o portal online do Diário do Nordeste, narrou que, por volta das 14h30, um grupo de manifestantes enfrentava a Polícia, que reagia com spray de pimenta, bomba de gás e bala de borracha. Alguns tentaram escapar da confusão pela Rua Pedro Dantas. No meio da cobertura, Alan levou um tiro de bala de borracha nas costas e outro no cotovelo. O repórter-fotográfico Alex Costa, que também fazia a cobertura para o Diário do Nordeste, sofreu com gás lacrimogêneo. Carros de reportagem foram pichados por vândalos infiltrados.
Produtor audiovisual da Nigéria Filmes, Roger Pires estava cobrindo a manifestação de forma independente para fazer um documentário sobre o que ocorria em Fortaleza. Naquele momento, ainda era difícil entender o que estava acontecendo, conforme relata.
"A câmera foi nossa lente para entender o que estava acontecendo. (...) A priori, parecia uma manifestação contra a Copa, mas não foi. Teve um embalo, uma insatisfação, que diversos grupos se reuniram. Tinha o grupo que não gostava da Copa porque era mais um indício de corrupção do Governo e tinha também os que eram contra a Copa porque queriam investimentos sociais. A gente teve também uma repressão policial muito grande"
Sobre o dia 19 de junho de 2013, ele descreve como um "caos" e define o que viu como "cenário de guerra".
"Nem as pessoas que estavam ali imaginavam que a Polícia fosse 'sentar o dedo', e nem a Polícia imaginava que as pessoas fossem reagir. A gente tinha um jogo da Fifa a poucos metros dali", acrescenta.
Roger Pires foi um que sofreu com gás lacrimogêneo. Além disso, ele conta que um dos integrantes do Nigéria levou um tiro de bala de borracha no olho — e só não ficou cego porque estava com óculos de proteção. "A bala atingiu os óculos", explica.
As manifestações em Fortaleza continuaram depois daquele dia, e a repressão policial também. Ainda em junho de 2013, durante a Copa das Confederações, foram registrados atos em frente ao Palácio da Abolição, em frente ao Paço Municipal, à Catedral Metropolitana de Fortaleza, ao redor da Arena Castelão e em outros pontos da Cidade.
Lojistas que ficavam próximos ao Castelão, na Av. Dedé Brasil, tiveram seus estabelecimentos depredados por pequenos grupos de manifestantes que usavam táticas semelhantes a dos "black blocs" — pessoas mascaradas ou com rostos cobertos que usavam de ações de ataques diretos em protestos.
A cobertura das manifestações de junho de 2013 em Fortaleza rendeu ao Nigéria o documentário "Com Vandalismo", que mostra os atos, a violência, os "black blocs" e como alguns manifestantes foram "tachados de vândalos" antes de serem ouvidos. O filme está disponível gratuitamente no Youtube.
Resposta do então governador
Na época, o então governador Cid Gomes disse que os protestos eram louváveis e deveriam ser respeitados. Sobre a "truculência desproporcional" da Polícia Militar relatada por parte dos militantes, Cid afirmou que "bombas de efeito moral" e de "gás de pimenta" foram utilizadas "em casos que tentaram ultrapassar os limites".
Os protestos violentos em Fortaleza repercutiram, inclusive, na imprensa internacional.
O pós-junho de 2013
Após as manifestações históricas de junho de 2013 durante a Copa das Confederações, uma nova série de protestos violentos continuou ocorrendo no País — inclusive, até os dias atuais. Em meio a isso, pesquisadores seguem analisando a dimensão das jornadas de junho de 2013 e divergem, em teorias, sobre como os atos influenciaram o surgimento de novas representações políticas, principalmente ligadas à extrema-direita e ao conservadorismo, e no impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT).
Para o cientista político Cleyton Monte, houve uma "apropriação" por parte de representantes da extrema-direita do discurso de "antipolítica", que esteve muito presente nas manifestações de junho e o qual a centro-esquerda "não soube interpretar muito bem". Cleyton acrescenta que a "semetinha da antipolítica" surgiu naquelas manifestações.
A partir do momento em que eu não aceito que partidos políticos participem, que eu tenho pautas que são praticamente contra todas as intituições, todos os partidos, todos os Governos, isso é antipolítica. Esse discurso de antipolítica, que surge como uma sementinha em 2013, foi apropriado por uma extrema-direita. E aí você tem movimentos liberais, como o Movimento Brasil Livre, anti-PT, que nos anos seguintes vão para as ruas, mobilizam as ruas, fazem o movimento 'Fora, Dilma', catalizam essa insatisação social e, depois, nós vamos ter figuras como o Bolsonaro (Jair Bolsonaro, ex-presidente da República, eleito em 2018), uma bancada mais forte da Bíblia, mais moralista. A esquerda não conseguiu interpretar e responder bem a essas manifestações, tivemos um enfraquecimento desses partidos, principalmente do PT, o que botou mais combustível nessa lógica antipolítica
Na Copa do Mundo de 2014, novas manifestações voltaram a ocorrer, mas principalmente com ataques mais direcionados à então presidente Dilma Rousseff (PT). Os atos foram menores que os de 2013, mas também repercutiram nacional e internacionalmente.
Um dos casos com destaque na mídia nacional, internacional e no cenário político brasileiro foi o de vaias e xingamentos direcionados à presidente Dilma Rousseff no dia abertura da Copa do Mundo de 2014, no estádio Itaquerão (Arena Corinthians), em 12 de junho de 2014. O ano era eleitoral e Dilma polarizava com o então senador mineiro Aécio Neves (PSDB), que saiu candidato à Presidência da República naquela eleição.
Na ocasião, o PT e outros políticos se solidarizaram com Dilma pelos insultos que fugiram do espectro político. À época, o tucano disse que Dilma "estava colhendo o que plantou", mas voltou atrás e disse, por meio de suas redes sociais, que manifestações devem ocorrer no campo político, sem ferir "limites do respeito pessoal". No mesmo, no fim de 2014, Dilma foi reeleita para seu segundo mandato, que não foi terminado porque a então presidente sofreu um impeachment em 2016, acusada de cometer "pedalas fiscais". Em março de 2022, o inquérito para investigá-la pelas supostas pedaladas foi arquivado, por unanimidade, pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) por não ficar comprovada a prática do crime.
Todavia, após o imeachment de Dilma, novas manifestações ocorrerram, e a polarização entre centro-esquerda e extrema-direita aumentou no País.
Ainda hoje pesquisadores avaliam os impactos das manifestações de junho de 2013 para a ascenção de novas representações políticas e o desenrolar do cenário brasileiro nos Três Poderes.
Para o cientista político Rodrigo Santaella, as manifestações de junho de 2013 foram um "sintoma claro" de crise da nova da Nova República.
"Eu não acho que 2013 seja o ovo da serpente do fascismo, como algumas pessoas interpretam, e nem que tenha sido um grande momento da ascenção popular das lutas no Brasil. Na verdade, 2013 foi expressão de um momento em que de fato a crise econômica havia chegado ao Brasil e da muita insatisfação popular. (...) Por outro lado, do ponto de vista mais geral, 2013 foi o primeiro sintoma claro, explícito, de uma profunda crise da nova República Brasileira — essa República que foi formada com a redemocratização em 1988. Essa nova República foi formada num arranjo político e social que entrou em crise profunda, e essa crise se expressou duramente em 2013 e seguiu se expressando depois. O que veio depois de 2013 não foi 'culpa de 2013', das jornadas de junho. Na verdade, foram outras sintomas dessa mesma crise, que, aliás, nós não resolvemos"