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Primeira mulher no TCE Ceará, Soraia Victor relembra falta de banheiro feminino e tentativa de 'tutela' no voto

No Mês da Mulher, o Diário do Nordeste conta um pouco da história da primeira a ocupar uma cadeira de conselheira na Corte de Contas cearense

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Soraia Victor
Legenda: Soraia Victor é conselheira do Tribunal de Contas do Ceará e foi a primeira mulher a assumir o cargo na Corte de Contas
Foto: Kid Jr.

"Tenho impressão que deve ser carma de ser minoria", diz, aos risos, Soraia Victor. Engenheira e advogada, ela foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira de conselheira no Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE) — cargo que exerce há mais de duas décadas. 

A conclusão bem-humorada sobre a vocação ou "experiência de trabalhar como minoria", como define, acontece após quase 30 minutos de conversa com o Diário do Nordeste. Nela, Soraia Victor rememora a trajetória profissional desde o período em que era uma das poucas mulheres a cursar Engenharia Civil na Universidade de Fortaleza (Unifor), há pouco mais de quatro décadas.

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Nas duas primeiras graduações — Engenharia Civil e Ciências Econômicas (que não chegou a finalizar, devido a dificuldade de conciliar vida profissional, maternidade e universidade) — estava na minoria de estudantes mulheres. Realidade similar daquela encontrada no mundo profissional.

"Eu fui diretora do departamento de engenharia da Secretaria da Educação quando não tinha nenhuma mulher", diz. Sob o comando dela, 17 engenheiros homens — que, não é difícil supor, talvez ainda não tivessem sido liderados por uma mulher. "É lógico que eu era testada, é lógico que eu era contestada e tinha que estar sempre provando que eu estava ali porque era competente para estar", recorda.

"Como em vários momentos aqui também, no voto, eu me sinto dessa forma: que eu tenho que provar que também sou competente para estar", diz Soraia Victor sobre o cargo de conselheira de Contas. Ainda entre as graduações, teve uma experiência de equidade quando cursou Direito, onde a quantidade de homens e mulheres era “quase igual”. 

Antes de chegar à Corte de Contas, Soraia Victor ingressou na Secretaria da Fazenda do Estado, por meio de concurso. A experiência em diversos cargos dentro da estrutura do Governo do Ceará, inclusive em outras pastas — como Educação e Planejamento —, levou a indicação para o comando da Secretaria de Administração durante a gestão de Tasso Jereissati (PSDB). 

"Naquele momento, nós não éramos maioria, as mulheres. E, principalmente, que eu fazia parte do núcleo duro do Governo. Nós tínhamos duas mulheres nessa área, que era a Mônica Clark e eu. A gente trabalhava numa sintonia muito grande", disse em referência a então secretária de Planejamento e Coordenação do Governo do Ceará.

Soraia Victor
Foto: Kid Jr.

Da "pitoresca" falta de banheiro à tentativa de "tutela" do voto

A indicação para o cargo de conselheira do TCE Ceará foi feita pelo governador Lúcio Alcântara, após a saída do então conselheiro Júlio Rêgo. Ela não foi a primeira indicada para a vaga, mas a força da oposição na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) desafiou as escolhas feitas por Alcântara — o impasse político chegou, inclusive, à Justiça

Após uma sabatina 'não amigável' na Comissão de Constituição e Justiça, a chegada ao Tribunal também não foi simples. "Tinha essa coisa bem pitoresca do banheiro. Não tinha. Tinha um único banheiro, porque bastava um para os demais (conselheiros)", relembra. Em outubro de 2003, quando Soraia Victor assumiu a cadeira no Tribunal, nem o 'plenarinho' — como era chamado o plenário da Corte antes da reforma e ampliação do espaço — nem o andar onde ele ficava localizado tinha banheiro feminino. A solução era ir até outros andares do prédio. 

Posse de Soraia Victor no TCE Ceará
Legenda: Diário do Nordeste do dia 3 de outubro de 2003 traz reportagem sobre a posse de Soraia Victor no TCE Ceará
Foto: Arquivo SVM

A ausência era simbólica de um órgão ainda despreparado para a chegada de uma mulher ao cargo de conselheira. Mas não representa a única — nem a mais complexa — dificuldade encontrada por Soraia Victor. 

"Logo no primeiro momento, eles quiseram muito também... Isso é interessante. Eles vinham conversar comigo, mas no sentido mais de tutelar o meu voto. E eles viram que era difícil fazer (isso)", detalha. "Tive alguns problemas em alguns momentos, porque eu tinha opinião divergente. Bom, isso não alterou muito não, porque ainda hoje eu tenho e procuro fazer valer a opinião". 

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Ela fala de episódios "repetitivos", nos quais colegas conselheiros afirmavam que não iriam chamá-la para reuniões ou diziam que 'não levariam em conta' algo dito por ela. A ausência de apoio também era uma constante. Ao narrar uma discussão acalorada que teve com um colega, que estava, na época, na presidência do Tribunal, ela cita o silêncio dos demais. "Na época, ninguém ficava do lado, do meu lado não ficou. Ficou todo mundo calado, só ouvindo", diz. "Só mostra a dificuldade que eles tinham também de lidar com essa questão de ter mulher aqui". 

Se encaixar em uma Corte como a única mulher, prossegue Soraia, era difícil. "Eles se entendiam melhor", resume. "Inclusive, nas reuniões com piadinhas, coisas desse tipo. A minha não participação era mais simples, não precisava tolher nenhuma dessas coisas", continua. 

As mulheres, pontua, não têm a mesma oportunidade de estar em todos esses espaços, inclusive porque as definições — assim como em outras instituições da política institucional — não são feitas apenas no plenário da Corte. "Onde é que essas coisas acontecem? Não é só aqui. Então há toda essa questão. E a gente, por exemplo, as mulheres, não têm tanta essa disponibilidade de estar nesses espaços, até porque se tem uma série de outras questões a serem cuidadas, inclusive a casa", exemplifica.

Soraia Victor 3
Foto: Kid Jr.

As duas décadas de experiência no Tribunal, no entanto, trouxeram outra perspectiva sobre o tema. "Talvez se você tivesse vindo falar comigo logo no início que eu entrei, eu ia falar horrores", brinca. "Agora, a perspectiva é 'foi, passou, eu sobrevivi e estou aqui. (...) O tempo passa". 

"E assim chegamos até aqui", diz. Duas décadas depois, ela aponta a "incompreensão" como o cerne do problema dos colegas com a chegada de uma mulher à Corte de Contas. "Não justificando, mas meramente por uma questão de mostrar essas diferenças", ressalta.

"A grande maioria (dos conselheiros) vinha da Assembleia Legislativa, que é eminentemente masculina. E, naquela época então, mais ainda. Poucas eram as mulheres que estavam lá na Assembleia. Estamos falando de 2003, 2004. (...) Veja, eles estavam habituados, lá na Assembleia, a um contexto onde eles faziam os acordos, as discussões entre eles. Dificilmente as mulheres participavam, até porque não tinha (mulheres) também. Quando eles vieram para cá, era fácil entre eles, mas não era fácil comigo". 
Soraia Victor
Conselheira do TCE Ceará

Expectativas para o futuro

De 2003 para cá, a composição do TCE Ceará passou por diversas mudanças. Agora, por exemplo, a Corte está, ainda que momentaneamente, com igualdade entre os gêneros nos votos em julgamentos.  

Com a posse de Onélia Leite como conselheira da Corte em dezembro do ano passado, o TCE Ceará passa a contar com três mulheres no Pleno. Patrícia Saboya, segunda mulher a chegar ao cargo de conselheira, tomou posse em março de 2014

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A Corte de Contas é formada por sete conselheiros. Como Rholden Queiroz está na presidência do Tribunal até o final de 2025, e só vota em caso de empate nos julgamentos, as votações passam a contar com as decisões de três conselheiros e três conselheiras. "Isso não quer dizer que haja unidade em tudo", reforça Soraia Victor. 

Mas ela revela um desejo, agora que conta com companheiras na Corte: ter novamente uma mulher na presidência do Tribunal. Poucos meses após ser empossada como conselheira, Soraia Victor chegou à presidência do TCE Ceará. O ano era 2004. De lá para cá, não houve novamente uma mulher no comando do órgão. 

Soraia Victor na presidência do TCE Ceará
Legenda: Reportagem do Diário do Nordeste, em janeiro de 2004, fala da posse de Soraia Victor na presidência do TCE Ceará
Foto: Arquivo SVM

Essa necessidade — e até urgência — de ter mulheres em lugares de decisão é reforçado por ela ao falar sobre a importância da representatividade. "Vai além da questão da quantidade. É preciso que, nos postos onde as mulheres estejam, elas tenham condição de transformar, de inspirar, de trabalhar", ressalta. 

Ela cita como exemplo a definição de titulares de secretarias nas gestões públicas. Soraia Victor pontua que é comum mulheres estarem em áreas que se encaixam no estereótipo do feminino, enquanto ficam distantes de cargos que possuem maior poder de definição — ela cita áreas como Finanças (com a dita 'chave do cofre') e Infraestrutura — ou de cargos de comando. "Então, a gente pode dizer que há equidade? Não, porque, de fato, não há", conclui. 

"Eu entendo que não é só uma questão de equidade em termos de quantidade, mas a gente precisa ter também mulheres nas maiores áreas e nos comandos, que inspirem, que transformem e que façam a diferença. É o que eu defendo aqui (no Tribunal) também. A gente precisa criar esse ambiente para poder fazer mais e melhor".
Soraia Victor
Conselheira do TCE Ceará

"Mas se você perguntar: 'Soraia, você vê com otimismo o futuro?' Sim, porque entendo que nós, cada vez mais, estamos lutando por esses direitos", contrapõe. "Nós, mulheres, temos que nos unirmos e fazermos nosso trabalho, tentando cada vez mais aparecer, mostrar nossa competência e (mostrar) que temos condição de desenvolver um excelente trabalho com todas as ferramentas que as mulheres têm, pela visão de mundo diferenciada". 

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