Enquanto partidos políticos enfrentam incertezas entre seus filiados sobre quem irá encabeçar as chapas nas eleições deste ano, promotores de Justiça no Ceará já estão em alerta sobre as condutas que podem ser enquadradas como abuso de poder político e econômico e uso indevido de meios de comunicação. A quatro meses do início da campanha eleitoral, as movimentações realizadas agora por apoiadores e lideranças políticas podem se voltar contra prefeitos, vice-prefeitos e vereadores eleitos no pleito de outubro deste ano.
As práticas de abuso de poder político, econômico e de meios de comunicação integram a lista dos chamados ilícitos eleitorais, que podem levar até à cassação de um candidato futuramente eleito. Tais práticas ilegais também geram multas e inelegibilidade dos políticos.
É o que pode acontecer com o senador Sergio Moro (União Brasil), por exemplo. Eleito em 2022, o ex-ministro do Governo Bolsonaro é alvo de duas Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJEs), no Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PR), em Curitiba. Ele é acusado de abuso de poder econômico na pré-campanha eleitoral de 2022.
A principal acusação contra o político é de que ele foi lançado como pré-candidato à Presidência da República em 2021 e teria usado da “estrutura e exposição” para, em um segundo momento, migrar para “uma disputa de menor visibilidade (ao Senado), menor circunscrição e teto de gastos vinte vezes menor, carregando consigo todas as vantagens e benefícios acumulados indevidamente”.
O político também é alvo de denúncias sobre movimentações financeiras atípicas. A defesa do parlamentar argumenta que a própria história de Moro o levou a conquistar os eleitores, não a pré-campanha à Presidência. Moro e seus advogados defendem ainda que as quantias suspeitas foram “infladas” pela acusação. “Não houve caixa 2 nas eleições, não houve irregularidade. Então, se cria uma tese bem criativa de abuso na pré-campanha”, afirmou a defesa durante o julgamento, que será retomado nesta quarta-feira (3).
Olhos atentos
No caso do Moro, as denúncias são do período anterior até mesmo à campanha eleitoral. É justamente em busca de casos semelhantes que os promotores de Justiça do Ceará prometem fazer um pente-fino nas condutas de políticos e militantes nos municípios.
“Desde o fim do ano estamos fazendo um trabalho focado nesses ilícitos, observando as festas de fim de ano e o Carnaval, teremos também o Dia das Mães, o São João, quando os gestores costumam custear e patrocinar os eventos. Eles não podem fazer uso promocional dessas festas, nem a favor deles próprios, nem de terceiros”
A estratégia da fiscalização é abrir procedimentos administrativos e acompanhar atos e eventos que, historicamente, tendem a ser usados com fins eleitorais antes do prazo previsto de campanha. Os promotores então coletam provas e, caso alguma candidatura seja beneficiada, pode haver sanções.
Conforme Girão, a principal busca é por “ilícitos eleitorais”, que podem gerar multa, cassação do registro ou do diploma, além de inelegibilidade dos futuros candidatos.
Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), o advogado e professor Fernandes Neto explica porque tanto o Ministério Público quanto os partidos e federações têm como alvo prioritário os ilícitos eleitorais.
“Os ‘ilícitos eleitorais’ podem provocar a cassação do candidato beneficiado logo de imediato, antes mesmo do processo terminar. Um caso de abuso de poder, se for confirmado pelos Tribunais Regionais, já provoca a perda do mandato”
O advogado ressalta que a aplicação de sanções de forma mais célere visa justamente prevenir o desequilíbrio eleitoral contra aqueles que já estão no poder ou possuem recursos financeiros que podem garantir vantagem na disputa.
“Todas essas ações visam proteger a legitimidade e a igualdade do pleito, tanto que existe uma data em que a Justiça Eleitoral permite realizar a campanha, após o registro das candidaturas. O que não pode é queimar a largada, sair antecipadamente em campanha”, afirma.
A Justiça Eleitoral lista os seguintes ilícitos:
- Abuso de poder;
- Fraude;
- Corrupção;
- Arrecadação e gasto ilícito de recursos de campanha;
- Captação ilícita de sufrágio;
- Condutas vedadas aos agentes públicos em campanha.
Essas condutas se manifestam na prática com a perseguição política a servidores públicos, a contratação temporária de servidores de forma irregular, além do desvio de verba em processos licitatórios e da compra de votos usando como moeda de troca combustível, emprego, cestas básicas, consultas médicas, dinheiro, etc.
De acordo com Emmanuel Girão, o ilícito mais recorrente identificado pela Justiça Eleitoral é o de abuso de poder, que se ramifica em três tipos de condutas: o abuso de poder político, o abuso de poder econômico e o uso indevido de veículos de comunicação social.
“Os abusos de poder podem ocorrer antes ou durante a campanha. Não é porque não começou a campanha em si que não pode ter abuso de poder, eles ocorrem quando há um desequilíbrio nas condições de igualdade da campanha”, reforça Fernandes Neto.
Abuso de poder político
Para a Justiça Eleitoral, o abuso de poder político ocorre quando agentes públicos usam do seu poder para coagir os eleitores.
“Ele ocorre quando alguém utiliza recursos públicos, servidores públicos ou estrutura pública em favor de uma campanha e isso tem alguma gravidade. Uma conduta insignificante não gera ação, mas se houver alguma gravidade é considerada como abuso”, explica Girão.
O abuso de poder político abrange ainda o uso de programas sociais em benefício de algum candidato, assim como a publicidade pública.
Como outros tipos de ilícitos eleitorais, as punições para quem for flagrado cometendo esse abuso de poder inclui a cassação do registro de candidatura, se o julgamento ocorrer antes da diplomação, ou cassação do diploma, se ocorrer depois, além de inelegibilidade.
Desde a última eleição municipal, em 2020, alguns prefeitos foram cassados no Ceará por conta de abuso de poder político. Um dos casos ocorreu em Viçosa do Ceará, onde o então prefeito Zé Firmino (MDB) foi cassado em outubro de 2021 por abuso de poder político e conduta vedada. Ele teria promovido construções e inaugurações de obras de poços profundos de forma ilegal com intuito de promover a própria candidatura.
Iguatu também vive um momento de instabilidade política desde que o TRE-CE cassou, em outubro de 2022, os diplomas do prefeito Ednaldo Lavor (PSD) e do vice-prefeito Franklin Bezerra da Costa (PSDB) por abuso de poder político em 2020, quando os canais oficiais da Prefeitura teriam sido usados em benefício do prefeito. A dupla, que está governando a cidade, ainda tenta reverter a decisão na Justiça em definitivo.
Abuso de poder econômico
Nos casos de abuso de poder econômico, os promotores buscam indícios de que recursos financeiros particulares foram usados de forma excessiva, antes ou durante a campanha, com o intuito de beneficiar algum candidato, partido, coligação ou federação, desequilibrando o pleito.
“O abuso de poder econômico é a utilização de recursos materiais ou pessoais de forma excessiva e que tenham certa gravidade, de modo a desequilibrar a disputa. Por exemplo, uma cidade tem 10 mil eleitores e uma grande empresa tem 1,5 mil funcionários da cidade, caso o dono da empresa faça algum tipo de ameaça ou assédio para que seus funcionários votem em um candidato, ele abusou de recursos econômicos e desequilibrou a disputa”
“O que diferencia o abuso de poder político do econômico é a presença de um ente público”, acrescenta.
Foi com base nesse ilícito que o prefeito de Pacujá, Raimundo Filho (PDT), e o seu vice, José Antônio (União), tiveram os diplomas cassados pelo TRE-CE por abuso de poder econômico e captação ilícita de sufrágio no último pleito municipal. Eles teriam sido beneficiados com a distribuição de passagens aéreas, entrega de materiais de construção e de dinheiro a eleitores.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no entanto, revogou a decisão, em dezembro de 2023, e os gestores voltaram ao cargo. Nas redes sociais, o prefeito comemorou a decisão. "Este não é apenas o nosso retorno, é o renascimento do Pacujá que nunca deixou de acreditar. Este é o nosso momento, o momento em que o povo se une e diz com orgulho: O povo voltou", escreveu.
Uso indevido dos meios de comunicação
Por fim, o uso indevido de meios de comunicação também é considerado um abuso de poder pela Justiça Eleitoral. “Ele ocorre quando se usa rádio, televisão e redes sociais, que atingem uma grande quantidade de pessoas, para exaltar o nome de um candidato ou espalhar mentiras sobre outro”, resume Girão.
O caso de maior projeção sobre essa regra ocorreu recentemente e envolve uma figura nacional. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 30 de julho do ano passado, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho de 2022.
O ministro Alexandre de Moraes, ao proferir seu voto, argumentou que o discurso do então presidente da República instigou o seu eleitorado e outros eleitores indecisos contra o sistema eleitoral e contra as urnas eletrônicas. O ministro lembrou que, independentemente do público que ali estava, a repercussão nas redes sociais era voltada especificamente a quem poderia votar no então candidato à reeleição.
Outros tipos de abuso
Conforme Emmanuel Girão, como o TSE tem reforçado que considera apenas os três tipos de abuso, cabe aos promotores enquadrar as diversas condutas ilícitas em algum desses tipos.
“Fala-se em abuso de poder do algoritmo, abuso de poder midiático e abuso de poder religioso, por exemplo, mas a orientação que já demos no Ministério Público é que, se alguém usou a estrutura de uma igreja, por exemplo, é abuso de poder econômico, porque as igrejas têm benefícios de natureza fiscal, elas têm emissoras de rádio, têm pessoas servindo em nome da fé, isso se traduz em recursos materiais”
“E em todos os tipos de abuso é preciso provar que o candidato participou ou tinha conhecimento e aceitou que aquilo acontecesse”, conclui.
Fernandes Neto também destaca que há circunstâncias específicas em que pode haver abuso de poder, quando os agentes públicos descumprem condutas que são vedadas pela Justiça Eleitoral. Uma delas é o comparecimento de candidatos em inaugurações de equipamentos públicos no período de três meses que antecedem as eleições.
“Tem ainda a captação ilícita de sufrágio, que é o artigo 41 da Lei das Eleições. Nesses casos, pode haver a cassação por um caso apenas, ou seja, se o candidato deu um óculos em troca de um voto e isso for provado, ele já é cassado. Geralmente, uma conduta vedada por se tornar abuso se houver um modus operandi, uma repetição”
Ilícitos eleitorais
Além dos abusos de poder, os ilícitos eleitorais incluem outras condutas normalmente registradas após a montagem das chapas, como as fraudes, definidas pela Justiça Eleitoral como condutas que possam iludir o eleitorado ou adulterar processos de votação.
Uma das fraudes mais comuns é a que tenta burlar a cota de 30% de participação feminina nas chapas proporcionais. A conduta é punida com a cassação do diploma de todos candidatos eleitos pelo partido ou federação.
A arrecadação e gasto ilícito de recursos de campanha também é considerada “grave violação” da Legislação Eleitoral. Os casos mais comuns envolvem o uso de candidaturas femininas de fachada para desviar os recursos de campanha para outros quadros do partido.
Já a captação ilícita de voto é definida como doação, oferta, promessa ou entrega de bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza para o eleitor em troca do voto. Caso essa compra de sufrágios ocorra a ponto de comprometer a legitimidade e a normalidade das eleições, a conduta é considerada corrupção eleitoral.
Por fim, as condutas vedadas a agentes públicos incluem a cessão ou o uso de bens móveis ou imóveis pertencentes à Administração Pública em benefício de candidatura, partido, federação ou coligação.
O texto também proíbe o uso de materiais ou serviços custeados pelos governos ou casas legislativas que excedam a prerrogativa prevista em regimentos e normas dos órgãos que integram. Outra restrição é a cessão de pessoa ou uso de serviço de servidor ou empregado público para comitê de campanha eleitoral durante expediente normal.
Como denunciar
Caso alguma conduta suspeita seja identificada, a orientação do Ministério Público é de que sejam feitos registros da data, do local e da identificação do caso, além de registros fotográficos. O material deve ser encaminhado ao promotor eleitoral da respectiva zona.
“Os partidos políticos têm legitimidade para fiscalizar isso e apresentar ao Ministério Público, mas o cidadão também pode procurar o promotor ou o cartório eleitoral e denunciar que vai chegar a nós”, finaliza Girão.