Defesa da democracia e combate à desinformação nas Eleições 2024: o papel do Tribunal Superior Eleitoral
Um ano após atos antidemocráticos, especialista avalia que papel do TSE foi imprescindível na manutenção da democracia brasileira
Há exatamente 1 ano, centenas de manifestantes, a maioria de verde e amarelo, protagonizaram o maior ataque à democracia visto na Nova República. Eram pessoas que não aceitavam o resultado das eleições presidenciais de outubro de 2022 e resolveram agir uma semana após a posse do vencedor que eles não reconheciam como tal.
A invasão das sedes dos três poderes foi mais que vandalismo e ataques a prédios públicos. Para além dos crimes cometidos, o ato foi simbólico. O furto de uma réplica da Constituição Federal de 1988 no STF, a destruição de símbolos nacionais no Palácio do Planalto e a depredação de obras de arte no Congresso Nacional foram uma agressão ao Estado Democrático de Direito.
Mas as instituições resistiram. Apesar da ousadia dos invasores e o prejuízo causado, o movimento foi muito aquém do que desejavam os participantes dos atos antidemocráticos. Isso porque, apesar do despreparo das forças de segurança naquela tarde de 8 de janeiro de 2023, a resistência institucional começou antes. Meses antes.
Justiça Eleitoral e a defesa da democracia
A recusa em aceitar o resultado das eleições por tantas pessoas foi algo construído nos últimos anos, mas reforçado em campanhas de desinformação ao longo de 2022. A discussão sobre a eficácia das urnas e sobre a lisura da apuração de votos foram temas alimentados em redes sociais e em grupos de aplicativos de mensagens que só não tiveram efeito maior graças ao esforço da imprensa e de instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Foi, possivelmente, o maior desafio enfrentado pela Justiça Eleitoral. “Apesar de exigido ao extremo, o TSE foi imprescindível na manutenção da democracia brasileira”, resume para a coluna o advogado e professor Fernandes Neto, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Dentre as atividades jurídicas e administrativas do TSE está o papel de realizar eleições que garantem a alternância de poder conforme a vontade do eleitor, resguardando a legitimidade e a normalidade do processo eleitoral. Esse exercício dos direitos políticos são garantias previstas na Constituição de 1988.
“O TSE, inusitadamente, além da função administrativa de organizar as eleições e a jurisdicional, de dirimir os conflitos entre candidatos e partidos, teve que assumir a defesa de sua própria eficiência”, opina. Para o advogado, o uso de ações coordenadas para causar insegurança sobre o resultado das eleições "exigiu uma nova abordagem dos conflitos suscitados”.
Isso aconteceu, conforme Fernandes Neto, com uma “maior transparência do processo de auditoria das urnas com a participação plural; a conformação das big techs [grandes empresas de tecnologia, como Google e Meta] ao cumprimento imediato das decisões de combate às fake news; e a fixação da jurisprudência que caracteriza o ilícito de abuso de poder dos meios de comunicação em caso de fake news, foram medidas preditivas dos desafios que se iria enfrentar”.
Um exemplo desta terceira abordagem, conforme o professor, foi a cassação e declaração de inelegibilidade do deputado estadual do Paraná Fernando Francischini (PSL) por propagação de notícias falsas sobre fraudes nas urnas eletrônicas e o sistema de votação.
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O que esperar para as eleições deste ano?
Para as eleições deste ano, não há mudanças na legislação eleitoral em relação ao pleito de 2022. O que também não deve mudar são os embates e desafios vistos nas últimas eleições, “especialmente no combate ao uso das redes sociais e aplicativos de comunicação atualizados tecnologicamente”, ressalta Fernandes Neto.
Faltando nove meses para outubro e já buscando enfrentar esses desafios, o TSE divulgou na semana passada as minutas das resoluções para as eleições municipais, que incluem, regulamentar atuação das redes sociais e o uso de inteligência artificial.
Os textos serão submetidos a audiências públicas ainda neste mês, mas já preveem que a propaganda eleitoral que utilizar “tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial, deve ser acompanhada de informação explícita e destacada de que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e qual tecnologia foi utilizada”.
Conforme a proposta, as redes sociais devem ser responsabilizadas por adotarem e darem publicidade a “medidas para impedir ou diminuir a circulação de conteúdo ilícito que atinja a integridade do processo eleitoral”. Essa determinação deve contar com “mecanismos eficazes de notificação, acesso a canal de denúncias e ações corretivas e preventivas”. A proposta, entretanto, não fala de punição em caso de descumprimento.
O desafio da Inteligência artificial
Com relação à IA, o maior temor é que o desenvolvimento dessas máquinas que aprendem, além de texto, a criar imagens cada vez mais realistas (incluindo vídeos) potencializem as ações de desinformação. Esse uso da tecnologia, lembra Fernandes Neto, aconteceu recentemente nas eleições presidenciais da Argentina.
“As animações audiovisuais, com vozes, imagens e expressões atribuídas aos adversários, foram usadas às vésperas do segundo turno do pleito presidencial. Esse tipo de uso da AI, chamada de ‘Deep Fake’ deve ser antecipada e severamente punida pela Justiça Eleitoral brasileira a partir do exemplo argentino.
Ainda em novembro do ano passado, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, destacou que a capacidade de simular discursos cuja falsidade só pode ser atestada por laudos especializados fez com que a popularização da IA se tornasse um dos grandes desafios da Justiça Eleitoral nas Eleições Municipais de 2024.
Por isso, ressaltou, o Tribunal já estava agindo e realizando estudos "para que possamos balizar a regulamentação via resoluções, a fim de evitar malefícios que o mau uso da inteligência artificial, em conjunto com a desinformação nas redes sociais, pode trazer para a democracia brasileira”, afirmou o presidente da corte.
Por isso, ainda em relação à IA, as minutas das resoluções apresentadas preveem ainda que a falta de transparência de partidos e candidatos na divulgação do uso de Inteligência Artificial pode ser enquadrada como o crime eleitoral previsto no artigo 323 do Código Eleitoral.
Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: Pena - detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa"
Guerra à desinformação
O TSE vem atuando em diversas frentes no combate à desinformação e a expectativa é que sua atuação seja ainda mais incisiva neste ano. "A Justiça Eleitoral será ainda mais rigorosa, seguindo a tendência anunciada de regulação das mídias sociais após as eleições de 2018. Após o pleito de 2022 e os atos de 8 de janeiro, virou consenso, em parte da sociedade e, notadamente, no judiciário, a necessidade da regulação das redes sociais, realizada no último pleito por intervenção do TSE, face à inércia legislativa do Congresso Nacional”, diz Fernandes Neto.
O grande desafio, contudo, é agir preventivamente, pois, uma vez difundida, os efeitos da desinformação são imediatos, ao contrário das sanções judiciais. “É necessário que se entenda que a fake news – a desinformação proposital – por mais que punível com a intervenção judicial, tem efeito retardado e limitado, alcançando seus objetivos imediatos e quase irreversível, com a mera dispersão”, reforça o advogado e professor.
Um país dividido
A tensão vista nas eleições de 2022 ainda não se dissiparam. Na verdade, ela já vem de bem antes, o que indica que o pleito deste ano deve continuar polarizado, assim como a sociedade. É o que prevê Fernandes Neto. “A política é a face mais visível desta divisão”, observa.
“As eleições municipais, no entanto, guardam singularidades. Os interesses regionais e as tradições políticas se sobrepõem às temáticas nacionais, principalmente nos menores municípios, que são a maioria. É uma eleição localizada, com pautas próprias, por mais que nas capitais e grandes centros urbanos os aspectos ideológicos nacionais tenham influxos consideráveis”.
Por isso, reforça, as preocupações da Justiça Eleitoral devem ser as mesmas: “os abusos do poder político, econômico e a desinformação. A forma e a celeridade para enfrentá-los, continuam como desafiantes e as sanções quase sempre são posteriores ao pleito e ao início do mandato, gerando alteração da vontade das urnas, o que é prejudicial à própria democracia”.
Alexandre de Moraes está ciente desses desafios. No balanço das ações do TSE no ano passado, o presidente da corte ressaltou que o Tribunal analisou todos os pontos importantes ligados às eleições.
“Em inúmeras decisões fixamos o caminho, as teses a serem seguidas nas Eleições de 2024 em relação ao abuso de poder econômico, ao abuso de poder político, à utilização de prédios públicos, sinais da República e à utilização do cargo. Definimos quais limites serão aceitos pela Justiça Eleitoral e quais as hipóteses em que isso gerará sanções previstas na legislação, para que não haja possibilidade de desequilíbrio nas eleições", disse o ministro.