Trabalhadores cearenses vivem com menos de 1 salário mínimo por mês: 'Meu dinheiro vale menos'
Remuneração per capita em uma residência volta a figurar entre as piores do Brasil
A dona de casa Cícera Batista é moradora do bairro Granja Lisboa, em Fortaleza. Ela é beneficiária do Bolsa Família desde o começo do programa, há 20 anos, e mora atualmente com o filho, que é estudante, e com a filha, que faz faculdade de Serviço Social e trabalha por meio do programa Jovem Aprendiz. Somando as duas remunerações, a família sobrevive nesse com R$ 1.100 por mês, valor equivalente a 78% de um salário mínimo em 2024.
Embora tenha sentido o aumento na remuneração dada pelo Bolsa Família após a pandemia de Covid-19, Cícera acredita que o benefício está rendendo menos em comparação com outros anos, principalmente para a alimentação.
"Minha menina recebe pouco. Junto isso com o que sobra das contas e faço uma feira. Está dando menos para comprar as coisas. Levei para o mercantil R$ 250 (para fazer compras do mês), voltei sem nenhum tostão. Tudo está muito caro, meu dinheiro vale cada vez menos".
Minha filha vai terminar o contrato dela de Jovem Aprendiz, e eu não sei como vai ser. Queria um emprego para os meus dois filhos, já que eu não posso trabalhar - tive um acidente há 22 anos -, e que seja de carteira assinada. Nunca trabalhei de carteira assinada.
Queda de rendimento
Realidades como a de Dona Cícera são comuns no Ceará, principalmente em famílias com poucas pessoas ocupadas. Em 2022, dados da Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelaram que cerca de 80% de todos os trabalhadores do Estado recebiam, no máximo, até um salário mínimo.
Em levantamento similar feito no ano passado, os números referentes às classes de rendimento domiciliar per capita mensal em cada uma das 27 unidades da federação, colhidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) 2023, mostram que o cenário segue bastante desigual.
O rendimento médio domiciliar per capita no Ceará é de R$ 1.166/mês. Com isso, o Estado fica na 22ª posição entre os rendimentos domiciliares das unidades federativas do País, sexto pior resultado nacional em 2023.
Para calcular o indicador, o IBGE observa "a razão entre o total dos rendimentos domiciliares (nominais) e o total dos moradores, sendo considerados os rendimentos de trabalho e de outras fontes". Todos os moradores da unidade residencial são considerados para o cenário.
Ao longo de dez anos (2014–2023), o Ceará veio evoluindo a renda domiciliar, mesmo que ainda abaixo da média. Os resultados continuaram crescendo, mas em ritmo menos acelerado que outros estados, sobretudo após a pandemia de Covid-19.
Pobreza atestada
O reflexo do rendimento médio domiciliar per capita no Ceará abaixo do Brasil e do salário mínimo em cada ano é o empobrecimento gradual da população cearense, que fica ainda mais dependente de ajuda governamental para conseguir sobreviver.
Essa é a visão do economista e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE), Wandemberg Almeida. Para ele, além da sobrevivência da população com remuneração muito próxima do mínimo necessário, a qualidade do emprego gerado no Estado ainda é muito longe do ideal.
"Vivemos num estado pobre, onde boa parte da população sobrevive por meio de transferências governamentais, e isso traz um impacto negativo para o rendimento. A gente ainda tem um trabalho gerado dentro do nosso estado de baixa qualidade salarial", destaca.
"Outro grande problema é que a formação no nosso estado, pessoas com mestrado e doutorado, acabam indo para outros lugares porque não tem estrutura suficiente aqui para poder receber essas pessoas, e você acaba pagando valores muito abaixo do mercado. Isso gera um certo impacto negativo para a economia e atrapalha o rendimento das famílias", completa o economista.
Aliado aos indicadores trazidos anualmente pelo IBGE via Pnad Contínua, Wandemberg Almeida atesta que os números evidenciam uma condição histórica de pobreza no Ceará, com alta dependência de interferência direta dos governos.
"Vê-se mais repasse por parte dos governos para poder suprir a necessidade da população, e isso traz um certo impacto negativo para a nossa economia. Não conseguimos evoluir o quanto a gente queria, e o Estado tem capacidade de produzir e trazer mais indústrias, investimentos e tentar manter esse capital aqui e isso vai fazer com que a gente consiga ter rendas maiores, o melhor rendimento".
Para o economista, o ideal é que, a longo prazo, o Estado desenvolva a capacidade de conseguir gerar empregos que demandem menos mão de obra braçal e foquem em atividades intelectuais, como indústrias de desenvolvimento e inteligência artificial.
Nosso estado hoje precisa criar infraestrutura, gerar mais empregos, principalmente aqueles que têm uma melhor remuneração. Somos um estado onde 40% dos estudantes do setor privado, eles passam para ITA e IME, mas esse capital intelectual está em outro país, estado, e acaba impactando muito fortemente o nosso rendimento.
Volta a antigos patamares
Os indicadores sociais que permitiram que o Ceará de fato crescesse antes de 2020, mas o professor do departamento de Economia Agrícola da Universidade Federal do Ceará (UFC), Vitor Hugo Miro, pontua que o retorno do Estado aos patamares pré-pandemia é "inquietante".
"Mudanças de longo prazo são explicadas por fatores como desenvolvimento educacional e mudanças econômicas estruturais, decorrentes da combinação de investimentos do setor público e privado. Estas mudanças estruturais, no entanto, não dependem de políticas de governos específicos, são geradas por planos de longo prazo, e os resultados também não são imediatos. Ceará passou por várias mudanças estruturais nos últimos anos, mas sua posição relativa vai depender se as mudanças são apenas aqui, ou se isso depende de um contexto mais amplo".
O professor também ressalta que os indicadores econômicos do Ceará ainda são muito "dependentes de serviços e comércio, muito voláteis em relação às flutuações conjunturais". Além disso, a estagnação do rendimento médio domiciliar per capita mostra que outros índices também sofrem redução.
"A remuneração mais baixa possui efeitos diretos sobre os indicadores de pobreza. E não é apenas a pobreza monetária. Rendimentos menores estão associados a dificuldades de acesso a inúmeros serviços como educação, saúde, saneamento, alimentação adequada e informação", reflete.
Assim como Wandemberg Almeida, Vitor Hugo Miro também dá destaque ao trabalho gerado no Ceará, ainda caracterizados pela baixa remuneração e pela alta informalidade, prejudicando a renda média.
"Aproximadamente 70% da renda das famílias era derivada de atividades laborais. Nos últimos anos isso até mudou um pouco, pois os rendimentos perderam participação em relação às transferências governamentais. Mais ainda é a principal fonte de renda. Infelizmente, os postos de trabalho que predominam no Ceará são postos de baixa qualificação, muitos são informais e, consequentemente, remuneram menos", conclui.