Talvez você não saiba, mas, no Brasil, as mulheres pagam quase três vezes mais impostos quando compram anticoncepcionais do que os homens desembolsam pelas camisinhas. A carga tributária de pomadas usadas nos mamilos durante a amamentação também é superior a de ceras para veículos.
Esses fatos expõem a outra face tácita da desigualdade de gênero no sistema tributário brasileiro, além da embutida na “Taxa Rosa”, discutida no 1º episódio desta reportagem.
A pesquisadora Luiza Machado, mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comparou itens da saúde feminina e voltados para o público masculino para investigar o respeito à seletividade tributária. Ou seja, quando produtos e serviços devem ser taxados conforme a essencialidade.
Ela observa, todavia, haver a mesma carga para a versão feminina da camisinha, mas pondera sobre o uso desse item ainda ser pouco difundido, seja pela falta de conhecimento ou pela dificuldade de utilizá-lo corretamente, comprometendo a eficácia.
Os três já são distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, nas farmácias, o preservativo chega com tributação reduzida de 9,25%, enquanto o preço dos anticoncepcionais pode ter até 30% de tributos embutidos.
“O benefício fiscal da camisinha está correto, de fato, deve ser menos tributada em respeito à dignidade sexual. Mas sabe-se que ela pode falhar contra a gravidez, embora seja mais eficaz para doenças sexualmente transmissíveis. Para as mulheres, também é preciso garantir a autonomia do direito reprodutivo”, analisa a pesquisadora.
Outro exemplo, aponta, são as fraldas geriátricas, as quais possuem tarifa máxima de 9,25%, mas os absorventes e coletores variam até 27,25% e 33,75%, respectivamente, a depender do estado.
“As fraldas também estão corretamente com baixa tributação, mas os absorventes menstruais e para seios são tão essenciais quanto elas. Não há uma justificativa para dizer que esses produtos são menos essenciais”, questiona.
Para especialistas, é necessário garantir a essencialidade desses e de outros bens para a dignidade feminina. A isenção e a atenuação dos impostos sobre esse itens, os quais são de consumo exclusivo de mulheres e homens transexuais — por questão estritamente biológica — ajudaria a combater a pobreza menstrual.
Para se ter ideia, segundo a Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU), 12% das pessoas do gênero feminino no mundo não usam materiais de higiene básica devido ao alto custo.
Outra pesquisa mostra que 5,5 milhões de mulheres já precisaram faltar o trabalho devido à pobreza menstrual, gerando prejuízo de R$ 2, 4 bilhões na economia brasileira por ano, segundo dados da Always em parceria com o Instituto Locomotiva
Portanto, além de resolver um problema de saúde pública, mudanças na tributação teriam um importante papel para o desenvolvimento econômico e social, abrindo caminho para uma força de trabalho mais igualitária, moderna e qualificada.
Já que auxiliaria políticas públicas contra a evasão escolar, para a inserção e manutenção da população feminina no mercado de trabalho e para o controle da taxa de natalidade.
Ceará deu exemplo para o País
Em outubro de 2021, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou a distribuição gratuita de absorventes. O veto, todavia, inflou a discussão sobre a pobreza menstrual no País. Nesse contexto, os estados e municípios começaram a se mobilizar para zerar as alíquotas estaduais para a entrega em escolas.
No Ceará, houve a desoneração do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviço (ICMS) de absorventes internos e externos para as instituições e para todos que comprarem os itens. Mas, para isso, a então secretária da Fazenda (Sefaz-CE), Fernanda Pacobahyba, precisou achar uma saída.
Isso porque quando ela propôs ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) a possibilidade de os estados escolherem isentar ou não o ICMS também para a consumidora final e não apenas sobre os absorventes adquiridos pela administração pública, o órgão reprovou a proposta.
Na época, o Confaz teria justificado a importância de o incentivo ser concedido só às instituições para garantir a política de distribuição e para evitar conceder o benefício a pessoas ricas.
Entretanto, conforme discutido no 1º episódio desta reportagem, especialistas apontam que as mulheres cuja renda comporta adquirir o produto ainda são mais oneradas em razão da regressividade do sistema tributário brasileiro.
Ou seja, meninas e mulheres de baixa renda e de classe média também pagam pelo item e deveriam ser contempladas com a acessibilidade para adquiri-lo.
Para garantir que o benefício chegasse à ponta, a ex-secretária Fernanda Pacobahyba incluiu o bem à cesta básica, passando a ser considerado essencial no Ceará.
A medida já foi prorrogada, mas tem validade somente até 31 de julho de 2023. Caberá à Sefaz-CE, hoje sob o comando de Fabrízio Gomes, renová-la ou não.
Atualmente, a tributação sobre o absorvente no Ceará pode variar de 3,65% a 9,25%, segundo levantamento do Observatório de Finanças Públicas do Estado. (Ofice)
Ainda há muito a avançar em todo o País
O veto polêmico do ex-presidente foi derrubado em março de 2022, mantendo, então, o trecho do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual que prevê a distribuição do item essencial para estudantes de baixa renda de escolas públicas e mulheres em situação de rua ou de extrema vulnerabilidade.
Para a coordenadora do grupo de estudos Gênero e Tributação da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Tathiane Piscitelli, ainda é preciso discutir a isenção fiscal do absorvente e como garantir que a indústria retorne a diminuição do valor para quem precisa em todo o Brasil.
“Esse debate precisa ser feito, mas também pode ser solucionado normativamente pela imposição de um dever de que haja o repasse da redução tributária para o preço ser reduzido na ponta”, salienta. Piscitelli também acrescenta a necessidade de estruturar uma política pública de distribuição gratuita.
“Ainda não se tem, a despeito do veto derrubado. Então, só no fim do ano passado, houve a designação de receitas para esse programa. Precisamos ter também uma clareza sobre a forma de tributar, uma uniformidade nacional”, avalia.
Piscitelli frisa que isso só será possível se o convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) permitir essa redução ou a inclusão desse bem na cesta básica dos estados.
Não faltam exemplos mundo afora: Austrália, Canadá, Índia e Quênia não taxam absorventes. Já Escócia foi o primeiro país a distribuí-los gratuitamente.
Como a tributação de itens essencais pode forjar a realidade das mulheres
A universitária Maria Josélia dos Santos, de 34 anos, divide a rotina de estudos com a maternidade. Além do tempo, a mãe da Lucinda, de 5 anos, e da Lueji Tchissola, de um mês, também precisa espremer o orçamento para caber itens básicos durante o puerpério.
Desde a primeira gestação, relata, ela abriu mão dos estereótipos de gênero para comprar o enxoval da filha. “Optei por coisas neutras, porque, se eu for comprar algo baseada em gênero, o preço fica exorbitante”, conta.
Além de driblar a "Taxa Rosa", é preciso encontrar substitutos para alguns produtos. “Os absorventes para seios têm variações de R$ 20 reais para cima, enquanto um pacote de discos de algodão custa, em média, R$ 4,99”, compara.
Josélia e o companheiro estudam na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Acarape, no Interior do Ceará. O casal, que compartilha as despesas e os cuidados com as crianças, possui uma renda escassa.
“Fazemos muita pesquisa e vamos nos adequando nas substituições, como os absorventes para os seios. Mas, infelizmente, há coisas que não conseguimos”, conta. Uma delas é a bomba de amamentação, necessária para alimentar a filha prematura.
“Quando fui adquirir, vi valores absurdos. Eu, sendo estudante, fica mais complicado, pois não consigo trabalhar formalmente com o meu curso é integral. O lado financeiro acaba ficando muito puxado”, relata.
“E eu sendo mulher, negra e mãe, a escada financeira é pior ainda”, enfatiza.
Ela não está sozinha. Segundo pesquisa da Always em parceria com o Instituto Locomotiva (2021), mais de 35% das mulheres brasileiras afirmam que os gastos com produtos de higiene pesam na renda e precisam buscar formas para economizar com esses itens.
A jovem é a segunda pessoa da família a entrar em uma universidade. A mãe, a pedagoga Maria das Dores Canuto, foi quem abriu as portas para o ensino superior. O pai, o pescador José Silvestre, estudou até a 4ª série.
“Isso não foi impedimento para o conhecimento. Meu pai é uma das pessoas mais inteligentes que conheço, ainda mais quando o assunto é o mar e a costa”, diz.
“Eu, desde sempre soube, pelos meus pais, quem sou e como isso afeta diretamente em tudo. A raça sempre veio primeiro que gênero no nosso cotidiano familiar”, sublinha.
O que precisar ser feito para mudar essa realidade?
Se as políticas tributárias considerassem o gênero e raça ou cor, lactantes como a Maria Josélia conseguiriam usar absorventes de amamentação adequados sem impactos na renda. Além disso, essas medidas atuariam como um dos combustíveis para a mobilidade social dessas mulheres e promoveria a justiça fiscal.
Para as pesquisadoras, é fundamental a isenção, por meio de lei, de tributos federais (PIS/COFINS e IPI) sobre itens de higiene íntima, fraldas infantis e geriátricas e anticoncepcionais, conforme o relatório “Reforma tributária e desigualdade de gênero: Contextualização e propostas”, da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Atualmente, os absorventes e comprimidos contraceptivos já têm o imposto sobre produtos industrializados (IPI) zerado.
A advogada tributarista, professora e mestra em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas) com pesquisa sobre Tributação e Gênero, Isabelle Rocha, explica que a desoneração atual é concedida via decreto, ou seja, não é definitiva.
Por esse motivo, aponta, há uma insegurança sobre a manutenção do benefício, podendo ser modificado a qualquer momento. “Quando se concede a isenção por meio de legislação há a garantia de que nunca haverá tributação pelo IPI dos anticoncepcionais enquanto a lei for válida”, especifica.
Segundo o estudo, a cobrança incidente sobre tais bens evidencia a regressividade sobre o consumo, “além de representar viés explícito de discriminação contra mulheres”.
O levantamento reforça que absorventes higiênicos e assemelhados são essenciais para a garantia da saúde feminina devido à vulnerabilidade corporal inerente ao período menstrual, entre outros fatores.
Essa liberação tributária evitaria o absenteísmo escolar de jovens e facilitaria o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, considerando que meninas e trabalhadoras pobres não conseguem realizar atividades cotidianas em razão da escassez de recursos para comprar o produto de uso íntimo feminino.
Já a desoneração dos anticoncepcionais, conforme o relatório, seria um instrumento de uma política pública com a promoção de igualdade de oportunidades de trabalho entre os gêneros.
A medida deveria ser feita paralelamente à distribuição gratuita já prevista no Sistema Único de Saúde (Sus), levando em conta que o planejamento familiar, geralmente, também fica sob a responsabilidade das mulheres.
Conforme a proposta, outra medicação a ser isentada dos impostos federais deveriam ser os hormônios utilizados no tratamento de menopausa ou redesignação sexual, garantindo a dignidade humana e o direito fundamental à saúde.
Em relação à isenção para fraldas infantis ou geriátricas, o estudo justifica que o trabalho de cuidado, seja nas profissões, mas especialmente o doméstico, recai mais sobre elas, as principais as responsáveis por crianças e por idosos, conforme você lerá no 3º episódio desta reportagem, nesta terça-feira (7).
O Diário do Nordeste questionou ao Ministério da Fazenda se há planos de desoneração para esses itens na gestão atual, mas a pasta informou que não irá comentar sobre o assunto.
Neste 8 de março, contudo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou um pacote de medidas com foco na população feminina, incluindo lei de igualdade salarial e distribuição gratuita de absorventes.
Atualmente, algumas propostas sobre o tema já tramitam na Câmara dos Deputados, como os projetos de lei 1.702/2021 e 3.085/2019, ambos tratam da isenção de impostos para produtos de higiene menstrual.