Taxa rosa: por que as mulheres pagam mais impostos do que os homens?
Reportagem especial mostra como o mercado pratica valores diferentes para produtos femininos, ocasionando uma carga tributária mais pesada para as mulheres
Apesar de mais da metade da população brasileira (51,1%) ser formada por mulheres, elas são minoria no Congresso, em cargos de liderança e ainda recebem salários mais baixos do que os homens, mesmo quando assumem papéis iguais no mercado de trabalho.
Enquanto isso, precisam se dividir em duplas, triplas jornadas, para conciliar a carreira, a maternidade e afazeres domésticos, cuja responsabilidade recai mais sobre as suas costas.
Por diversos ângulos, se escancaram as desigualdades de gênero. Contudo, dentre as fibras desse tecido social esgarçado pela lógica patriarcal, também há uma assimetria invisível aos olhos da maioria: as mulheres pagam proporcionalmente mais tributos na comparação com os homens.
Nesta reportagem especial de quatro episódios, o Diário do Nordeste aborda as razões pelas quais o sistema tributário brasileiro onera mais as contribuintes e as consequências disso sobre a renda.
E, por fim, discute como incluir viés de gênero e cor ou raça à prometida reforma tributária ajudaria a corrigir um dos pilares que sustentam e ampliam a desigualdade econômica entre homens e mulheres no País.
O preço que se paga apenas por ser mulher
A enfermeira Mayara Vasconcelos, 31, pariu há quatro meses, em Fortaleza. Antes mesmo de sentir a filha, Maria Glória, nos braços pela primeira vez, já ouvia, dentre tantos palpites aturados pelas mães, um que parecia sentença: “Quando descobrimos que a nossa bebê era uma menina, todos diziam: [criar] mulher é mais caro”, lembra.
Não demorou para Mayara identificar uma das causas por trás da crença compartilhada: o custo de ser mulher é alto desde o berço. “Fazer um enxoval para uma menina com certeza é diferente do que para um menino. Às vezes, o mesmo produto se torna mais caro quando tem um detalhe rosa”, relata.
Os dados confirmam essa percepção. Roupas de bebê de cores ou personagens atribuídas às meninas são 23% mais caras do que aquelas ditas de meninos, segundo estudo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Já a diferença entre brinquedos voltados para os gêneros distintos chega a 26%. Em geral, conforme o levantamento, artigos e serviços voltados para o público feminino sofrem aumento de 12,3%.
A alta também é observada em medicamentos. Consumidoras percebem, por exemplo, valores mais altos para analgésicos com rotulagem pensada para atrair a mulher do que outros comprimidos com a mesma composição química, que também podem ser usados para cólicas menstruais.
Esse fenômeno é conhecido como “Taxa Rosa” (Pink Tax, em Inglês). Apesar do nome, não se trata de mais impostos embutidos, mas de um sobrepreço perpetrado pelo mercado.
Se o valor desses produtos é mais elevado, consequentemente, a carga tributária é mais pesada.
A coordenadora do grupo de estudos Gênero e Tributação da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Tathiane Piscitelli, reforça que a “Taxa Rosa” demonstra, na verdade, como o consumo de bens tipicamente direcionados às mulheres possui um ônus escondido.
E, embora seja uma prática recorrente, há poucas pesquisas relacionadas ao tema no Brasil.
Como a “Taxa Rosa” impacta a renda das mulheres?
No Brasil, a tributação é concentrada no consumo, ocasionando a chamada regressividade (quando se arrecada mais de quem ganha menos).
Tathiane Piscitelli salienta que a população com menor rendimento é mais onerada porque utiliza todo o valor recebido para consumir alimentos e serviços básicos. “Essas pessoas são tributadas integralmente na sua renda a partir da perspectiva do consumo”, aponta.
Por exemplo, uma diarista que recebe R$ 1 mil e um empresário que ganha R$ 10 mil pagam os mesmos R$ 10 de impostos quando consomem determinado produto. Ou seja, para a taxação de ambos, não é considerado o rendimento, a riqueza e o patrimônio de cada.
Assim, a diarista acaba gastando 1% do rendimento total para aquela aquisição, enquanto o empresário precisou desembolsar apenas 0,01% do seu orçamento.
“Então, proporcionalmente, o mais pobre paga mais. Quando a gente olha para a pirâmide de distribuição de renda no Brasil, quem são as pessoas mais pobres? São as mulheres e, especificamente, as negras”, sublinha a professora.
“Em razão disso, o modo como o sistema tributário se organiza no Brasil resulta numa discriminação implícita das mulheres”, analisa.
Como acabar com a taxa rosa?
Resumidamente, a “taxa rosa” é a majoração aplicada em produtos voltados para as mulheres, com rótulos que reforçam estereótipos de gênero, como cores rosas e referências a personagens “princesas”.
Para solucionar esse problema, é necessário fiscalização intensiva de órgãos de defesa do consumidor contra a prática e consciência social para denunciá-la.
A coordenadora do grupo de estudos Gênero e Tributação da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Tathiane Piscitelli, interpreta que o princípio da igualdade (Art. 5º da Constituição Federal) já impede a diferença de valor entre itens idênticos, mas rotulados como femininos.
A professora pondera, contudo, a importância de compreender os vícios de origem dessa “discriminação no mercado”.
“Na minha concepção, isso está na construção dessa figura feminina como a mulher dependente do marido, sendo disposta a gastar mais porque não seria o seu próprio dinheiro. E a mulher, nesse aspecto, seria mais fútil. Essa construção é completamente equivocada e decorre da estrutura patriarcal da nossa sociedade”, enfatiza.
“Os dados mostram que elas, em sua enorme maioria, são as responsáveis financeiras pelo lar, seja porque são chefes de família — à luz da enorme quantidade de mães solo que temos —, seja porque são responsáveis pela compra de bens de primeira necessidade. Então, não, as mulheres não estão dispostas a gastar mais e são mais responsáveis financeiramente do que os homens”, reafirma.
"Taxa Rosa" reacende o debate sobre o sistema tributário regressivo
Conforme discutido acima, além da questão mercadológica e de direitos das consumidoras, quando as mulheres compram algo por valores mais altos, também acabam pagando mais impostos sobre esses itens.
Embora a política fiscal brasileira tenha a premissa de neutralidade e não inclua uma perspectiva de gênero, sabe-se que o sistema tributário regressivo onera ainda mais quem ganha menos. E os números comprovam que a população feminina, sobretudo a negra, é a mais pobre no Brasil.
Por isso, especialistas defendem o redirecionamento da tributação sobre a renda, a riqueza e sobre o patrimônio.
A procuradora da Fazenda Nacional, doutora pela Universidade Federal do Ceará e membro do Comitê Executivo do “Tributos a elas”, Adriana Reis de Albuquerque, avalia ser necessário refletir como o arcabouço tributário impacta a sociedade e como se estrutura o viés implícito de gênero, já que não há tarifas de impostos diferentes para as mulheres.
Por esse motivo, destaca a professora, é difícil identificar os fatores que privilegiam os homens em um sistema cuja discriminação não é explícita.
“Quanto ganha essa pessoa que paga essa alíquota? E quem está na base dessa pirâmide? Quem tem as menores oportunidade e as menores rendas? Quem precisa suportar muito mais esse sistema?”, questiona.
“Via de regra, somos nós, mulheres. E, no recorte ainda mais específico, as mulheres negras. Ser mulher faz com que, no fim das contas, se suporte um encargo econômico superior ao que um homem suportaria”, completa.
Preço alto de produtos para mulheres impacta o orçamento das famílias
A enfermeira e pesquisadora Mayara Vasconcelos, citada no início desta reportagem, relata que os itens para a amamentação também pesam no orçamento da família. “Precisamos comprar uma desmamadeira elétrica porque a manual não estava dando conta e ficamos surpresos como o valor é bem alto”, relata.
“Não existe nenhum argumento que justifique uma maior carga tributária para o público feminino. Com certeza, é algo que deve ser combatido”, diz.
Mayara observa ser fundamental debater sobre consciência e justiça fiscal para pressionar mudanças nesse sentido.
“O aleitamento materno exclusivo é orientado até os seis meses, mas muitas mulheres voltam ao trabalho antes disso e não conseguem seguir com a lactação pelo de fato não poder adquirir uma desmamadeira para ajudar na ordenha e acabam desistindo”, exemplifica.
No 2º episódio desta reportagem, nesta segunda-feira (6), o Diário do Nordeste aprofunda a questão da alta tributação sobre produtos essenciais para as mulheres.
Serviço
Veja onde denunciar práticas abusivas do mercado:
- Decon: (85) 98685-6748 ou pelo e-mail decon.fisc@mpce.mp.br.
- Procon: telefone 151, das 8h às 17h, de segunda a sexta-feira, bem como de forma virtual, em qualquer dia e horário da semana, no portal da Prefeitura de Fortaleza, e pelo aplicativo Procon Fortaleza.