Em entrevista, Fagner resgata amizade e parceria musical com Luiz Gonzaga

Cantor e compositor cearense lançou junto ao Rei do Baião o LP "Luiz Gonzaga & Fagner" (1984), no qual interpretou sucessos do mestre. A dobradinha se repetiu em 1987, no disco "Gonzagão & Fagner 2 - Abc do Sertão", revisitando o repertório de Seu Lua

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@diariodonordeste.com.br
Legenda: Capa do álbum "Gonzagão & Fagner" 2 (1987)
Foto: Divulgação

Raimundo Fagner testemunhou de perto os últimos anos de vida de Luiz Gonzaga (1912-1989). A parceria se consolidou no que de melhor os dois nordestinos conheciam e criavam, a música. O filho de Orós esmiuça memórias de quase quatro décadas atrás e ilumina um Gonzagão em contato com uma nova geração de músicos, porém contrariado com o mercado fonográfico vigente.

Naquele momento, o veterano ainda era um artista "de palavra", firme em suas convicções, mesmo sentindo os efeitos físicos dos 50 anos de carreira. A amizade rendeu dois discos, "Luiz Gonzaga & Fagner" (1984) e "Gonzagão & Fagner 2" (1987)

Fagner fala de bastidores de gravação, dos shows ao lado do pernambucano e como as raízes nordestinas de ambos foram decisivas à amizade destes dois nomes da Música Popular Brasileira. Do último encontro, o cearense se orgulha do sentimento de gratidão deixado ao mestre. 

Leia a entrevista na íntegra: 

Dos últimos encontros com Luiz Gonzaga, do que você lembra de forma mais imediata? 

A história com Gonzaga é longa, ela tem momentos de muita emoção. De muita cumplicidade. Nesse momento, pela proximidade da data (de morte), eu lembro bem do nosso último encontro, quando ele já não estava recebendo mais ninguém direito. Lembro que nesse momento eu fiquei olhando tudo aquilo com um olhar muito agradecido, por essa coisa nossa do Nordeste. Ficou essa lembrança forte dele.  

Para você, como o legado dele ainda se sobressai hoje? Você sente isso ao tocar algo dele, ou feito em parceria com ele? 

Primeiro, o repertório que nós fizemos não é o que eu canto em show. Então, é uma coisa que marcou. Eu gravei com muita gente, muito artista, mas o trabalho com o Gonzaga tinha algo mais, uma coisa da região, mais nossa, do amor dele pelo Ceará também. Pelas nossas raízes. Tinha um pouco a mais nisso. E felizmente isso ficou registrado nos discos.  

Legenda: "Luiz Gonzaga & Fagner" (1984) representou para Fagner um reencontro com as raízes nordestinas
Foto: Fabiane de Paula/ Reprodução

Você tem alguma lembrança de ter participado dos últimos shows que ele fez no Ceará? De alguma ocasião mais próxima da morte dele? 

Fizemos shows em Orós. Shows muito grandes, de parar região. Fizemos em Pau dos Ferros (RN), e em Orós também, num período em que ele já não estava mais tão bem. Eu via ele muito cansado, e queria posicionar um microfone pra cantar com ele, com ele no canto do palco, sem precisar subir.

No estúdio também, no último disco, ele já estava bem cansado, querendo desistir, mas sempre acontecia. Ele reclamava muito da sanfona, do tempo que precisou carregar a sanfona (e isso desgastou Luiz Gonzaga fisicamente).  

Você lembra do ano em que vocês se conheceram? 

Deve ter sido 84, 85. Nós nos conhecemos antes, mas eu fiquei bem interessado em fazer algo com ele, com aquela formação toda. A princípio ele não entendeu, mas quando ele resolveu fazer um disco dele com a nova geração que estava surgindo na época, daí ele me convidou. Ele tava a fim de fazer um projeto.  

Passados esses 30 anos da morte dele, você identifica momentos em que se reaproximou mais da obra do Luiz Gonzaga, a pretexto de outras datas que marcaram a memória dele? 

Com a obra dele, total. Eu regravei “Riacho no Navio”, depois gravamos mais pra frente buscando a modernidade no som. Então, depois me afastei bastante. Esse encontro da gente foi meu reencontro com o Nordeste. Depois disso fiz dois discos com músicos que tocarão por aí, “Caboclo Sonhador”... Na sequência, já caí voltando com ele.  

Legenda: Nova dobradinha recriou clássicos do repertório do Rei do Baião, como "Abc do Sertão", "Xamego" e "Vem Morena"
Foto: Fabiane de Paula/Repodução

Vocês chegaram a compor algo juntos que ainda é inédito? 

Não. Eu queria fazer com ele, as coisas dele. Tanto que ele deixou o repertório na minha mão, eu que andava com isso, e ele concordava com tudo. Eu lamento que ele não tenha feito o último disco na RCA Victor, o de número 50, ele tinha feito 49 discos. É um dos maiores artistas da gravadora.

Ele, Nelson Gonçalves e Elvis Presley. Na época, ele tava nesse mesmo patamar de discos. Mas ele teve um desgaste com a gravadora, as pessoas não souberam lidar com ele. Terminou numa mesquinharia do mundo fonográfico. E eu sofri com isso também, porque estava próximo dele nessa época. Eu tentei contornar, bancava a volta dele, mas ele ficou com uma mágoa muito grande e não voltou, tá entendendo? Era um cara de palavra.

Legenda: Verso do disco "Gonzagão & Fagner 2 - Abc do Sertão"
Foto: Fabiane de Paula/Reprodução

Depois da morte dele, você manteve contato com a família dele, de alguma forma? 

Eu tinha laços mais estreitos com o Gonzaguinha. Sou padrinho da filha mais nova dele, a Mariana. Essa lua de mel durou muito pouco, porque ele morreu muito rápido. E eu virei fiador de receber as coisas do projeto Asa Branca lá no Paraná. Virei meio que um tutor disso aí, segurei esse projeto. Gonzaguinha era muito próximo, compondo, fazendo, e ele andava muito aqui em casa. E a coisa aconteceu.

Em relação à obra do pai, ele tinha uma visão. Ficou muito tempo nos bastidores, e depois veio com tudo. Esse momento da família foi muito duro, uma hora morreu Gonzaga, depois Gonzaguinha. Ele tava muito a fim. Nós nos vimos muitas vezes em Fortaleza. E a gente via que ali a coisa ia acontecer. Foi uma pena.  

Afiados

A sintonia da dupla emociona aos 3:45 do vídeo extraído do DVD "Luiz Gonzaga - Danado de Bom". O show foi gravado em maio de 1984, para um especial da Rede Globo. O Rei do Baião realiza grandes encontros, entre outros nomes, com Dominguinhos (1941-2013), Gonzaguinha (1945-1991), Elba Ramalho e Fagner que participa em "Asa Branca" e no pout-purri de "Respeita Januário", "Riacho do Navio" e "Forró no Escuro"

Durante "Forró no Escuro", Fagner é pura alegria e vibra com o verso:
- Vou inté quebrar a barra! E pegar o sol com a mão!
No resfulego da Sanfona, Gonzagão solta com seu vozeirão típico:
- Ô, o hômi endoidou. Alô, Fortaleza. Leve esse hômi pra Paranagaba!
Fagner, por sua vez responde na batida do repente:
- Leva pra Exu, leva pra Exu, leva pra Exu... 
Lua arremata:
- "Acertô! Exu é lugar de doido mesmo! É, ou não é? Zé Peixoto?".
Os dois se divertem. 

*Colaboração: Antonio Laudenir

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