Recuperados da Covid-19, avós reencontram família e marcam período de renovação

Após viverem o medo da perda, netos relatam que o retorno dos idosos de volta ao lar é carregado de gratidão e alegria pela superação da doença

Escrito por Redação ,
Legenda: Após se recuperar da Covid-19, Manoel Matias, 98 anos, passou a morar com a neta Maria Eliane Rocha, 29 anos, em Fortaleza, onde tem recebido amor e atenção
Foto: Arquivo Pessoal

Com a necessidade de internação devido ao coronavírus, parentes também tiveram que lidar com o medo de um reencontro nunca acontecer. Quando o aposentado Manoel Matias, de 98 anos, precisou sair da cidade de Jijoca de Jericoacoara e se deslocar 150 quilômetros para ser internado em Sobral, a neta Maria Eliane Rocha, 29 anos, pensou que talvez nunca mais voltasse a ver o avô. O reencontro, depois de 10 dias de internação, foi marcado pelo alívio, alegria e gratidão

“Pela idade dele, a gente já pensou no pior. Ficamos preparados pelo que podia acontecer, mas nada para Deus é impossível e meu avô mostrou que realmente é possível se recuperar”, afirma Eliane. 

Familiares suspeitam que o idoso tenha se contaminado através do cuidador, que apresentou os sintomas da Covid-19 e veio a falecer em decorrência da doença. O receio de que o mesmo ocorresse com avô aumentou após a necessidade de internação. 

Apesar do primeiro reencontro ter ocorrido com outras primas, quando a neta de fato pôde abraçar Manoel e sentir o coração dele batendo contra o peito, a gratidão da vitória sobrepôs todo resquício da apreensão acumulada por dias. “Pessoas de idade tem muitas histórias para contar, tem muitas coisas boas. É um ser que a gente ama e estamos muito felizes com a recuperação dele”.

Veja também

O idoso se mudou para Fortaleza, onde está vivendo com a neta. Dentro de casa, todos os cuidados ainda são tomados, como a higienização das mãos, o uso de máscaras e a limpeza de todos os materiais vindos do ambiente externo. 

“Cada dia que aumenta mais o número de mortos, a gente ficava na expectativa de receber uma notícia que ele tinha falecido, mas graças a Deus foi ao contrário. Estamos muito felizes”, compartilha.

O avô, já próximo de completar um século de vida, não compreende o cenário da pandemia, nem o fato de que ficou internado. “A gente fica feliz porque parece aparentemente que ele não sofreu, porque ele esqueceu de tudo o que passou”, comenta.

Partilhas

Na perspectiva da psicóloga e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Nara Diogo, o distanciamento físico tem um impacto para os avós e netos, porque é no processo do toque, do abraço e do carinho que as transmissões de afeto podem acontecer de forma mais intensa. Com o afastamento, muitas configurações familiares se reorganizam para lidar com as distintas formas de interação.  

> Avós e netos fortalecem laços afetivos através da tecnologia durante a pandemia

> "Avós da pandemia" relatam primeiro encontro com os netos recém-nascidos

> De geração em geração: netos recordam saberes aprendidos com os avós

É importante que a distância física não se torne uma distância afetiva. O estar em contato, compartilhar histórias, saber como foi o dia, enfim, o tecer o diálogo também pode estar carregado de afeto”, recomenda. 

No cotidiano e nos reencontros, a psicóloga aponta a importância de compartilhar os aspectos sensíveis, como os aprendizados do passado e as histórias de vidas que vão se entrelaçando.

Morte e vida

Legenda: Após a morte da avô, o estudante Túlio Leitão, 24 anos, passou a destinar todos os seus cuidados para o avô recuperado da Covid-19
Foto: Arquivo Pessoal

O estudante de serviço social Túlio Leitão, 24 anos, recebeu a notícia da internação do avô Francisco Ferreira, 78 anos, com uma dor que já carregava o luto pela morte da avó. Uma semana antes, no dia 20 de abril, Carolinda Marinho Leitão, 77 anos, havia falecido em decorrência de um ataque do coração. Enquanto a família tentava se recuperar da perda irreparável, descobriram que o aposentado havia sido contaminado com a Covid-19, precisando ficar dez dias internado. 

“Nós ficamos com medo, muito medo. Perder a matriarca da nossa família foi muito difícil. A gente não aceitaria perder duas pessoas tão próximas. Então, ficamos muito assustados”, comenta Túlio. 

Quando o avô recebeu alta, o reencontro carregava uma vitória de sobrevivência ainda mais significativa para a família.

“Quando ele nos viu, disse que tinha muito medo de não voltar mais. Ele chorou. Desejou várias vezes ver a gente no hospital”, compartilha o neto. Conforme Francisco, a saudade dos familiares era constante.

“Sentia falta de todo mundo. É uma solidão horrível, passar o dia sem ter com quem conversar. Para mim, foi só tristeza e dor. Eu pensava que tinha saído de casa e não voltava mais. Para mim, eu estava morto”, relembra. 

Veja também

Por isso, foi uma alegria muito grande quando recebeu a alta e pôde finalmente sentir o toque de um abraço familiar. Túlio carrega muita gratidão por todos as risadas compartilhadas, as conversas trocadas na madrugada, as confraternizações nos almoços de domingo e os ensinamentos aprendidos com os avós durante seu crescimento.

Com a perda de Carolinda, o neto relata que não há mais a pergunta de como foi o dia após a chegada do trabalho, nem o som de uma característica e alta risada ecoando pela cozinha. “Sentimos muita falta das conversas deles, de contar as dificuldades que passaram para criar a gente. Os dois gostavam muito de sentar na calçada e conversar. Tudo faziam juntos, eram muito ligados”, conta. 

No entanto, apesar de todas as tristezas, Túlio compreende que a internação do avô se tornou uma distração para a família.

“A gente estava tão imerso no luto que a recuperação dele veio para mostrar que a vida segue, apesar da saudade que não passa. Agora, todo amor que eu ia dar para minha avó, disse que daria para ele, e é o que eu estou fazendo”, finaliza.

Saudade

Desde pequena, Maria Yasmin, 11 anos, estava acostumada a passar os finais de semana na casa do avô, Antonio Otaviano, 65 anos. Durante esses momentos, compartilhavam brincadeiras, conversas e afagos. Com a internação do aposentado, as trocas entre os dois foram bruscamente interrompidas.

“Ele brincava muito comigo, de dominó, de cartinhas, e eu fiquei muito triste. Pensava que meu avô não ia nunca mais ficar do meu lado”, comenta a criança.

Segundo a filha de Antonio, Roseane Otaviano, 30 anos, os primeiros sintomas do coronavírus foram similares aos de uma virose. O medo de que o idoso se contaminasse ao ir para o hospital a fez aguardar por uma melhora. No entanto, com a evidência do cansaço ao respirar, precisou encaminhar o pai para uma unidade de saúde. “A gente fez o teste no laboratório e no mesmo dia soubemos do resultado”, relata. 

Ao todo, foram 38 dias de internação, com a tensão de que a cada ligação pudesse ser um aviso da morte do pai. “Eu tive muito medo por conta do que a gente via todos os dias nos jornais. Para mim, o meu pai não ia mais voltar. Eu tinha muito medo de perdê-lo. É uma sensação horrível passar por tudo o que a gente passou”, afirma. 

Com o retorno de Antonio para casa, Yasmin passou a ajudar o avô com os remédios e as caminhadas ao redor da casa. De tudo o que ela mais sentia falta na figura paterna era a forma como ele era carinhoso com ela. 

“Ele é muito apegado a ela e comentava com a assistente social que sentia muita falta de quando a gente ia para lá no final de semana. Dela correr para abraçar dele. Do contato e do convívio”, afirma. Após o reencontro, avô e neta puderam achar refúgio no conforto e na segurança dos afetos.

Assuntos Relacionados