De geração em geração: netos recordam saberes aprendidos com os avós
Afetos partilhados permitem um novo olhar sobre a vida e evocam boas lembranças e saudades.
Sempre quando é chegada a hora do almoço, várias boas lembranças envolvem a auxiliar de sala Mariana Alves, de 23 anos. É nesse momento que ela recorda do prato que a avó preparava quando a neta tinha ainda pouca idade e ia até sua casa, no bairro Vila Manoel Sátiro, em Fortaleza.
“Devido à ausência dos meus pais na infância, por conta da doença de um dos meus irmãos, ela e meu avô sempre tentavam me animar. E sabiam me ganhar rapidinho, viu?”, conta Mariana. “Uma das comidas maravilhosas da minha avó é o bife acebolado dela. Até hoje, sempre faz no almoço”.
A memória, tão fortemente presente, também traz à superfície os primos e irmãos todos reunidos, pezinhos balançando, sem conseguir acessar a mesa para se alimentar devido ao diminuto tamanho. Ao que a avó, dona Filomena Alves, de 71 anos, colocava uma panela na cadeira de cada um para que sentassem no objeto e pudessem alcançar os pratos. “E dava certo”, lembra a neta.
Cada detalhe desse ganha um colorido a mais na vida de Mariana quando olha para trás e percebe o quanto aprendeu a partir da estreita relação com a avó. Naqueles instantes, e em tantos outros que a vida lhes permitiu vivenciar, sobram ricas lições e experiências. Não à toa, dona Filomena é descrita como um anjo da guarda, alguém para ter perto em todas as horas.
“Minha avó me ensinou a acreditar que, independentemente do que nos aconteça, devemos tirar um aprendizado. Que, mesmo que o dia seja ruim, tem algo que acontece para alegrar aquele instante. E ser sempre gentil, ter o coração bom, mesmo que as pessoas não sejam com você”, enumera.
Herança
Numa gaveta especial no guarda-roupa, Mariana ainda guarda um vestido vermelho de crochê, feito por dona Filomena. Se hoje a peça não cabe mais no corpo evoluído, uma fotografia deu conta de eternizar a alegria em trajar, quando criança, a terna indumentária.
É a esse tipo de registro que a neta e toda a família recorrem quando a saudade fala mais alto, sobretudo neste período de pandemia do novo coronavírus. Desde março, dona Filomena é presença fisicamente ausente. Mariana testou positivo para a Covid-19 em maio e, desde esse momento, as chamadas de vídeo se intensificaram. A avó tem sede de saber como tudo está.
“Quase todos os domingos era certo ir almoçar junto com ela e os outros parentes. Agora, as chamadas são o único jeito de matar a saudade. Ela é do grupo de risco e a amo tanto, que deixá-la em casa segura e saudável é o que me deixa menos preocupada. Sempre cuidar dela, mesmo de longe”.
Os bisavós paternos e maternos de Mariana, já falecidos, também integram essa ternura toda. A partir da incansável força para continuarem trabalhando, ensinaram aos filhos – que, por sua vez, também passaram aos próprios filhos – a lição de nunca se abater diante das dificuldades. “Vovó Maria e vovô Antônio eram uma graça, morria de rir quando chegava na casa deles. Não faltava carinho, amor e felicidade, tinha de sobra”, diz a bisneta.
Presença e resistência
Tendo crescido numa família bastante unida, o ator e professor de artes Plínio Morais igualmente traz à superfície relatos de fartos aprendizados passados de geração em geração. Conta que os quatro avós nasceram no sertão cearense, mudando para Fortaleza em busca de melhores condições de vida. Esse êxodo até hoje mexe com ele, ao mesmo tempo que evoca aprendizados.
“Minha avó materna, Maria Carmelina, falecida aos 79 anos, saiu sozinha com os seis filhos para a Capital depois do falecimento de meu avô, seu esposo. Suou muito varrendo rua pra poder dar comida e educação para minha mãe, tia e tios. Hoje, percebo o quanto isso me atravessa. É graças a eles que estudei pra ser artista, que reconheço a educação como ferramenta transformadora de realidades e defendo a educação pública”, sublinha.
Por meio do esforço dos parentes de longa data, ele também sabe que o sertão e o povo dessa região não se resumem apenas à seca, tristeza e fome. A herança que deixaram traduz-se em um olhar real sobre a riqueza que o sertanejo traz impresso na fronte e nos atos. “Atualmente moro no Rio de Janeiro e não consigo separar a relação de migração dos meus avós com a minha. Ser um nordestino que vive no sudeste é mais um ensinamento deles. É sobreviver fora do seu lugar de origem, reconhecendo o nosso papel na construção desse país”.
Dos quatro avós – Maria Carmelina, João Teles da Frota, Sebastião Helder e Maria Elita da Silva Frota – apenas esta última ainda é viva, com 75 anos. De alguma forma, porém, a presença dela reúne todos os outros, num movimento de amor e partilha.
“Como minha família era muito pobre, não existia algo material que fosse passando de geração em geração. Penso que pode ser também pelo modo de vida que eles cresceram, visto que os ensinamentos, lembranças e sabedorias chegaram na minha geração de forma oral”, explica Plínio. “Mas, parando pra pensar, nós temos muitos álbuns de fotografias antigas que guardamos até hoje. Acho bonito esse hábito de manter objetos na família. É uma forma de preservar a história que originou cada relação familiar, né? Um valor que se atribui além do monetário”.
Companheirismo
Outra recordação que o artista cearense faz questão de mencionar é o fato de as avós sempre estarem presentes nas apresentações teatrais do neto. Bastava olhar para a primeira fila das casas de espetáculos: lá estavam elas, ansiosas para ver Plínio em ação. “Grandes fãs do meu trabalho, nunca perderam um espetáculo”, ri.
“É difícil falar de um momento específico. Tenho muitas lembranças especiais da minha infância, especialmente de minha vó Carmelina fazendo doce de leite quando eu ficava em sua casa, costurando almofadas, assistindo novela... Lembro do meu avô João contando histórias e cantando as músicas que ele gostava. Lembro de ir pro sítio dos meus avós paternos e desenhar no papel para minha avó Elita bordar o desenho. Tudo isso está bem nítido na minha memória”.
Tão forte que, nessa linhagem de inspiradoras matriarcas, não faltam saberes dos mais importantes. Vivos até hoje, têm sede de ganhar novos integrantes que ainda venham a nascer e frutificar na família.
“A força que eles tiveram para construir uma nova vida me move muito. Sou muito grato por eles terem feito o que fizeram, dando o melhor que puderam dentro das suas possibilidades, principalmente minhas avós”, ressalta Plínio.
E a saudade? Essa é tremenda. “Me mudei pro Rio de Janeiro no começo do ano. Logo depois, minha avó Carmelina faleceu. Foi bem difícil não poder passar esse momento perto da minha família. Só tenho uma avó viva agora e não a vejo há cinco meses. A gente se fala regularmente por telefone, mas não é a mesma coisa. Ela era minha vizinha, eu estava sempre na casa dela, agora o máximo que a gente faz pra conseguir se ver é por chamada de vídeo”.
A gratidão, contudo, segue inabalável. “Tenho plena consciência que tudo que me é possível veio delas”.