Transplantes de órgãos: como são feitos e quais os protocolos de segurança das cirurgias no CE

Testagem de doadores para diversas doenças é uma das medidas mais cruciais do processo, segundo especialistas

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Visão de cirurgia de transplante com médicos paramentados, por meio de uma janela de vidro na porta da sala
Legenda: Captação de órgãos e transplantes seguem padrões rígidos de segurança no Ceará
Foto: Yago Albuquerque/Arquivo Diário do Nordeste

Receber um órgão ou tecido transplantado de outra pessoa é determinante para a sobrevida de milhares de pessoas todo ano. O processo, cercado por medidas rigorosas de segurança e no qual o Brasil é referência, foi posto em xeque, neste mês, após seis pessoas receberem órgãos contaminados por HIV, no Rio de Janeiro.

A infecção foi causada por erro nos exames realizados por um laboratório privado que presta serviços ao município carioca, gerando um episódio inédito na história da cidade – e que, segundo o Ministério da Saúde (MS), requer apuração rigorosa para que a confiança da população no sistema não seja abalada.

O Diário do Nordeste buscou especialistas para entender como são feitos e quais os protocolos de segurança adotados na realização de transplantes na rede de saúde do Ceará.

O Estado é referência nacional em transplantes de órgãos e tecidos. De janeiro a junho de 2024, foram realizados 901 procedimentos – só de córnea, número mais alto, foram 633 transplantes, seguidos de fígado (122) e rim (106). Os dados são de relatório da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

No primeiro semestre deste ano, foram identificados pelo sistema de saúde 322 potenciais doadores – em 83 destes casos houve recusa de realizar a entrevista para doação, o que ainda é o principal motivo (43%) para um doador em potencial não se tornar doador efetivo.

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dos doadores identificados estavam elegíveis para realizar a transferência de órgão ou tecido. Do total, apenas 110 concretizaram a doação.

Até junho, mais de 1,5 mil adultos estavam na lista de espera por um órgão ou tecido no Ceará, a maioria (1.370 pacientes) esperando por um rim. Além deles, 21 crianças aguardavam por uma doação compatível de rim (15), fígado (1) e até coração (5).

Testes são feitos no Hemoce

Ampolas com amostras de sangue para exame no Hemoce
Legenda: Exames de sangue de doadores de órgãos são feitos no Hemoce
Foto: Thiara Montefusco/Governo do Estado

A maior parte dos doadores captados pela Central de Transplantes do Ceará, vinculada à Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), vem de internações em hospitais como o Instituto Dr. José Frota (IJF), Hospital Geral de Fortaleza (HGF), Hospital do Coração de Messejana (HM) e até unidades da Região do Cariri e de Sobral.

A informação é do médico Huygens Garcia, chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e presidente do Conselho Consultivo da ABTO.

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Ele frisa também que a realização de exames é um passo indispensável no percurso da doação de órgãos, já que os doadores potenciais são avaliados clínica e laboratorialmente.

“Quando você vai eleger um doador, você vê a história clínica. Se tiver um antecedente de câncer, é descartado. Pelos exames de sangue, se for Chagas positivo, é descartado. HIV positivo, descartado. Hepatite B ou C, descartado. Isso é o que dá segurança ao sistema”, explica.

Segundo Huygens, são feitos exames sorológicos de rotina no doador para identificar:

  • Doença de Chagas;
  • Citomegalovírus;
  • Toxoplasmose;
  • Sífilis;
  • HIV;
  • Hepatites B e C.

O especialista pontua que além da detecção de possíveis doenças, outros testes sanguíneos são realizados para “avaliar a qualidade do órgão”. “No rim, dosamos a ureia e a creatinina; no fígado, as enzimas hepáticas”, exemplifica.

Assim, ele garante: “no Ceará, temos segurança absoluta. Todas as sorologias são realizadas no Hemoce, hemocentro de altíssima qualidade. Não são feitas em laboratórios sem confiabilidade, não há terceirização”.

O SNT é um programa de alta relevância e sucesso, com segurança, transparência e justiça social. É conhecido internacionalmente e reconhecido pela sua qualificação, nenhum paciente tem benefício em relação ao outro.
Huygens Garcia
Médico, professor da UFC e pres. do Conselho Consultivo da ABTO

O Diário do Nordeste solicitou à Sesa uma fonte da Central de Transplantes para entrevista, mas a Pasta afirmou que a representante não tinha disponibilidade.

‘Confiança não pode ser abalada’

O médico Álvaro Madeira Neto, sanitarista e gestor em saúde, destaca a “eficácia do Sistema Nacional de Transplantes e a robustez da formação técnica de quem está à frente”, o que posiciona o Brasil como “o país que mais transplanta pelo sistema público no mundo”.

A triagem clínica e a testagem laboratorial rigorosa dos doadores são, segundo o especialista, a primeira etapa primordial do processo que termina com a recepção de um órgão novo por um paciente.

“Outro ponto importante é ter protocolos padronizados e atualizados, baseado em todas as evidências científicas. Além disso, ter uma logística e uma gestão muito eficientes do armazenamento e do transporte dos órgãos, com monitoramento contínuo em tempo real”, frisa o médico.

Profissionais carregam coolers com órgãos humanos para transplante
Legenda: Transporte de órgãos entre interior e capital cearense é auxiliado pelo Ciopaer
Foto: Divulgação/Sesa

Álvaro alerta, ainda, sobre a importância de uma “comunicação clara e contínua entre todos os setores envolvidos – hospitais, laboratórios, banco de órgãos e centros de transplante – para uma maior a segurança do paciente”.

Um terceiro ponto crucial da cadeia entre doador e receptor são os testes de compatibilidade entre eles. “Falhas nesse teste poderiam, por exemplo, comprometer o procedimento”, avalia o gestor em saúde, reiterando que o Ceará é uma referência mundial no assunto.

Situações que fogem do padrão aceitável, como houve o relato (no RJ), têm que ser tratadas de forma muito transparente e assertiva pelas autoridades competentes, porque a população confia na nossa rede e essa confiança não pode ser abalada.
Álvaro Madeira Neto
Médico sanitarista e gestor em saúde

O membro da ABTO, Huygens Garcia, acrescenta que é necessário fortalecer a confiança da população nessa rede. “Sem doação de órgãos não há transplante. Precisamos diminuir a taxa de negação familiar: 45% das famílias de pacientes com morte cerebral dizem ‘não’ à doação”, informa.

“E quem está na fila do transplante renal, de coração, fígado etc. pode ter certeza de que vai receber órgãos de qualidade e seguros, com testes de altíssima qualificação nacional e internacional. O risco de morrer na fila é centenas de vezes maior do que o de contrair alguma infecção na transplantação”, compara o médico.

Reforço nas normas de segurança

Após o caso ocorrido no Rio de Janeiro, o Ministério da Saúde emitiu nota afirmando que “a situação está sendo tratada com extrema seriedade, visando cuidar dos pacientes e suas famílias e preservar a confiança da população nesse serviço essencial”.

O MS reforçou que “o SNT é reconhecido como um dos mais transparentes, seguros e consolidados do mundo”, com “normas rigorosas que visam proteger tanto os doadores quanto os receptores, garantindo que os transplantes realizados no país mantenham um alto nível de confiabilidade”. 

“O SNT possui dispositivos regulatórios que já preveem protocolos específicos para a redução de riscos, como a transmissão de doenças infecciosas, e está em constante atualização para acompanhar os avanços médicos e científicos nessa área”, complementa a Pasta federal.

De acordo com a nota, o MS e os demais agentes sanitários “reforçaram as normas e orientações técnicas, que já são robustas, com o intuito de aprimorar os procedimentos de identificação de doenças transmissíveis antes da doação”.

“Esse esforço visa reduzir ainda mais as chances de transmissão de infecções como o HIV ou a Hepatite C, garantindo que o sistema de transplantes no Brasil continue a operar dentro dos mais altos padrões de segurança. O MS reforça o compromisso com a segurança e a transparência no processo de doação de órgãos.”

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