Terreiro de matriz afro-indígena reage após Prefeitura de Sobral decidir doar terreno para Igreja

Espaço utilizado para cultos de umbanda, jurema sagrada, druidismo e até wicca já foi alvo de ataques físicos

Escrito por
Nícolas Paulino nicolas.paulino@svm.com.br
Espaço com estátuas de pedra e círculo destinado ao culto de matriz africana e indígena, cercado de árvores e plantas em Sobral
Legenda: Espaço Ancestral existe desde 2016 e já foi consagrado por povos de terreiro
Foto: Reprodução

A doação de um terreno público para a construção de um novo templo da Igreja Católica tem gerado polêmica em Sobral, na região Norte do Ceará. Isso porque, há quase 10 anos, o espaço natural rodeado de áreas verdes já é utilizado por membros de religiões de matriz africana e indígena, que veem indícios de intolerância religiosa na condução do processo.

No dia 21 de agosto, o prefeito de Sobral, Oscar Rodrigues, encaminhou à Câmara Municipal o Projeto de Lei que autoriza a doação de um terreno pertencente ao município à Diocese de Sobral. O objetivo é a implantação do Santuário da Divina Misericórdia e de um Centro de Pastoral e Promoção Humana.

O imóvel, localizado no bairro Antônio Carlos Belchior, tem mais de 18 mil m². Conforme a mensagem do prefeito, o projeto tem caráter “não apenas religioso, mas também social e comunitário”, prevendo a realização de programas voltados para a assistência de pessoas em situação de vulnerabilidade.

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A Comissão Permanente de Finanças, Justiça e Redação da Câmara Municipal de Sobral já deu parecer favorável à matéria, na última sexta-feira (12). Agora, o projeto aguarda análise e votação dos vereadores em sessão ordinária, prevista para esta segunda-feira (15).

No entanto, frequentadores do Espaço de Cultura Ancestral de Sobral e parte da comunidade do bairro iniciaram uma mobilização de resposta. Segundo eles, como a gestão municipal não se dispôs a dialogar sobre alternativas à doação, decidiram protocolar uma notícia de fato ao Ministério Público do Ceará (MPCE).

A peça descreve que os povos de terreiro utilizam o terreno de mata ciliar - vegetação que recobre e acompanha as margens de rios e suas nascentes - há cerca de 10 anos para rituais de Umbanda e Jurema Sagrada, para os quais “essa mata e córrego são seu templo sagrado”.

Homens e mulheres com vestes de religiões africanas cantam, batem palmas e dançam durante ritual
Legenda: Membros de diferentes religiões africanas e indígenas se reúnem em espaço verde de Sobral
Foto: Reprodução

Membro da comunidade, Antonio Alancardé lembra que o terreiro é utilizado por religiões que têm “como base a natureza como divindade sagrada” desde 2016, e foi consagrado pelos Povos de Terreiros de Raiz Afrodescendente e Indígena, em 2020.

Por lá, se reúnem membros da:

  • Umbanda: os Orixás são divindades que representam as energias da natureza e os diferentes aspectos da vida, organizadas em linhas de trabalho e regidas pelo Deus supremo, Olorum;
  • Jurema Sagrada: fundamenta-se na crença em espíritos (caboclos, mestres e mestras) que, através da bebida da planta de mesmo nome, se manifestam em rituais para oferecer cura, sabedoria e orientação, conectando-se com a tradição ancestral dos povos indígenas do Nordeste brasileiro e influências africanas;
  • Druidismo: os praticantes têm reverência pela Natureza, buscando sabedoria e verdade, a crença na interconexão de todas as coisas, o amor à vida e um compromisso com o equilíbrio e a preservação do planeta; 
  • Wicca: religião centrada na Terra e na natureza, com raízes em práticas herdadas de ancestrais xamânicos.

O espaço de congregação já foi alvo de dois ataques físicos: em setembro de 2022 e em junho de 2023. Nas duas ocasiões, estátuas e altares foram destruídos, assim como plantas foram arrancadas. 

“Meu sentimento é de indignação porque vivemos em um país laico em que, em pleno século 21, ainda acontece esse tipo de massacre com as outras religiões”, desabafa Alancardé. 

Apesar das investidas violentas, os cultos e giras continuam acontecendo normalmente. “Nos mantemos firmes porque nossos ancestrais nos ensinam até hoje que é na resistência que existe o poder de mudança”, afirma.

No Brasil, a pena para quem pratica ato de intolerância religiosa foi aumentada em 2023 com sanção da Lei 14.532, que equipara injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. 

A penalidade varia de 2 a 5 anos de prisão, além de multa, para quem para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. É a mesma pena prevista para o crime de racismo, que é inafiançável e imprescritível.

Montagem de fotos mostrando estátuas e altares intactos em terreiro de umbanda, à esquerda, e materiais destruídos à direita
Legenda: Antes e depois: integrantes do grupo documentaram destruição de espaço, estátuas e altares
Foto: Reprodução

Necessidade de preservação ambiental

Além da questão religiosa, a comunidade do bairro ressalta que a área tem um córrego com mata ciliar em estágio secundário de regeneração. “A água cristalina é fonte de hidratação para uma fauna diversa que se destaca com mais de 200 espécies de aves e até mamíferos maiores, como gato do mato e cachorro selvagem”, explica Antonio. 

Na peça apresentada ao MPCE, os moradores defendem que o último Plano Diretor da cidade, aprovado em 2023 (Lei 92/2023), preza pela “proteção e a recuperação da qualidade ambiental dos recursos hídricos”. Logo, as margens do córrego do espaço deveriam ser preservadas.

“A tendência, com o tempo, é que a mata ciliar possa se regenerar completamente, resultando em um riacho com aporte d'água ainda maior”, exploram no documento, que contou com consultoria da bióloga Maria Luiza Ribeiro.

Além disso, reforçam que obras “como a pretendida pela diocese, que matam um córrego e retiram a mata ciliar, implicam em sérios transtornos para a vizinhança, como aumento da temperatura no microclima do bairro e da cidade, possibilidade de alagamentos e infestações de vários animais, como escorpiões”.

Área verde extensa na cidade de Sobral. Ao fundo, há alguns prédios e construções e céu nublado
Legenda: Bióloga aponta em manifestação que espaço natural tem importância para o ecossistema local
Foto: Reprodução

Após o recebimento da notícia de fato, a Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça de Sobral, vinculada ao MPCE, determinou a distribuição do caso para as Promotorias com atribuição extrajudicial na defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa.

Segundo a análise inicial, “até o momento, não há registro de qualquer tipo de dano ambiental ou religioso ocorrido na área mencionada, tratando-se de manifestação preventiva e de controle social sobre o uso do espaço público”.

Entre os próximos passos, a Secretaria descreve que pode haver o acompanhamento integral da tramitação do Projeto de Lei nº 113/2025, que visa à doação do terreno; a fiscalização da legalidade e finalidade da doação do imóvel público, “objetivando sempre o interesse público”, e, se necessário, a realização de audiência pública.

O que dizem a Prefeitura e a Diocese?

Procurada pela reportagem, a Diocese de Sobral declarou apenas que a quase-paróquia - uma comunidade de fiéis confiada a um sacerdote próprio e que, por determinadas circunstâncias, ainda não foi erigida como paróquia - “só ganhou o terreno”. A entidade sugeriu buscar mais informações com a Prefeitura.

Por sua vez, a assessoria de comunicação do Gabinete municipal não respondeu aos questionamentos sobre a falta de diálogo com os usuários do Espaço de Cultura Ancestral. O Diário do Nordeste fez sucessivos contatos com o órgão desde o dia 4 de setembro, mas não obteve retorno.

No projeto de lei enviado à Câmara Municipal, consta que o Processo Administrativo sobre a doação reúne a documentação comprobatória da titularidade municipal, estudos técnicos de viabilidade urbanística, certidões fiscais e pareceres jurídicos favoráveis, inclusive da Procuradoria-Geral do Município.

Caso o projeto seja aprovado, como contrapartida à doação, a Prefeitura exige que as obras de construção do templo sejam iniciadas no prazo máximo de 12 meses a partir da lavratura da escritura pública, e concluídas em até 36 meses a partir do início.

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