Proibição de celular nas escolas é discutida há quase 20 anos em projetos nunca aprovados no Brasil
Mais da metade das propostas de lei que continuam tramitando na Câmara dos Deputados foram apresentados nos últimos dois anos; MEC deve propor uma medida nacional sobre o tema até outubro
A regulamentação do uso de celular nas salas de aula brasileiras já mobiliza parlamentares de diferentes partidos e estados há quase duas décadas. Existem leis municipais e estaduais que normatizam essa prática e pelo menos 17 projetos de lei (PL) já foram apresentados na Câmara dos Deputados, desde 2007, para a criação de uma regra nacional. Na última quinta-feira (19), o Diário do Nordeste noticiou que o Ministério da Educação (MEC) está trabalhando para propor uma medida nesse sentido até outubro.
De forma geral, os projetos de lei já apresentados sobre o tema justificam a proibição ou regulamentação do uso do celular nos estabelecimentos de ensino pelo impacto na concentração dos estudantes e por causarem problemas no processo de aprendizagem. Eles também defendem o uso dos aparelhos como recurso pedagógico, com orientação dos professores.
Em suas justificativas, há textos que apontam relatos de professores sobre a utilização inadequada dos equipamentos e pesquisas sobre o assunto, além de apontar situações como troca de mensagens, jogos, uso de redes sociais e acesso a pornografia e a cenas de violência por meio dos aparelhos.
Nos projetos mais recentes, são citados aspectos como o prejuízo para a socialização entre os estudantes e os impactos do uso excessivo dos eletrônicos para a saúde mental e física. A necessidade de inclusão e de acessibilidade só foi inserida nas propostas a partir de 2018, quando os projetos passaram a prever a permissão do uso dos aparelhos por estudantes com deficiência.
O levantamento feito pelo Diário do Nordeste contempla as proposições apresentadas na Câmara dos Deputados até hoje. Não foram encontrados documentos no site do Senado Federal. Veja no gráfico abaixo as propostas sugeridas pelos parlamentares.
PROJETO EM TRAMITAÇÃO
Dos 17 projetos de lei encontrados no site da Câmara dos Deputados, quatro foram arquivados e outros 12 estão apensados ao PL 104/2015, de autoria de Alceu Moreira (PMDB/RS), apresentado em 3 de fevereiro daquele ano. Mais da metade desses que continuam tramitando foram apresentados nos últimos dois anos.
O PL 104/2015 propõe proibir o uso de todo tipo de equipamento eletrônico portátil nas salas de aula tanto para a educação básica quanto para o ensino superior. O parecer do relator, cuja versão mais recente foi apresentada pelo deputado Diego Garcia (Republicanos/PR) no dia 24 de maio de 2024, aponta propostas para que essa restrição seja diferente conforme a etapa de ensino.
- Proibição de porte e uso de aparelho eletrônico portátil pessoal para os alunos da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental;
- Autorização de uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula para fins estritamente pedagógicos;
- Porte e uso de aparelho eletrônico portátil pessoal aos alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio, bem como dos alunos com deficiência, independentemente da etapa de ensino e do local de uso, com vistas aos processos de acessibilidade de que necessitarem.
Essas especificidades estão presentes no substitutivo aos 12 projetos de lei, que prevê os seguintes pontos: discussão periódica, em reuniões com pais e familiares, sobre sofrimento psíquico e saúde mental dos alunos da educação básica; treinamento periódico de professores e educadores para detectar, prevenir e abordar sinais desses sofrimento; e disponibilização de espaços de escuta e acolhimento para receber alunos e funcionários que necessitem de ajuda.
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MUDANÇAS NA SOCIEDADE
Entre o início desse debate no Legislativo brasileiro e o anúncio de que o Executivo prepara uma medida nacional para regular o uso dos celulares na escola, muita coisa mudou. Não só os aparelhos foram sendo aprimorados como as problemáticas envolvendo o uso excessivo deles foram se tornando mais complexas.
No Brasil, cresceram os debates sobre regulação das redes sociais e se discutiu sobre a responsabilidade dessas plataformas na onda de ataques a escolas em 2023. Outros países, como França, Holanda, Itália e Estados Unidos, passaram a adotar medidas para restringir o uso de celular nos estabelecimentos de ensino.
Além disso, relatórios e levantamentos internacionais apontam impactos negativos do uso do celular para a concentração e para a aprendizagem. O relatório de Monitoramento Global da Educação, publicado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no ano passado, por exemplo, destacou que “a tecnologia pode ter um impacto negativo se for inadequada ou excessiva”.
“O problema foi crescendo em relação a isso. Então, possivelmente, toda essa problemática, todo o acúmulo, todo a questão internacional, os países que estão fazendo, deve estar impactando na questão da decisão dessa ação por parte do Executivo”, afirma Catarina de Almeida Santos, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).
Para a docente, apesar de haver dados do cenário internacional, ainda é necessário observar as peculiaridades do Brasil e fazer um debate mais amplo com a sociedade sobre como essa medida será adotada. “Temos uma complexidade de questões para lidar com esse país de dimensões continentais, de tantos sistemas de ensino”, afirma.
Esse debate precisa ser feito, ser amadurecido, ter uma compreensão dos pais, entender quais são as regras. E onde vai ser isso? Você tem a questão, por exemplo, da Educação Profissional. Os alunos vão ter laboratórios (multieducativos), espaços de experimentação? E se eu não uso as tecnologias, preciso ter mais bibliotecas, espaços mais interessantes ou outras tecnologias que não seja celular e internet. Precisamos pensar nisso, porque faz parte da vida e da cultura dessa sociedade.
Santos destaca que toda a sociedade deve estar envolvida nessa discussão. Da organização das famílias até a dinâmica no dia a dia da própria escola, todos os atores — gestores, educadores, pais e estudantes — serão impactados por essas decisões.
“Se você tem um país de 202 milhões de habitantes em que 58 milhões são estudantes, a sociedade brasileira está funcionando em torno disso. Então, quando você diz ‘não vai ter isso na escola’ ou ‘a escola vai ser desse jeito’, esse debate precisa ser feito com a sociedade — e uma sociedade que funciona pelo meio do celular. Não é algo simples”, afirma.
A importância de os diferentes atores envolvidos nesse contexto serem ouvidos também é destacada por Silvia Lima, pesquisadora, especialista e gerente na área da Educação - Formação de Educadores e Advocacy do Instituto Ayrton Senna. Ela pondera que não existe um consenso sobre o tema, inclusive entre os membros do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), por exemplo.
Um bom exemplo, para ela, é o da Holanda, onde celulares, tablets e relógios inteligentes estão banidos das salas de aula desde o início deste ano. A pesquisadora explica que, nesse caso, as regras foram combinadas entre a escola e os pais dos estudantes e serão avaliadas no final do ano letivo. “Não basta só decidir, tem que monitorar e avaliar de forma conjunta também”, diz.
Lima defende o uso do celular como uma ferramenta útil para alguns momentos, “mas não a única”, e que é importante possibilitar trabalhos em equipe, com discussões, por exemplo, sobre o que foi pesquisado pelo estudante no aparelho. Além disso, ela defende que essa problemática não se restringe ao ambiente escolar e que o tempo de uso em casa deve fazer parte desse debate.
Quanto tempo ele fica (no celular)? Ele está podendo usufruir com os pais, com os familiares, com os amigos, de outros momentos que não só via digital? (Deve-se) pensar em regras que vão para a educação desse estudante como um todo, na escola e em casa. Todos têm que falar a mesma língua.
O contexto familiar, em que a criança vê as pessoas de referência utilizando o aparelho — muitas vezes por longo período — também é apontado pela doutora em Educação e ex-secretária de Estado da Educação e da Cultura do Rio Grande do Norte, Cláudia Santa Rosa. Isso faz parte do motivo pelo qual, para ela, os projetos que tramitam no Legislativo ainda foram aprovados. “Quem vai arcar com esse custo de dizer: ‘nós vamos proibir o uso do celular a partir de agora nas escolas’?”, aponta.
Por outro lado, ela aponta que o uso do aparelho e da tecnologia é uma forma de atualizar a escola e aproximá-la dessa geração de estudantes. “Provavelmente, por não existir esse consenso, tenham, de certa forma, deixado de lado”, avalia. A entrada do Poder Executivo nesta regulamentação, é vista por ela como um “fracasso”, uma vez que as escolas deveriam conseguir, por meio do regimento interno, definir normas sobre o assunto.
Lamento a gente precisar chegar a um estado desse porque vejo sempre a tecnologia com um potencial incrível de aproximação dos estudantes do conhecimento, da pesquisa, de ampliação de visão de mundo, com o uso adequado, orientado. Acho que toda essa questão se instala pelo uso inadequado. A questão dos limites é que está em predominância para a tomada de uma decisão dessas, de buscar mais uma lei federal pela incapacidade de autocontrole, de educar para autonomia, de educar para o uso correto adequado da tecnologia.
Com isso, ela afirma ser contrária a uma lei que defina uma única solução para todas as instituições do País. A educadora espera que a autonomia das escolas seja respeitada — tanto para que as escolas que conseguem fazer bom uso dos aparelhos possam continuar o trabalho quanto para respaldar aquelas que precisam de apoio federal para normatizar o tema.
“Entendo que as coisas precisam ser dosadas, respeitando a possibilidade de escolha. E, se isso está tão sério assim que precisa ter uma lei federal, que ela ressalve essas escolhas das escolas”, complementa.
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Para o ex-ministro da Educação e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, a tecnologia deve ser entendida como uma aliada do conhecimento, e não como inimiga, mas pondera que a finalidade do uso do celular mudou com o passar do tempo.
Atualmente, ele destaca que os aparelhos têm servido essencialmente ao entretenimento. “E entretenimento não é útil para a educação”, afirma ele, que também é docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
A quantidade de ferramentas digitais existentes pode ser benéfica para o aprendizado, mas, para Ribeiro, essa estratégia funciona melhor com tablets do que com smartphones. “Quando fui ministro, estávamos pensando muito na passagem do livro para o formato digital”, conta. Disponibilizar o conteúdo em um tablet possibilita o acesso a links externos e pesquisas, por exemplo.
Outro aspecto citado pelo docente é a necessidade de se aprender a utilizar as ferramentas de forma positiva. “Isso tudo está ligado com outra questão, que é como a escola vai ensinar as pessoas a lidarem com o mundo digital, que por enquanto está uma terra sem lei. Tem que ter leis, regras e sobretudo aprender a usar”, diz ele, relembrando os jogos perigosos que podem colocar a vida de crianças e adolescentes em risco.