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Caso Choquei: quais as regras vigentes e o que é discutido sobre regulação das mídias no Brasil

A morte da jovem Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, após ser vítima de notícias falsas, reacendeu debate sobre o tema e sobre a responsabilização das plataformas no País

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Choquei
Legenda: Informações falsas sobre Jéssica Vitória foram divulgadas pela Choquei, o que acabou levando a jovem a tirar a própria vida
Foto: SVM

A morte da jovem Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, reacendeu o debate a respeito da regulação das redes sociais e da necessidade de responsabilização de quem usa estas plataformas para espalhar informações falsas. Pouco antes do Natal, Jéssica teve a imagem veiculada pela página de fofocas Choquei — que possui mais de 20 milhões de seguidores — como sendo um suposto 'affair' do humorista Whindersson Nunes.

A publicação foi feita com base em prints forjados de conversas entre os dois. Apesar de Jéssica e Whindersson terem negado qualquer relacionamento e ressaltado que sequer se conheciam, a notícia não foi retirada e acabou sendo reverberada por outras páginas e perfis de fofocas no Instagram e no X (antigo Twitter). 

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Jéssica Vitória e a mãe, Inês de Oliveira, usaram os próprios perfis para falar sobre o sofrimento que a notícia falsa causou na jovem. "Até quando você vai fazer com que eu seja ridicularizada, xingada, ameaçada e continue perdendo pessoas que eu amo?", questionou Jéssica por meio do próprio perfil. Os ataques sofridos pela jovem após a divulgação das fake news acabou agravando o quadro de depressão enfrentado por Jéssica Vitória. 

O caso — que está sob investigação da Polícia Civil de Araguari, em Minas Gerais — reverberou entre a classe política brasileira, reacendendo o debate em torno da regulação das mídias sociais proposta pelo Projeto de Lei (PL) 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. O texto chegou próximo à votação no primeiro semestre de 2023, mas acabou travando na Câmara dos Deputados e tendo a análise adiada para 2024. 

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Quais legislações já existem? 

A solução, no entanto, não passa apenas por uma nova legislação. "Acaba tendo uma dinâmica do Congresso e da sociedade de reagir a algumas questões, quando casos mais dramáticos como esse vêm a tona, se pensa sempre em uma saída legislativa", aponta a professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do DiraCom – Direito à Comunicação e Democracia, Helena Martins. 

"Uma série de legislações já existem e podem ser aplicadas no âmbito da internet. Tanto legislações que dizem respeito a condutas, a proteção de direitos, digamos, no mundo offline (...) e também outras regras que já são forjadas para lidar com esse universo digital", acrescenta. 

Martins ressalta algumas legislações que podem ser utilizadas neste caso, apesar de terem sido formuladas, inicialmente, para o "mundo offline". Entre eles, os crimes contra a honra, como injúria e difamação, além da Lei Maria da Penha — que trata especificamente de violências cometidas contra mulheres.

O gênero é um elemento que não pode ser descartado nos ataques sofridos por Jéssica Vitória. A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ressaltou a questão após a notícia da morte da jovem. "É mais uma tragédia fruto da irresponsabilidade de perfis nas redes sociais que lucram com a misoginia e disseminação de mentiras e, igualmente, da falta de responsabilização das plataformas", destacou.

Dados do Observatório Brasileiro de Violência On-line, da Universidade de Brasília, apontam as mulheres entre 14 e 35 anos como as maiores vítimas de violência online, representando 75% das vítimas. 

Na perspectiva de proteger as mulheres de crimes de ódio na internet, foi sancionada, em 2018, a Lei Lola — inspirada na professora e blogueira cearense Lola Aronovich. A legislação acrescentou, entre as atribuições da Polícia Federal, a responsabilidade de investigar "crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres".

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Falta efetividade

Além da Lei Lola, outra legislação que pode ser utilizada para pensar a regulação do ambiente online é o Marco Civil da Internet. Sancionado em 2014, o Marco é responsável por regularizar o uso da internet no Brasil, estabelecendo direitos, deveres e garantias no meio digital.

A professora Helena Martins chama atenção, no entanto, para outra legislação que pode ter maior aplicabilidade em casos como o que levou à morte de Jéssica Vitória. Ela explica que o modelo de negócios de páginas como a Choquei que se baseia na "lógica do vale tudo para chamar a atenção, para gerar cliques, para gerar, em última instância, lucro. Audiência e lucro", resume. 

A lógica é movida a partir da segmentação dos públicos, ou seja, da construção de 'bolhas digitais' — as plataformas possuem algoritmos que direcionam conteúdos para os usuários de acordo com o histórico de interesse registrado por meio de curtidas, compartilhamentos, buscas. Um processo que cria 'bolhas' onde são mostrados apenas o conteúdo que a plataforma identifica como sendo de interesse daquele usuário. 

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Para essa construção, portanto, são necessários dados. Justamente o que é protegido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 2018. 

A legislação impõe limitações ao uso de dados pessoais, estabelecendo a necessidade de "propósitos legítimos, específicos e explícitos", além de "compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular" e "limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades". 

"Tem uma previsão geral da lei, que é a utilização de dados apenas para quando for necessário, de forma proporcional e específica. O que a gente sabe é que essas corporações, tanto o Facebook, Twitter, quanto também as empresas que operam em cima dessas corporações, utilizam muito mais dados do que esses para poder construir públicos específicos", aponta Helena Martins. 

Ainda falta, no entanto, efetividade na LGPD, principalmente pela falta de uma maior fiscalização da aplicação do estabelecido no texto. Martins cita a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada para fazer esse acompanhamento. "O número de casos da ANPD já criou e concluiu é mínimo. Então a gente precisa ter um mecanismo de acompanhamento, de fiscalização, de cobrança das empresas para que essa dinâmica como um todo seja enfrentada", ressalta.

Proposta de novas legislações

Whindersson Nunes gravou um vídeo, no domingo (24), para lamentar a morte de Jéssica Vitória. Durante a fala, ele defende a criação de uma lei batizada com o nome da jovem. "Quero iniciar um movimento para ver se contribui para a gente criar uma lei chamada Jéssica Vitória, para aprimorar a legislação brasileira com esse 'jornalismo não oficial' que é muito perigoso. Tem gente que tem muito seguidor e diz que não é uma coisa oficial, mas é uma coisa que impacta de verdade milhares de pessoas", disse. 

Ele não foi o único a defender a necessidade de regulação das redes sociais. O ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida reforçou que a solução para prevenir casos com este passa por "questões de natureza política". 

"A irresponsabilidade das empresas que regem as redes sociais diante de conteúdos que outros irresponsáveis e mesmo criminosos (alguns envolvidos na política institucional) nela propagam tem destruído famílias e impossibilitado uma vida social minimamente saudável", criticou.  

Torna-se, então, um "imperativo civilizatório" a regulação das redes, acrescentou o ministro. O destaque é semelhante ao feito pelo deputado federal Orlando Silva (PT-SP): "Mudar o regime de responsabilidade das plataformas digitais é um imperativo político e até moral que o Congresso deve  enfrentar", ressalta. 

O enfrentamento ocorreria, segundo o parlamentar, por meio da discussão do Projeto de Lei (PL) 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. Orlando da Silva é o relator da proposição que está aguardando a votação na Câmara dos Deputados. Apesar de ter iniciado como um projeto contra a disseminação de informações falsas, o texto foi ampliado para regular o funcionamento das plataformas digitais no Brasil. 

A iniciativa trata desde aspectos amplos, como a necessidade de maior transparência por parte das empresas – como funcionamento de algoritmos e moderação utilizada internamente – até pontos específicos, como a ampliação da imunidade parlamentar para as redes sociais e a determinação de regras para contas consideradas de interesse público.

Martins aponta que existem pontos trazidos pelo PL 2630 que se relacionam diretamente com o que ocorreu. "O ponto central do caso como um todo, além dessa dinâmica Economia da Atenção, é a falta de mecanismo de diálogo direto com as plataformas, o que a gente chama de devido processo", explica.

A professora argumenta que existem poucos mecanismos para informar a uma plataforma digital que um conteúdo é falso e nenhum retorno sobre quais medidas estão sendo tomadas quanto a isto — ou mesmo se alguma medida está sendo feita pela ferramenta. 

"É uma medida necessária, e que está no (PL) 2630, criar um procedimento de devido processo para que as pessoas tenham como reclamar, tenham prazos, possa ter um acompanhamento posterior a partir de relatórios de transparência. O que que a empresa fez com essas reclamações? Quantas postagens foram derrubadas ou tiveram outros tipos de moderação? É muito importante, porque ele fala desse caso da Jéssica e fala de muitos outros casos que acontecem, seja de golpe virtual, de sexting, em que simplesmente a gente fica apelando para que alguma coisa aconteça sem ter nenhum controle sobre isso", detalha. 

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Existem ainda mecanismos previstos no projeto de lei que permitem ao usuário escolher não ter conteúdo direcionado a partir dos dados usados para segmentação de públicos, além de proibir a formação de 'bolhas' a partir de dados coletados, por exemplo, de crianças. 

Diante da morosidade no avanço do PL das Fake News, outras iniciativas surgem no Legislativo prevendo medidas mais específicas ao caso Jéssica Vitória. Exemplo disso é o projeto de lei apresentado pelo deputado federal Célio Studart (PSD-CE) prevendo punição, desmonetização e inviabilização de contratos com páginas que divulguem fake news que induzem ao suicídio. A proposta altera o artigo 122 do Código Penal.

"É necessário ter responsabilidade com a vida dos outros. Até que ponto vai a busca por likes? Saúde mental é coisa séria",  ressaltou o parlamentar pelas redes sociais. “É um absurdo o que estamos vendo neste país, em que páginas destroem a vida das pessoas”, completou.

Pressão para o Congresso Nacional

Havia expectativa de que o texto do PL 2630 seria discutido ainda no primeiro semestre de 2023, mas a votação acabou adiada na Câmara de Deputados. Um dos principais entraves foi a criação do órgão que regule as plataformas digitais — considerados por especialistas da área um ponto fundamental para a efetividade da proposta. 

A morte de Jéssica Vitória, no entanto, pode pressionar os parlamentares a voltar às discussões para impedir que outros casos como esse aconteçam no País. Algo semelhante foi visto durante os episódios de ataques a escolas, no início de 2023. Na época, houveram publicações de incitação a violência contra instituições de ensino. 

A manifestação de ministros do Governo Lula e de parlamentares, mas também a mobilização de influenciadores de grande impacto, como Whindersson Nunes, pode ser importante nesse processo.

"A gente tem uma boa oportunidade de fazer avançar essa discussão e eu alertaria isso: não é possível que a gente espere um novo caso de violação de direitos para poder entender que é preciso repensar esse ambiente online", ressalta Martins. "Há um ano, a gente fez essa discussão e agora de novo. Então, é urgente que a gente dê passos na garantia de direitos na rede". 

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