Feed infinito de redes sociais vicia e tentar parar pode gerar abstinência: ‘prejuízos ao cérebro’

Imersão em vídeos gera problemas mentais, cognitivos e se compara à dependência química, aponta psicóloga

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: De problemas de memória a ansiedade, uso excessivo das telas tem afetado cérebro humano
Foto: Camila Lima

Quando Melissa* desperta, a primeira luz que invade os olhos não é a do sol – é azulada. Com a vista ainda turva, checa mensagens e notificações, e ali mesmo começa a rolar os feeds infinitos de redes sociais. Muita coisa acontecendo nos primeiros minutos do dia.

O desenho atual dos aplicativos de redes sociais se assemelha: não é segredo, vídeo vale mais. Assim, o Instagram, por meio dos Reels; o YouTube, com os Shorts; e os próprios TikTok e Kwai em si apostam em rolagens infinitas de conteúdos para “prender” as pessoas por horas.

O Diário do Nordeste buscou usuários e especialista para entender: por que o “mergulho” nesses plays automáticos está tão inevitável? Quais os efeitos dele à mente de crianças, adolescentes e até adultos?

Para Melissa*, 18, a imersão se prolonga por todo o dia. “Atualmente, é assim, porque tô bem ociosa, esperando a faculdade começar. E esses vídeos são um entretenimento muito prático. Às vezes, se eu ficar sem celular, eu fico um pouco ansiosa”, confessa a jovem, que prefere não ser identificada.

Legenda: Sete horas e meia: este foi o tempo gasto por Melissa* diante do celular em apenas 1 dia; quase 5h foram dedicadas a Instagram e WhatsApp
Foto: Reprodução

As tentativas de reduzir o tempo de tela só tiveram algum sucesso durante o último ano do ensino médio, já que ela “tinha que ver muitos conteúdos e às vezes perdia quase um dia todo no celular”.

“A ansiedade bate demais, porque eu sinto que poderia ter gastado meu tempo com algo de mais futuro ou mais produtivo. Percebo que perdi tempo mesmo quando vejo que a bateria tá perto de descarregar”, diz.

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“Não consigo ler mais”

A administradora Isabela Batista, 28, vive uma angústia semelhante: já chegou a suspender os perfis que mantinha em redes sociais numa “tentativa de parar”. Voltou alguns dias depois. “Eu chegava do trabalho cansada e ficava pensando em como seria bom relaxar vendo os vídeos que eu gosto no Reels. No fim, acabei reinstalando tudo”, lembra.

Deslizar o dedo tela acima de forma incessante é uma tarefa que ocupa “pelo menos umas 2 a 3 horas do dia”, segundo estima Isabela. 

“No fim de semana, se eu não sair de casa, passo mais tempo. É uma distração simples, fácil”, pontua, como que tentando achar a razão para tempos de tela tão longos. 

Esse “vício”, como ela mesma define, tem repercutido na concentração: Isabela sente que não consegue mais dedicar o tempo livre a outras atividades.

“Antes, eu conseguia pegar um livro e ler várias páginas seguidas, de boa. Hoje, leio duas, três, e já pego o celular. Quando percebo, já deixei a leitura de lado”, lamenta.

Vício se compara à dependência química

Legenda: "Vício" em telas atinge todas as idades
Foto: Camila Lima

A dificuldade de concluir tarefas, a diminuição da atenção e das funções cognitivas em geral são alguns dos mais sérios e frequentes efeitos do uso excessivo de telas, como lista a psicóloga Carolina Ramos. Os prejuízos atingem todas as faixas etárias.

“Com essa sensação de que tudo precisa ser acelerado, os jovens têm dificuldades em concluir tarefas. Até pra assistir a um filme de 1h30, 2h. E o que acontece? Aumenta a ansiedade. Esse uso excessivo traz, sim, prejuízos ao nosso cérebro”, alerta.

Isso causa aumento da ansiedade, de comportamento impulsivo, prejuízo na atenção, na memória, na cognição. Para os adultos, pode prejudicar o rendimento no trabalho. Muitas vezes, os adultos utilizam as redes sociais pra compensar o estresse do próprio trabalho.
Carolina Ramos
Psicóloga

Mas existe isso de vício em redes sociais? “Sim, e pode ser comparado a uma dependência química”, inicia Carolina. “Na dependência, o usuário faz o uso de substâncias e chega um momento em que aquela dose não é mais suficiente. Então ele busca cada vez doses maiores. Com o uso do TikTok é a mesma coisa”, complementa.

A psicóloga explica que esses apps foram “feitos para serem viciantes”, já que inserem o usuário numa bolha de conteúdos que o agradam. “Quando você está assistindo, o cérebro libera um neurotransmissor chamado dopamina, responsável pela sensação de prazer. Com esse feed infinito, cada vez mais você busca essa sensação.”

Isso pode gerar um vício, mesmo. Nosso cérebro tem um sistema de recompensas, então quer cada vez mais doses maiores de dopamina. Por isso, muitos usuários, quando notam, já passaram até 4 horas rolando o feed. A pessoa esquece o mundo externo.
Carolina Ramos
Psicóloga

Para crianças, a preocupação deve ser ainda maior, como destaca Carolina. “Para crianças abaixo de 2 anos: telas, nem pensar. Isso atrapalha o desenvolvimento neuropsicomotor. Para as demais abaixo de 13 anos, também não é indicado”, avalia.

A psicóloga explica que os vídeos curtos “trazem essa sensação de celeridade, tudo fica muito rápido”, causando quadro de ansiedade. “Isso atrapalha até o rendimento escolar: a aula pode se tornar muito extensa diante de vídeos de 15 segundos”, ilustra.

Cessar uso pode gerar abstinência

Crianças e o uso do YouTube
Legenda: YouTube tem plataforma voltada apenas para conteúdos infantis; manual orienta o que criadores de conteúdo podem ou não fazer
Foto: Shutterstock

A estratégia de cessar de vez o uso, desinstalando aplicativos e até suspendendo contas, como Isabela chegou a tentar, pode funcionar para algumas pessoas – não para todas, como avalia a psicóloga Carolina Ramos.

“Depende muito. Se cessar integralmente, pode haver, sim, um efeito de abstinência. A pessoa pode deprimir. Não é regra, depende do caso. Pode ser que funcione, você exclui o aplicativo e não usa mais. Mas é importante compensar com outra atividade prazerosa”, indica.

Como estratégia, a profissional recomenda estabelecer tempos de uso, ativando recursos das próprias redes sociais ou alarmes no celular.

“E inserir outras atividades prazerosas: ler um bom livro, conversar com alguém pessoalmente, escutar uma boa música e buscar outras atividades que fujam das delas.”

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