‘Troncos velhos’: aluna indígena Pitaguary cria catálogo para preservar memória de seu território


O lambedor do cupim e do coco babão maduro, o chá da babosa, da vassourinha, do malvarisco, de coentro, da palha da cebola verde, da folha da pitanga, a garrafada do mussambê ou o mel da mangará da bananeira. As opções de plantas medicinais são vastas e diversas. Assim como é o conhecimento de Valdira Pitaguary, uma idosa de 70 anos, liderança indígena do povo Pitaguary de Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará. E é ela a conhecedora dos chás, dos preparos, do manuseio das raízes, das cascas e folhas.
Mas, quem manterá essa tradição no avançar do tempo? Quem sabe, os jovens, pensou a indígena Sara Mércia do povo Pitaguary. Ela é egressa da escola estadual indígena Ita-Ara, em Pacatuba.
Foi da percepção de que os saberes ancestrais correm o risco de esquecimento ou de não preservação que surgiu a ideia transformada em pesquisa científica: produzir um catálogo digital, já disponibilizado publicamente no Instagram (ecopitaguary), com saberes medicinais compilados a partir da experiência e dos relatos de mulheres idosas indígenas dos Pitaguary.
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O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.
Essa população está presente nos municípios de Maracanaú e Pacatuba. O trabalho de Sara foca no segundo território. Ambas as terras, em outubro de 2024, tiveram a instalação dos pontos de demarcação física. É um dos passo para o reconhecimento oficial, que ainda passará pelas etapas de homologação e registro.
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A intenção de Sara de preservação dos saberes e manutenção de diálogo entre distintas gerações se transformou em pesquisa científica e resultou no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação em Ciências Biológicas pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), agora, no final de 2024.
A pesquisa, que é um retorno às próprias origens e uma forma de valorização dos saberes de ancestrais de seu povo, foi defendida por Sara em novembro de 2024, justamente, na escola indígena Ita-Ara, onde ela cursou o ensino fundamental. A ideia do “infoguia” digital é registrar e fazer circular esse conhecimento entre as novas gerações. O Diário do Nordeste acompanhou e registrou a defesa do trabalho.
Na investigação, a universitária documentou depoimentos dados por duas guardiãs da terra indígena, sua tia Valdira Pitaguary e outra liderança indígena, Liduina Pitaguary, preservando no catálogo digital as expressões das falas das duas guardiãs das plantas. Com as marcas da linguagem informal.
As expressões indígenas também estão demarcadas na capa do catálogo, que contém um trecho de uma música do toré (dança circular que marca um ritual indígena de diversas etnias) e diz “tem tem tem lá na nossa aldeia tem".
As idosas são “troncos velhos” (modo como são referenciadas as pessoas mais velhas na comunidade) muito respeitadas no território, destaca. Ela catalogou mais de 30 plantas e outros itens usados para “curas medicinais”. E em cada um deles há a explicação de como utilizá-los e quais as finalidades.
Algumas plantas cujo uso é explicado na pesquisa:
- Lambedor do cupim, do malvarisco, da corama
- Chá da babosa, de alho, de coentro, da vassourinha, da folha da pitanga, da folha da goiabeira, de hortelã
- Casca do jucazeiro
- Lambedor do coco babão maduro
- Garrafada do mussambê
- Raiz do fedegoso
- Pó da casca da romã, do mastruz e da casca da ameixa
- Garrafada da casca da mutamba e da ameixa
- Água da casca do Pajeú e da Cajazeira
- Vitamina de Jenipapo
- Mel da mangará da bananeira
O processo que levou Sara a olhar para seu próprio povo, explica, uniu alguns elementos:
Além de eu ver trabalhos sendo produzidos aqui dentro (da terra indígena) por pessoas de fora. Eu entrei na faculdade por meio de um processo seletivo específico para indígena e achei injusto estar na faculdade esse tempo todo, produzir conhecimento e não trazer esse retorno para dentro da comunidade. Isso frente a necessidade também de ter trabalhos sobre nós elaborados por nós (indígenas).
No ensino fundamental, Sara estudou parte do tempo na escola indígena que fica nas proximidades do território do povo Pitaguary, em Pacatuba.
“Essa escola foi construída em um terreno que não é indígena. Foi comprado para ser construída a escola. Aí a gente começou a ter aulas na casa de apoio. Quem dava aula eram as próprias pessoas da comunidade. Depois foi criada. Quando cheguei no nono ano não tinha o ensino médio ainda, aí eu fui para uma profissionalizante”, relata.
Já o Ensino Médio foi feito na Escola Estadual de Educação Profissional Professora Luiza de Teodoro Vieira, também em Pacatuba. Quando se formou, relembra, tinha a necessidade de entrar em uma universidade. “Consegui passar, ingressei na Unilab com 17 anos e agora estou concluindo”, destaca. O acesso ao ensino superior foi em 2019.
Me vi na necessidade de produzir um trabalho que viesse dar retorno à comunidade, à luta do povo que coloco lá dentro. Aí fui procurar o que era necessário aqui dentro. Foi quando olhei para minha tia e vi a carência que a gente tem de artigos produzidos por nós mesmos que valorizasse nossa cultura.
Em 2024, na conclusão deste percurso, muitas foram as ideias de pesquisa, mas a opção foi por aquela que poderia garantir algum impacto positivo à comunidade.
Como a juventude percebe essas tradições?
O risco dos costumes e tradições se perderem nem sempre é perceptível para os jovens, avalia Sara. Na aldeia, ela relata que no dia a dia essas questões, muitas vezes, não têm ganhado a devida atenção. “Às vezes, a gente vive tão no automático que nem percebe. Muitos jovens vão dizer que quando estão doentes é mais fácil procurar no google do procurar um ancião da comunidade uma orientação”, aponta.
“Foi a partir da fala da minha tia a da dona Liduina de preocupação de que os saberes não estavam mais sendo preservados, os jovens não estão dando atenção, e eu parei para pensar. Os jovens não estão ligando para isso e nisso eu me incluo. A gente está deixando disperso esse conhecimento”.
Ciente dessa questão, a estudante decidiu fazer entrevistas com as indígenas idosas e, em paralelo, também estabelecer diálogos com os jovens. As conversas com a juventude se deram em espaços informais em atividades organizadas na própria comunidade indígena, como rodas de toré e diálogos em volta de fogueiras.
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Fomos conversando e eles foram respondendo perguntas. E isso não é valorizado. E quando eu falo isso não é só em relação aos saberes medicinais, temos também outros saberes que estão se perdendo, como nosso artesanato. Antes fazíamos muito o barro, e hoje em dia não tem mais. E não tem mais porque não é passado. E não é por conta dos troncos velhos, mas pela falta de interesse dos mais jovens. Os mais velhos estão disponíveis e se encantam quando a gente vai atrás de saber.
Para Valdira Pitaguary, o trabalho é motivo de alegria e orgulho, sobretudo, porque a garantia de preservação da vida e da cultura de seu povo tem sido uma árdua conquista. Nada chegou sem luta, garante ela. Logo, poder manifestar conhecimentos e saberes é também uma forma de assegurar sobrevivência em um território tão afetado por diversas ameaças, como a presença de posseiros.
“Eu fico muito satisfeita (com o trabalho). Tenho um grande prazer de estar hoje apresentando uma cultura que já foi dos meus antepassados e fico emocionada. Quero força e coragem para dizer para a nossa sociedade. Hoje eu estou aqui, com 70 anos, e procuro na minha aldeia meus netos, filhos, crianças, jovens que se aproximam de mim, que sou tronco velho e estou perto de fazer a minha viagem, ensinar a nossa cultura. Ensinar o que aprendi e tenho muito prazer”, destaca.
Tudo o que temos dentro da nossa aldeia foi com luta. Se acaba o mais velho e tem o mais novo, aí vai levando, levando o ensinamento para o outro e continua na luta. Nós nascemos para o nosso povo da aldeia.
Valdira repete os saberes. Ensina o que é possível fazer para curar tosses, fraqueza no corpo, tratamento de ferida, inflamações, dentre outros. Tanto para adultos como para curumins (crianças). As receitas brotam com facilidade na memória e são pronunciadas pela idosa em uma habilidade natural de ensinar.
Junto veem as orientações sobre a forma de extrair as plantas da terra e prepará-las. Não basta só saber quais são, nem para que servem É preciso conhecer os preparos, concluem sobrinha e tia.
Divulgação do conhecimento
No dia da defesa, o trabalho foi apresentado em uma manhã de novembro na escola índigena no horário da aula e teve presença de estudantes indígenas e não indígenas e também de pessoas da comunidade.
A opção pelo espaço, explica Sara, é justamente fazer com que esse público jovem tenha contato com esse saber, que formalizado na universidade, tem a possibilidade de ter uma maior capilaridade na divulgação.
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Ultimamente, estamos perdendo nossos troncos velhos e são pessoas que são guardiãs dos nossos saberes e não é só o saber de informação, é nossa história, nossas raízes, nossa cultura. E está se perdendo. Cada vez que um dos nossos troncos velhos se encantam levam junto o nosso conhecimento.
O intuito, destaca Sara, no trabalho: “é preservar e valorizar as práticas ancestrais proporcionando um aprendizado autêntico e significativo sobre o uso das plantas medicinais e suas aplicações na cultura indígena Pitaguary”. No mesmo texto, um registro de Valdira Pitaguary aponta: “essas plantas nos curam, mas quem vai saber usá-las no futuro?”
A indagação é atravessada por preocupações. E o trabalho de Sara busca aplacá-las. O catálogo está publicado nas redes sociais e em breve a monografia deve chegar ao repositório da Unilab. Caminhos para fazer enveredar mundo afora saberes fundamentais para a diversas gerações.