Ex-aluno volta à escola pública como professor, cria laboratório e ajuda alunos na redação do Enem
Uma redação de 980 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) naquele nem tão distante 2018, somada à nota da prova, alavancou o ingresso no curso de Letras Português-Espanhol na Universidade Federal do Ceará (UFC). Um percurso possível, mas um tanto dificultoso para quem é da zona rural, de uma cidade da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e de família pobre.
Gabriel Souto Oliveira, egresso de uma escola da rede pública estadual no Ceará, sabe exatamente o “peso da boa redação”. Foi essa a chave de entrada na universidade e que por efeito tem aberto portas.
Agora, graduado e docente, retornou em 2022 como contratado à unidade onde estudou, na zona rural de Horizonte. Gabriel é professor de Português e ensina outros tantos jovens o “segredo da escrita”. Na instituição, ele tem proposto e protagonizado um projeto “voluntário” de reforço na redação. O desejo é que essa porta se abra muitas outras tantas vezes e, esse público, tal qual ele, não perca essas chances.
O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.
Se em 2017, quando estava prestes a realizar o Enem, a caminhada pareceu solitária, Gabriel agora faz questão de que essa sensação não se repita para outros jovens. Natural da cidade de Horizonte, o professor é oriundo da comunidade de Dourado, zona rural do município, filho de pais que “não completaram nem o fundamental”, relata.
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O percurso escolar foi todo na rede pública, incluindo no Ensino Médio a passagem, entre 2015 e 2017, pela Escola Estadual Walderi Machado de Almeida, no distrito de Dourado. Nesse intervalo, foi o primeiro da família a entrar na universidade.
Em 2017 veio aquele susto. Chegou o terceiro ano. E eu sempre tive uma quedinha pela educação. Eu acho que a educação é uma ferramenta de mudança social muito forte. E eu não tinha ideia de que disciplina eu queria lecionar. Eu era aquele aluno meio nerd. Gostava de tudo um pouco. E aí quando eu me apaixonei pela literatura, e aí eu decidi ser professor de português.
Na UFC, destaca ele, “os olhos se abriram”. O cenário era diferente daquele vivenciado em Horizonte, que embora seja uma cidade próxima à Capital, tem regiões que mais lembram as áreas remotas de diversos municípios do interior.
Ainda na universidade, começou a atuar em programas educativos de reforço de aprendizagem e alfabetização para crianças. “Aí eu me encontrei”, reitera.
Retornar às origens
Em 2024, veio o “desafio” de trabalhar com os alunos do 3º ano. Professor de Português e Redação, Gabriel atua com 5 turmas e 162 alunos. De novo a possibilidade de mudar rumos ao produzir uma boa escrita. Dentre os inúmeros estudantes, relembra ele, uma parte sonhava “um pouco mais” e daí surgiu a ideia de criar um Laboratório de Redação no contraturno.
“Nós temos uma realidade socioeconômica muito carente. A maioria dos nossos estudantes são de famílias com maior vulnerabilidade social. E esses meninos, às vezes, não têm ampliação de horizonte. Tudo é muito limitado. Só para ter uma ideia, Fortaleza é uma viagem para eles”, pondera.
Uma das limitações, aponta, é o fato de a escola funcionar em tempo regular e isso faz com que os alunos só consigam ficar um turno.
Para permanecer na unidade ou chegar mais cedo, demandam se organizarem, inclusive, para garantir a própria alimentação. Outro ponto é que, devido à forma de funcionamento do trabalho, Gabriel precisa utilizar as horas de planejamento para ofertar a formação no Laboratório.
Nosso planejamento é dia de terça-feira. Aí eu abri mão de parte do meu planejamento para ficar dando aula para os meninos no contraturno. O Laboratório foi um desafio muito grande para mim, porque eu não tinha tempo específico para ele.
A diretora da unidade, Suellen Barbosa, reitera que Gabriel utiliza o dia de planejamento da área das linguagens, a terça-feira, para executar o projeto. Ela destaca que a iniciativa de Gabriel no contraturno é única na escola e mobiliza os alunos. Além disso, destaca: ”respalda a crença de que é possível”.
"Ele é um ex-aluno da escola que conseguiu tirar uma nota muito boa no Enem. Uma coisa que a gente percebia muito nos alunos aqui é uma baixa autoestima. Eles têm muito a crença de por nós estarmos em uma Região Metropolitana é mais difícil para eles estarem na universidade”, completa.
Por que voltar?
Gabriel é um dos cearenses que nos últimos anos “foi e voltou” da sua terra munido de conquistas e conhecimento. E por que retornou? Segundo ele, por entender que “os jovens precisam de professores que acreditem neles, no potencial que eles têm”. Gabriel partiu da própria experiência para compreender isso.
Com a base que esses meninos têm, a gente foi evoluindo a escrita, com correções. Eu faço a correção dupla. Correção por competência da grade do Enem e correção comentada. Então, cada texto que eles escrevem, eu escrevo um outro texto para eles. É um trabalho minucioso, que demanda tempo, dedicação, mas que agora no finalzinho do ano a gente colheu muitos frutos com as redações do Enem.
Em termos de “recompensas”, Gabriel destaca que “não é só sobre ter um salário melhor, é realmente ter um reconhecimento social de você se sentir útil. É através desse trabalho, do laboratório que eu me sinto útil, que eu consigo mudar pessoas e essas pessoas que vão transformar o mundo. São essas pessoas que logo voltarão para a sociedade como futuros profissionais em diversas áreas. Como eu, até um tempinho atrás, 2017, estava aqui”.
Como funciona a iniciativa?
O Laboratório mobiliza uma média de 26 alunos nos dois turnos durante o ano, em aulas que pela manhã acontecem de 9h às 11h e à tarde são de 13h às 15h. Na dinâmica de funcionamento, eles têm aulas teóricas e práticas, sendo essas últimas com repertórios a serem utilizados em provas como o Enem.
“Se a temática é no âmbito da saúde, eu trago um profissional da saúde, faço os convites e, assim, a gente tem uma parceria legal, eles têm outras experiências”, explica.
A cada semana, as turmas trabalhavam um tema e nesse intervalo produziam textos corrigidos por Gabriel. “Lança a temática semanal ou lança a temática na sexta. Eles têm um final de semana para escrever a produção textual. E quando eles chegam na escola, terça-feira, eu faço comentários”, acrescenta. As aulas ocorrem na sala de vídeos da unidade escolar.
Nesse processo, alunos que tinham redações de 500 e 600 pontos hoje já têm uma expectativa de alcançar mais de 900. Um grupo de conversas também é utilizado para propostas de textos. Nas férias, os alunos publicaram nas próprias redes sociais as redações produzidas. Uma libertação do medo de escrever.
Para permanecer na instituição nos dias de contraturno, tendo em vista que muitos moram distante da unidade, os alunos improvisam: levam almoço, dividem, vão para casas próximas, compram quentinhas. Muitos deles moram a 20 km da escola, em áreas também rurais, e dependem de transporte escolar para partir ou chegar.
Uma delas é Ana Keise Lima, 17 anos, estudante do 3° ano que, em 2024, todas as terças pela manhã comparecia ao compromisso estabelecido com o professor. As dificuldades para desenvolver textos a levaram à formação. Faltava repertório e hábitos de leitura, enquanto sobrava “medo de escrever as próprias ideias”, aponta.
A produção de cada redação, consumia ao menos 2 horas da adolescente. No Enem de 2024, foi diferente. Texto feito em 1 hora e a sensação de que “é possível que tenha dado certo”.
O Gabriel tem ensinado a confiar mais em mim. Eu nunca confiei em mim e quando a pessoa se sente pressionada, ela não consegue desenvolver. Nas aulas, a gente não trabalha só a redação. Não é apenas conteúdo. É também sobre saúde mental. Nossa primeira aula de laboratório foi sobre saúde mental e autoconhecimento. O Gabriel nos ajuda muito. Sei que posso contar com ele e ele sempre escuta muito do nosso coração.
Outra aluna do 3º ano, Amanda Kelly de Oliveira, também de 17 anos, conta que fazia o percurso contrário. Por estudar à tarde, toda terça chegava mais cedo na escola e “passava o dia”. Em sua trajetória, reconhece, chegou ao 3º ano com pouca noção de redação.
Mas Gabriel alterou essa rota. “Eu consegui evoluir bastante. Eu não acreditava no meu potencial. E ele (Gabriel) me motivava bastante. Graças ao ensino dele e meu esforço eu tenho melhorado”, completa.
Ler não era um hábito, confessa, mas para “fugir das telas e tentar fluir na escrita”, no Laboratório de Redação começou a exercitar. A preparação também se refletiu no dia da prova do Enem.
No primeiro domingo do exame, relata Amanda: “eu pensava que ia ficar bem nervosa. Cheguei e fui logo para a redação. O máximo que eu passei foi 30 minutos. A minha fluidez de escrita foi grande. Eu até contei para ele quando cheguei”.
Em casa, Amanda disse que cogitou com a mãe achar que era possível tirar mais de 900 pontos na redação. No retorno à escola, na segunda-feira após o Enem, foi surpreendida na sala. “O Gabriel disse que ia parabenizar que tirou mais de 900 pontos na correção dele. Pensei: não vai ser para mim. E o último nome foi o meu. Eu fiquei feliz demais”.