Marco temporal pode barrar reconhecimento de todas as terras indígenas do CE, até as já demarcadas

Nenhum dos 15 territórios em 23 cidades cearenses tinha processo demarcatório concluído antes de 1988

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Indígenas Anacé fazem protesto contra o PL em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza
Foto: Rapha Anacé

A aprovação do projeto de lei (PL) 490/2007, conhecido como Marco Temporal, foi recebida em clima de preocupação pelo movimento indígena. Ainda há alternativas para impedir a efetivação da medida, que permite a revisão de processos de demarcação de terras, mas ela pode afetar todos os 15 povos originários do Ceará, em 23 cidades, caso seja posta em prática.

O projeto restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da nova Constituição federal. Antes disso, ela compreendia que não havia necessidade de comprovação da data de posse da terra.

Portanto, como nenhuma dessas terras cearenses tinha processo demarcatório concluído antes de 1988, todas podem ser afetadas. 

Thiago Halley, liderança do povo Anacé e membro da Organização de Professores Indígenas do Ceará (Oprince), chama atenção para três principais aspectos do PL:

  • Institucionaliza legalmente a Tese do Marco Temporal; 
  • Transfere a competência da demarcação de terras indígenas do poder Executivo para o Legislativo, ou seja, ao Congresso Nacional;
  • Permite a revisão de demarcação de terras que já foram homologadas.

Na observação de Thiago, ao permitir a revisão de terras homologadas, até mesmo as duas únicas garantidas no Ceará também estariam ameaçadas: a dos Tremembés do Córrego João Pereira (entre Acaraú e Itarema), demarcada em 2003, e a dos Tremembés da Barra do Mundaú (Itapipoca), recém-aprovada pelo Governo Lula.

Esse é o mesmo entendimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), para a qual todas as TIs, independente da situação e da região em que se encontram, serão avaliadas de acordo com a tese, “colocando 1.393 terras indígenas sob ameaça direta”.

No Ceará, atualmente, 15 povos se dividem em 23 cidades: Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá e Karão, segundo a Federação dos Povos Indígenas do Ceará (Fepoince).

Adriana Tremembé, liderança indígena da Barra do Mundaú e coordenadora da Fepoince, considera que o Ceará “o estado que tem mais atraso na demarcação de terras”, já que muitas delas possuem processos em curso ainda em análise, algumas há mais de 10 anos.

“Esse Marco Temporal é uma tese ruralista pra exterminar e desorganizar nossa luta, dizendo que só existe indígena até 1988, que os povos levantados depois disso não é para terem direito”, indigna-se.

Entidades de defesa indígena alegam que o Marco ignora o apagamento histórico que essas populações sofreram - em muitos casos, as comunidades precisaram se esconder para impedir massacres promovidos por posseiros dessas terras. 

“Muitos povos terão dificuldades de provar que já existiam anteriores a 1988, mas é claro que a gente sabe que os nossos antepassados já estavam aqui”, pondera a Cacika Irê, secretária dos Povos Indígenas do Ceará em mensagem nas redes sociais.

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Thiago Anacé lembra que nem mesmo os povos mais antigos a retomarem a luta por suas terras, os Tapebas e Tremembés, ainda na década de 1980, estão com o processo seguro. Os Tapebas, por exemplo, não têm novidades desde 2017, quando recebeu a declaração de posse permanente.

“Com esse PL, qualquer pessoa ou ente que acha que foi prejudicado pela demarcação pode acionar judicialmente e questionar até mesmo as terras que já foram homologadas. Isso cria uma insegurança jurídica sobre o território, independente da fase em que ele esteja”, afirma, lembrando que a maioria das terras no Ceará ainda está em fases iniciais.

Além disso, ele vê riscos com a transferência da atribuição das demarcações para o próprio Congresso. “São eles (os deputados) que vão votar. Você acha que ainda haverá alguma demarcação?”, questiona.

Adriana Tremembé relata também a ironia de os povos precisarem buscar documentos e embasamento legal para provarem a ocupação de seus espaços. “Quando o povo se levanta, tem sua história, sua raiz e a firmeza de que é de onde é. Esse é o documento originário. A gente não tem nenhum medo de estar na luta”, assegura.

Legenda: Para movimentos indígenas, mobilização segue para barrar projeto em outras instâncias
Foto: Rapha Anacé

Para o professor Thiago, é preciso sensibilizar a sociedade para entender que os territórios indígenas não são improdutivos, pois também são espaços para agricultura e pecuária sustentáveis, garantindo alimento para as próprias comunidades - em vez de servirem a grandes monoculturas de poucos proprietários.

“Os territórios servem não só como guardiões das memórias, das identidades e da cosmovisão indígena, mas ajudam a diminuir os efeitos e impactos das mudanças climáticas”, percebe.

Próximos passos

O advogado Weibe Tapeba, cearense que lidera a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), qualifica a aprovação do PL como “resultado de um Congresso cada vez mais reacionário” e que “avança em pautas cada vez mais conservadoras”.

Contudo, ele pondera que a mobilização contra o Marco Temporal não terminou. Weibe descreve pelo menos três possibilidades para barrá-lo:

  • Supremo Tribunal Federal (STF): “temos a esperança de que o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário que trata praticamente da mesma matéria (marcado para o próximo dia 7 de junho), enterre de vez essa teoria”;
  • Senado Federal: “se não der, temos a opção de incidir junto ao Senado para derrotar, no voto, o mérito desse projeto”;
  • Presidência da República: “caso aprovado no Senado também, o presidente Lula tem a prerrogativa do veto a esse PL descabido”.

Na última segunda-feira (29), o Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota pública declarando a inconstitucionalidade do PL 490/2007, por considerar que ele enfraquece o direito dos povos indígenas a territórios tradicionalmente ocupados, “sendo a tradicionalidade um elemento cultural da forma de ocupação do território e não um elemento temporal”.

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