Geração NoMo: mulheres que decidem não ter filhos sustentam decisão apesar da pressão social

Até hoje, o papel histórico de reprodução atribuído à mulher pesa sobre os ombros das que escolhem não serem mães

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Mulheres sentadas num sofá com livros e celulares na mão
Legenda: Desejo de não ter filhos gera pressões sociais e familiares a mulheres
Foto: Pexels

Nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer. A ideia de procriar já chega a nós desde pequenos, quando estudamos o “ciclo da vida” na escola. Mas a cobrança sobre ela ao longo da vida adulta tem um endereço em particular: as mulheres.

Sustentar a decisão de não ter filhos, então, é estar sob constante pressão – da sociedade, dos amigos, da família. O Diário do Nordeste conversou com três cearenses de idades, profissões e vivências distintas, mas com um desejo em comum: não ser mãe.

A geração já recebeu até nome: "NoMo", abreviação para "not mothers" – não mães, em tradução do inglês.

Deiziane Alves, podóloga cearense
Legenda: Deiziane Alves, 33 anos
Foto: Arquivo pessoal

“Tenho medo da responsabilidade. Quero muito ter outras oportunidades na vida, experiências fora do País, fazer cursos, viajar, trabalhar… Acho que se tivesse um filho, não conseguiria tudo”, lista a podóloga Deiziane Alves, 33, sobre as razões da decisão.

O principal dos motivos dela, porém, é curto, simples e indigesto ao machismo da sociedade: “nunca tive vontade”. “Já tive relacionamento de 7 anos e todo mundo perguntava. Eu mesma já me questionei: ‘e aí, vou ter ou não uma família?’ Mas sempre boto na balança e concluo a mesma coisa”, diz.

Muitos dizem que vou ficar velha, que não vou ter quem cuide de mim, que vou mudar de ideia e vai ser tarde demais, não vou conseguir. Talvez aconteça, mas agora estou segura de que não quero.
Deiziane Alves
Podóloga

Quem também se descreve “muito segura” sobre a decisão de não gerar nem adotar filhos é Kauany Lourenço, 21. Segundo ela, o espírito materno “nunca aflorou, nunca foi um sonho, como é para muitas mulheres”.

A certeza, inclusive, já contribuiu para o fim de um relacionamento. “Meu foco sempre foi estudar e trabalhar, e o sonho da outra pessoa era de construir uma família, casar. E esse nunca foi o meu”, relembra Kauany, que atua como técnica de enfermagem.

Kauany Lourenço, 21 anos
Legenda: Kauany Lourenço, 21 anos
Foto: Arquivo pessoal

Já prevendo que a família do parceiro também a pressionaria, a jovem pôs o ponto final na relação. A insistência sobre ter de, necessariamente, ser mãe por ser mulher, porém, vem dos mais diversos lugares.

No meu ambiente de trabalho, as pessoas falam que eu ainda sou muito nova, que vou mudar minha opinião. Tenho 21 anos e até agora não mudei.
Kauany Lourenço
Técnica de enfermagem

Para Kauany, só uma opinião quanto ao assunto é importante. “Quando alguém chega pra falar, eu digo ‘tudo bem, mas hoje penso assim e talvez não mude’. Tenho o apoio da minha mãe, ela sabe que esse nunca foi meu sonho. E se tenho o apoio dela, não importa o resto.”

“Não me acho apta”

A economista Talita Araújo, 29, afirma estar na idade em que “várias amigas estão se tornando mães” – o que, para ela, só seria uma possibilidade “num futuro remoto, longínquo, distante”, como descreve.

“Não quero porque não percebo em mim essa necessidade de maternar, não encaro como a maioria das pessoas, que veem como realização, necessidade. E não me acho apta a criar outro indivíduo, que requer muita abdicação de si, e eu talvez não tenha”, frisa.

Talita Araújo, 29 anos
Legenda: Talita Araújo, 29 anos
Foto: Arquivo pessoal

A pressão para que Talita mude de ideia, contudo, “vem de todos os lados”, já que ela vive um relacionamento sério há 8 anos. “Existe uma expectativa por parte dos meus pais, que querem netos; e meu marido é filho único, então recai mais ainda sobre ele”, destaca.

A gente cresce achando que ser mãe é o rito normal da vida, e aos 20 anos comecei a pensar que pra mim talvez não fosse. Não acho que por ter nascido uma mulher cis tenho que maternar, ter esse projeto. Meus projetos são outros completamente diferentes.
Talita Araújo
Economista

A economista derruba, inclusive, o mito de que não querer ser mãe é sinônimo de não gostar de crianças. “Eu gosto muito de participar da vida dos filhos dos amigos, mas não me vejo nessa condição de mãe”, justifica.

Apesar disso, ela ressalta, não é um assunto totalmente descartado. “Martelam tanto na nossa cabeça que pra gente se realizar precisa passar por essa experiência, que de alguma forma fica intrínseco. Penso ‘será que não tô me podando de uma experiência importante?’ Mas não é algo que faz falta”, finaliza.

374 mil
casais do Ceará não tinham filhos, no Censo de 2010, dado oficial mais atual disponível no IBGE. No Censo de 2000, eram apenas 207 mil.

Onde nasceu o “dever” de ser mãe?

As imposições sobre as vidas e os corpos das mulher são múltiplas, vêm de diversos tempos e contextos, mas essa da maternidade é mais “recente”: data do século XIX, sobretudo a partir da Revolução Industrial, como explica a historiadora Vera Lima.

Mulher grávida sentada no sofá com notebook no colo
Foto: Matilda Wormwood/Pexels

“Foi um processo histórico que veio com a urbanização, o comércio. A sociedade passou a família como núcleo, pra criar trabalhadores. Aí começa a surgir a ideia de que a mulher deve ser exclusiva pra cuidar dos filhos, da saúde, do marido e do lar”, recobra.

Vera, que é mestre em Sociologia e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ressalta ainda que o “mito do amor materno” idealiza e desenha um padrão de vida perfeita para a mulher que é “impossível de seguir hoje”.

Esse mito cria a ideia de que ter filhos é a maior felicidade, é o papel central da mulher: que ela só vai ser feliz e completa se os tiver. Mas mulher não nasce pra ser mãe, esposa e cuidar da casa e ter filhos.
Vera Lima
Historiadora e professora da Uece

A ideia de incompletude associada pela sociedade a mulheres que decidem não ter filhos, relatada por Deiziane, Kauany e Talita, é uma das várias que ainda limitam a autonomia feminina, como pontua a professora.

“Mulheres que não têm esse desejo – ou mesmo as que gostariam, mas não conseguem ter filhos – são pressionadas, ficando numa posição sempre infeliz. Mas o padrão de família tradicional está falido, em decadência. Nós, mulheres, não nos reconhecemos mais nessas formulações”, sentencia.

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