Escolas, posto de saúde e praça custeados pelo Ceará funcionam em território considerado pernambucano

Em viagem à divisa dos dois estados, o Diário do Nordeste encontrou equipamentos públicos de Salitre (CE) que atendem a moradores na área registrada como a cidade de Ipubi (PE)

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
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Legenda: A Escola Municipal Antônio José de Albuquerque é uma unidade de Ensino Fundamental I e II e fica na território em questão
Foto: Ismael Soares

De segunda a sexta-feira, três escolas públicas na pequena localidade de Serra dos Nogueiras, na zona rural da cidade de Salitre, no Sul do Ceará, recebem 342 crianças e adolescentes moradores da área e do entorno. No posto de saúde da mesma área, no movimento também diário, residentes do lugar são atendidos. Erguidos e custeados com dinheiro público do Ceará, sobretudo, da Prefeitura de Salitre, os equipamentos atendem à população, até então considerada cearense. Mas, há alguns meses, não há mais essa certeza. 

Isso porque o território no qual os equipamentos públicos estão inseridos está no centro de um conflito territorial entre Ceará e Pernambuco, e mais especificamente entre as cidades de Salitre (CE) e Ipubi (PE). No impasse, a cidade cearense perde área para Pernambuco, e além das escolas, creche e unidade de saúde financiados com dinheiro público do Ceará, uma praça e um polo poliesportivo também passam a “ser” da cidade vizinha. 

Outro ponto do dilema envolvendo os verdadeiros limites dos municípios é que uma grande área produtiva de Salitre com inúmeras de casas de farinha - equipamentos que movem a economia da cidade, visto que o cultivo da mandioca no município é a principal atividade -, também passam a constar como pertencentes a Pernambuco. 

O território em questão em Salitre é conhecido como Serra do Baixio do Moco e lá as comunidades se subdividem em áreas que levam nomes de famílias, como Serra dos Nogueiras, dos Afonsos, dos Carlos, dos Gaudêncios, dos Felisminos, dos Torres, dentre outras.

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Essa reportagem é a segunda de uma série especial que aborda o impasse territorial envolvendo Ceará e Pernambuco e como isso afeta a vida e a identidade dos moradores da área em questão; a utilização da área nos processos eleitorais e o que tem sido feito pelas cidades e estados para resolver o problema. 

O que Salitre (CE) perde para Pernambuco?

Conforme os limites considerados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos dois últimos censos demográficos (2010 e 2022), os seguintes equipamentos que historicamente estão localizados em Salitre foram construídos e são mantidos com dinheiro do Ceará, constam como pertencentes ao território de Ipubi (PE): 

  • A Escola Municipal Antônio José de Albuquerque (Fundamental I e II);
  • A Escola Municipal Irinéia Enoque Rodrigues  (Pré-escola);
  • O Centro de Educação Infantil Petronila Maria da Silva (creche);
  • O posto de Saúde em Serra dos Nogueiras;
  • Uma quadra poliesportiva;
  • 25 casas de farinha;
  • Uma praça pública.

A coordenadora pedagógica da Escola Municipal Antônio José de Albuquerque, Almerinda de Jesus Florêncio, explica que o equipamento funciona no modelo regular nos turnos manhã e tarde e recebe centenas de alunos da Serra dos Nogueira e das regiões próximas. 

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Legenda: Escola Municipal Antônio José de Albuquerque
Foto: Ismael Soares

De acordo com ela, saber que o equipamento não faz parte do território de Salitre foi uma grande surpresa. 

“A gente já tinha ouvido boatos de que aqui seria Pernambuco e começamos a discutir o que fazer. Ficamos pensando como iria ficar. Ipubi, que no caso seria a nossa sede, é muito longe. É um problema muito grande. De certa forma, estamos meio desamparados porque a gente sempre foi do Ceará, todos os custos são do Ceará, tudo que a gente resolve é em Salitre e, do nada, querem mudar a gente para Pernambuco”. 
Almerinda de Jesus Florêncio
Coordenadora pedagógica da Escola Municipal Antônio José de Albuquerque

Almerinda acrescenta que os pais dos alunos relatam estarem enfrentando diversos gargalos devido ao impasse. “Precisam de energia e não tem quem coloque por conta da divisão”, exemplifica. “A gente tem sofrido bastante com isso. A gente é daqui, quer ficar aqui, somos considerados sim, cearenses. Somos salitrenses e a gente espera que essa situação se resolva”. 

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Legenda: Polo poliesportivo
Foto: Ismael Soares

A confusão sobre os reais limites se reflete em várias instâncias e fica evidente quando, por exemplo, o endereço dos equipamentos é consultado junto ao Governo Federal. 

As escolas Antônio José de Albuquerque e a Irinéia Enoque Rodrigues estão registradas no Catálogo de Escolas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), como situadas na Serra do Baixio do Moco, na zona rural de Salitre. Já o posto de saúde consta no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) como localizado na Serra dos Nogueiras, também na zona rural de Salitre. 

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Legenda: Escola Municipal Antônio José de Albuquerque
Foto: Ismael Soares

Creche entregue no Ceará em 2023 fica em Pernambuco

A área registra também outro fato inusitado. Em março deste ano, o Governo do Estado do Ceará inaugurou 2 Centros de Educação Infantil em Salitre, sendo um deles na sede do município e outro, justamente, na área registrada como pertencente a Pernambuco. 

O CEI Petronila Maria da Silva entregue pelo Governo fica localizado próximo à Escola Municipal Antônio José de Albuquerque. Na época da inauguração, o Governo do Ceará divulgou que a unidade tem área de 383,37 m² e capacidade para atender 100 crianças por dia. 

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Legenda: Centro de Educação Infantil Petronila Maria da Silva
Foto: Ismael Soares

Em relação à essa construção específica, o Diário do Nordeste entrou em contato com a Secretaria da Proteção Social (SPS) e questionou sobre o investimento e as características do equipamento, bem como o motivo da edificação do CEI ser nessa localidade específica. 

A Secretaria informou que a construção foi feita por meio do Programa de Apoio às Reformas Sociais (Proares), que reúne recursos do Governo do Estado e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O custo foi de R$ 1.298.070,09. Conforme a pasta, os “equipamentos do Proares são construídos em terrenos doados pelas prefeituras municipais”.

O espaço, diz a pasta, conta com uma sala de coordenação, duas salas de aula com banheiros, acessos pavimentados, espaço recreativo, grama natural, casinha parque, refeitório, cozinha, banheiros masculino e feminino, banheiro com acessibilidade, depósitos de alimentação e serviços, despensa, casa da bomba, casa do gás e lavanderia.

Para a edificação dos equipamentos sociais, explica a Secretaria, “são levados em consideração o índice de vulnerabilidade social da região”. No caso das obras do Proares, acrescenta a nota, “o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará elaborou nota técnica que orienta a aplicação dos recursos”.

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Legenda: Transporte escolar da área em questão entre Salitre e Ipubi
Foto: Ismael Soares

O que é e quando teve início o conflito entre Ceará e Pernambuco?

Na questão, a Prefeitura e a Câmara Municipal de Salitre indicam que o impasse foi gerado a partir de um ajuste feito IBGE na malha cartográfica entre as duas cidades (Salitre/CE e Ipubi/PE) e por efeito nos estados do Ceará e de Pernambuco. Isso, segundo as instituições, em 2007.

O conflito apareceu no Censo Demográfico de 2010 e novamente veio à tona no levantamento realizado em 2022, quando moradores do território em questão em Salitre foram recenseados por profissionais do IBGE de Pernambuco. 

Na discussão e tentativa de resolução do conflito, o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), instituição ligada ao Governo do Ceará e responsável pela gestão e definição da representação cartográfica dos limites municipais cearenses, ao realizar um estudo técnico, reitera que o limite que está no centro do impasse foi ajustado cartograficamente pelo IBGE entre 2000 e 2007. 

Já o IBGE ressalta que o órgão não tem a competência de alterar limites, mas sim, nos últimos anos tem utilizado tecnologias extremamente modernas que conectadas às leis existentes fazem com que o órgão, algumas vezes, execute os ajustes necessários no registro dos territórios. 

Nos casos em que há divergência, o IBGE, diz o superintendente do IBGE Ceará, Francisco José Moreira Lopes,  de acordo com os instrumentos legais e os equipamentos novos, faz o ajuste da divisa. 

No Ceará, a norma mais recente sobre limites e divisas é a Lei Estadual 16.821/2019 e, segundo Lopes, “é ela que o IBGE tem utilizado”. 

“O IBGE tem usado os equipamentos mais modernos, como é o caso do GPS. O que acontecia anteriormente é que existia uma lei, mas valia o espírito do legislador. Hoje o que acontece, com os novos equipamentos, GPS, a gente tem condição de georreferenciar o pontos de limites, então a gente sabe com precisão onde começa onde termina o município e evidentemente a partir daí é onde o IBGE coleta o dado”. 
Francisco José Moreira Lopes
Superintendente do IBGE Ceará
 

Impacto do conflito territorial em outras demandas

O conflito quanto ao endereço das construções compromete ainda imóveis privados utilizados para atividades produtivas, como as casas de farinha. No documento produzido pelo IPECE e pela Assembleia Legislativa referente ao assunto, há indicação de que foram mapeadas um total de 44 casas de farinha no trecho em questão. Todas vinculadas ao município de Salitre. 

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Legenda: Casa de farinha na área rural de Salitre
Foto: ismael Soares

Destas, 25 passaram para Pernambuco se considerado o mapa adotado pelo IBGE. O documento do IPECE ressalta que Salitre é conhecida como capital da mandioca, “sendo essa atividade importante para economia do município que tem na Agropecuária 12% de seu VAB” (que é o Valor Acrescentado Bruto, índice que mede o valor que a atividade agrega aos bens e serviços consumidos no seu processo produtivo).

O documento do IPECE reforça ainda que “a produção de mandioca no município concentra-se na região que teve a divisa alterada entre os anos de 2000 e 2007”.

Outra questão, segundo o secretário de Administração e Finanças de Salitre, Heliomar Henis, é o fato de as terras da área em conflito serem titularizadas pelo Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE) e o banco fornecedor de crédito, o Banco do Nordeste de Campos Sales (cidade vizinha a Salitre)  ter como referência também os parâmetros adotados pelo IBGE. 

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Legenda: Casa de farinha na área rural de Salitre
Foto: Ismael Soares

“O pessoal vai fazer o CAR (registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais, cuja inscrição consta no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural - SICAR) e o CAR é feito de acordo com a medição do IBGE. Aí o CAR diz que é Pernambuco. Mas o título da casa diz que é do Ceará. Aí vai para Campo Sales e Campos Sales manda ir para Araripina (PE) e Araripina diz que é Campo Sales”.
Heliomar Henis
Secretário de Administração e Finanças de Salitre

Ele reforça que com isso, os moradores do território em conflito ficam impossibilitados de conseguir crédito pessoal nos bancos em programas como o Pronaf, que é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar que financia projetos individuais ou coletivos, gerando renda aos agricultores familiares e assentados da reforma agrária. “Tem toda essa problemática. Nos afeta e afeta mais ainda a população”, enfatiza o secretário. 

veja detalhes Conflito territorial CE/PE

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