Disputa entre facções causa mortes, abandono e dano emocional em escolas do CE

Especialistas alertam que todo o aspecto da sociedade, como a disputa entre territórios ocasionada pelo tráfico, tem reflexo no cotidiano das instituições

Escrito por
Gabriela Custódio gabriela.custodio@svm.com.br
(Atualizado às 16:58)
Estudantes assistindo a aula.
Legenda: Após situações de violência em escolas, especialistas destacam a necessidade de promover acolhimento dos estudantes.
Foto: Thiago Gadelha

Dezenas de estudantes aproveitavam o intervalo na Escola de Ensino Médio (EEM) Professor Luís Felipe, em Sobral, Ceará, quando tiveram o descanso e as conversas interrompidos por barulhos de tiros, que foram seguidos de gritos e pedidos de socorro. O episódio de violência registrado na manhã da última quinta-feira (25), que resultou na morte de 2 alunos e outros 3 feridos, ressalta o quanto a comunidade escolar está exposta, sofrendo impactos como o ocorrido, além de questões como abandono escolar, danos emocionais, impacto na aprendizagem, dentre outros problemas. 

O caso de Sobral é apenas um exemplo extremo do que apontam especialistas que tratam sobre o impacto da violência: “a escola, por princípio, não é uma ilha”, e todo o aspecto da sociedade tem reflexo no cotidiano das instituições.

No caso da EEM Professor Luís Felipe, dois estudantes foram mortos e outros três ficaram feridos em um ataque a armas realizado por duas pessoas que, do lado de fora da instituição, efetuaram os tiros em direção ao estacionamento da instituição. Algumas semanas antes, no final de agosto, 16 unidades de ensino de Fortaleza, entre escolas municipais e creches, tiveram suas atividades impactadas devido a uma disputa entre facções criminosas.

Quando a violência está fora das unidades de ensino, o especialista em Educação Rogers Mendes aponta que o maior risco é a evasão escolar. Uma das causas para isso é o fato de muitas unidades, principalmente nas periferias, estarem localizadas em áreas dominadas por organizações criminosas que impõem restrições de deslocamento.

Dessa forma, jovens que moram em um território controlado por um grupo rival acabam sendo impedidos de acessar o ambiente escolar. Entre os desafios que esse contexto impõe ao poder público está inclusive o dimensionamento das matrículas em cada território.

“Temos que manter determinados espaços que, por vezes, nem fossem viáveis economicamente, porque era melhor concentrar a matrícula [de diferentes unidades] em um mesmo local. Mas precisamos ter o cuidado de manter a escola funcionando para garantir o direito ao acesso”, exemplifica.

Quando os estudantes conseguem acessar a escola, temos impacto menor [da violência] na aprendizagem. Por ser uma organização didática, pedagógica, é possível conter essas situações sociais e, pelo menos naquele momento, manter a concentração.
Rogers Mendes
Especialista em Educação

As consequências de ataques às escolas

Quando a violência rompe a barreira física e adentra os muros das instituições— seja em ataques realizados por um dos próprios alunos ou em casos como o da EEM Professor Luís Felipe —, tem como uma de suas consequências o dano emocional a estudantes, professores e demais membros da comunidade escolar ao gerar uma sensação de medo e ansiedade.

“Todas as pessoas envolvidas na escola acabam tendo sono ruim, dificuldade de atenção, mudanças no comportamento. E há uma mudança no clima escolar. É perceptível o sofrimento entre alunos e professores e nas próprias famílias”, explica Cléo Garcia, doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora da pesquisa Ataques de violência extrema em escolas no Brasil.

Casos assim podem ter como efeito colateral, inclusive, o risco do abandono. “Muitas famílias não têm mais confiança em enviar os seus filhos para a escola e preferem tirá-los de lá. Então, [elas] acabam não conseguindo outra colocação e a criança acaba perdendo o ano”, complementa Garcia.

Veja também

Além disso, o próprio funcionamento da instituição e o processo de aprendizagem dos jovens é prejudicado. “Geralmente, quando ocorre uma violência dessas, há uma interrupção dos conteúdos, uma dificuldade nessa retomada pedagógica, e, lógico, uma queda no rendimento por parte dos alunos”, afirma.

A prioridade nesse momento após um ataque deve ser o acolhimento das pessoas afetadas por ele, aponta Rogers Mendes. “A gente precisa vivenciar inclusive o luto quando, infelizmente, acontece uma tragédia de falecimento de pessoas no interior da escola”, diz.

Caso assim, segundo Mendes, podem até requerer um trabalho personalizado, uma vez que cada pessoa vai ter reações específicas ao episódio. Enquanto alguns alunos já vão conseguir retomar as atividades, outros podem se sentir inseguros por algum período.

Dessa forma, o especialista afirma que as questões estruturantes em momentos como esse são promover a sensação de segurança e o acolhimento dos estudantes. “As experiências que temos acompanhado [mostram] que quando o trabalho é feito de forma sensível ao tempo de recuperação emocional dos estudantes, a gente tem um efeito negativo menor”, explica.

Estruturação do crime organizado

Professor de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), Luiz Fábio Paiva aponta que, atualmente, um dos maiores desafios para o poder público é desmobilizar a violência protagonizada pelas organizações criminosas.

O docente contextualiza que, desde 2016, inúmeros conflitos, chacinas e crimes ocorridos no Estado têm sido realizados pelas facções. À medida que elas foram se estruturando, muitos dos jovens afetados pelas organizações criminosas foram incorporados a elas.

De acordo com Luiz Fábio Paiva, as organizações criminosas conseguem se manter por não serem apenas um fenômeno criminal, mas também um fenômeno social.

“Ela [a facção criminosa] perdura porque consegue estabelecer laços sociais que não são enfrentados apenas com o enfrentamento do crime. As facções trabalham com valores, com orientações políticas e morais, com subjetividade, alimentando o próprio sentimento de pertença a esse tipo de grupo”, explica.

Veja também

Nesse contexto, a escola tem um papel fundamental não só na educação formal, mas também “na construção de uma outra imaginação”, defende o professor. Para que ela cumpra esse papel, Paiva destaca a necessidade de as unidades escolares terem “um corpo mais robusto” de proteção social.

É preciso mais estrutura para oferecer proteção social, atenção psicológica, segurança e atendimento familiar, conectando a instituição à comunidade e às soluções para os problemas enfrentados por ela. “Tudo isso demanda vontade política”, afirma.

Falta a vontade política, falta o recurso destinado no orçamento, faltam as condições básicas para que a escola realize o [seu] papel e esteja pronta para os desafios que, infelizmente, esse tipo de fenômeno social coloca diante dela.
Luiz Fábio Paiva
Coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC

A importância das competências socioemocionais

Não só em contextos de violência, Rogers Mendes aponta a necessidade de desenvolver as competências socioemocionais dos estudantes. Elas dizem respeito a um conjunto de habilidades que envolvem, por exemplo, a capacidade de reconhecer e gerenciar as próprias emoções; de lidar com as emoções dos outros; de estabelecer e manter relacionamentos saudáveis e de tomar decisões responsáveis, entre outras.

“Esse aspecto é absolutamente caro, principalmente para contextos urbanos mais complexos, de cidades grandes e de médio porte”, afirma o especialista. Ele aponta que a dimensão da escola clássica tinha como prioridade o lado cognitivo, que é “absolutamente necessário”, mas que também é preciso promover o acolhimento dos alunos a partir de suas nuances culturais e socioeconômicas.

Assim como afetam os alunos, casos de violência também têm impacto emocional para os professores. Com isso, Mendes também pontua a necessidade de promover essa reflexão sobre si entre os docentes. “Dar esse suporte emocional aos professores é absolutamente estratégico para manter o acolhimento aos próprios estudantes”, afirma.

“Com elas, os alunos aprendem a reconhecer emoções, a regular a raiva e outros sentimentos, a construir relações mais saudáveis”, afirma Cléo Garcia, que é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral (Gepem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Unicamp.

Além desse aspecto, Garcia acrescenta que devem ser oferecidas, nos currículos, atividades ligadas, por exemplo, a esporte e cultura, para “ampliar os horizontes” dessas crianças e adolescentes e criar um senso de pertencimento, evitando que eles sejam cooptados por facções criminosas ou por discursos de ódio em redes sociais.

“A escola não tem condições de agir sozinha nessas estratégias. Ela precisa ter o apoio de uma rede intersetorial que chamamos de rede de proteção. Nisso estão a saúde, a assistência social e os conselhos tutelares, porque o estudante — e mesmo a comunidade escolar — necessita de suporte em diferentes frentes”, finaliza Garcia.

Projetos de combate à violência no CE

Na rede pública estadual do Ceará, por meio da Secretaria de Estado de Educação do Ceará (Seduc), existem alguns projetos ligados às competências socioemocionais voltados também ao impacto da violência, como:

  • Política Estadual de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais;
  • Universalização do Projeto Professor Diretor de Turma;
  • o programa Diálogos Socioemocionais;
  • Trabalho de  psicólogos e assistentes sociais educacionais, lotados na Capital e no Interior;
  • Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente na rede pública estadual.

Além disso, a Seduc tem a Célula de Mediação Escolar, Justiça Restaurativa e Cultura de Paz, que visa desenvolver ações de prevenção da violência no espaço escolar. São realizadas iniciativas de mediação, de práticas restaurativas e dos círculos de construção de paz.

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados