Por que discutir questões emocionais em escolas impacta nos cuidados com a saúde mental das meninas?
As escolas, em muitos casos, são os primeiros ambientes sociais fora das famílias onde crianças e adolescentes aprendem a se relacionar com os outros e a lidar com as emoções. Esses espaços são plurais e não estão desconectados das tensões sociais, logo, também carregam desafios próprios dessa dinâmica. E quando falamos especificamente das meninas, qual a relação entre escola, gênero, emoções e saúde mental?
No recorte de gênero, o contexto escolar para as meninas nesta etapa da vida guarda marcas próprias: lidar com o corpo em transformação, com a aparência, com a autoestima, com as responsabilidades e com a imposição de papeis que decreta padrões de comportamento e expectativas aprisionantes. Esse conjunto de camadas faz com que as demandas por cuidados com a saúde mental nas escolas fiquem cada vez mais evidentes.
Há alguns anos, a literatura científica da educação tem discutido que é preciso avançar não só em preocupações relacionadas às questões cognitivas, mas também nas emocionais e psicológicas dos estudantes. Mais ainda: é necessário olhar para os grupos sociais de modo a compreender as demandas específicas deles, como as marcas de gênero para mulheres e meninas.
Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Um dos caminhos associado a esse entendimento, que tem ganhado destaque nos debates educacionais, sobretudo desde a década de 1990, é o desenvolvimento de competências socioemocionais nos ambientes de aprendizado.
Nesse contexto, o Ceará, através do município de Sobral, na Região Norte, participou de um um estudo internacional da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre competências socioemocionais e os resultados foram divulgados em abril de 2024.
A pesquisa, feita com estudantes do gênero masculino e feminino entre 10 e 15 anos, incluiu pela primeira vez a análise da realidade brasileira. No Brasil, o estudo da OCDE foi implementada em Sobral em parceria com o Instituto Ayrton Senna.
O levantamento envolveu alunos de 16 países como Colômbia, Chile, Itália, Japão, Finlândia e Bulgária e apontou, de modo geral, que os mais jovens têm níveis maiores de competência socioemocional do que os mais velhos, ou seja, à medida que crescem, os estudantes “recuam” no progresso das competências socioemocionais. O estudo foi feito a partir de autorrelato dos estudantes que responderam questões padronizadas em seus territórios.
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E as evidências foram além: mostraram marcantes diferenças de gênero. No município cearense, esse cenário foi ainda mais acentuado do que em outras realidades. As meninas de 15 anos em Sobral, por exemplo, relataram níveis mais baixos de resistência ao estresse, de controle emocional, de energia, de otimismo, de autocontrole, de confiança, de sociabilidade e de criatividade em comparação com meninos da mesma idade.
Essas diferenças entre meninos e meninas em todas essas habilidades (exceto confiança) são maiores em Sobral do que a média em outros locais participantes da pesquisa e além disso, emergem mais cedo. Em habilidades como otimismo, controle emocional, confiança e sociabilidade essas diferenças entre meninos e meninas surgem já aos 10 anos de idade, enquanto em outros locais essas diferenças só aparecem aos 15 anos.
O que são competências socioemocionais?
As competências socioemocionais são habilidades que envolvem, dentre outras, a capacidade dos indivíduos de reconhecerem e gerenciarem as próprias emoções; de lidarem com as emoções dos outros; de estabelecerem e manterem relacionamentos saudáveis, de tomar decisões responsáveis, de demonstrar empatia e de enfrentar situações adversas ou novas.
Na rede pública estadual por exemplo há 5 macrocompetências socioemocionais sendo trabalhadas e elas e se desdobram em 17 habilidades, são elas:
- Autogestão: trabalha com determinação, organização, foco, persistência e responsabilidade.
- Engajamento: ter iniciativa social, assertividade e entusiasmo
- Amabilidade: ter empatia, respeito e confiança
- Resiliência Emocional: ter autoconfiança, tolerância ao estresse e tolerância à frustração
- Abertura ao novo: curiosidade para aprender, imaginação criativa e interesse artístico
E nas escolas, ambientes desafiadores de convivência, essas habilidades são determinantes para a adaptação social dos alunos e a construção de uma trajetória equilibrada.
Em Fortaleza, na Escola de Ensino Médio Santa Luzia, no Meireles, as alunas do 2º ano, Ana Júlia Mirele, de 21 anos, e Alana Marques, de 16 anos, reiteram os desafios de gênero enfrentados por tantas outras adolescentes e jovens.
Na nossa escola tem muitos meninos machistas. E em casa eu vejo que quem faz a maioria das coisas (atividades domésticas) sou eu e minha mãe, porque a sociedade já cria as mulheres para fazerem comida, arrumar a casa. Eu sempre falo que se um dia eu chegar a ser mãe, quero criar meu filho para fazer as mesmas tarefas que eu fiz. Às vezes, esse serviço doméstico não é fácil, nos cansa e as meninas já vêm estudar cansadas.
“Já passei por escolas em que os meninos eram colocados primeiro em algumas atividades porque as pessoas achavam que as meninas deviam ir depois porque são mais organizadas. Nas escolas que eu já passei, na hora de fazer trabalho, muitas vezes, colocavam meninos de um lado e meninas de outro. Tópicos como saúde sexual da mulher, parece um tabu para os meninos. Não ensinam sobre trabalho em casa. O básico seria fazer isso, mas muitas escolas não fazem", ressalta Ana Júlia.
Ambas, em entrevista ao Diário do Nordeste, relatam que as percepções de “ansiedade, dores e angústias” são evidentes no cotidiano dos estudantes. E diante disso, apontam, o recurso é recorrer aos desabafos aos docentes, sobretudo, às mulheres, e aproveitar espaços como aulas que trabalhem questões socioemocionais para minimamente “poder falar” sobre esses sentimentos.
“É mais fácil a gente se abrir com as mulheres, com pessoas que você confia. Minhas únicas fontes são as professoras, pelo fato de serem mulheres e por terem passado por coisas semelhantes e saberem como lidar. A Alana (amiga e colega de sala) também me ajuda bastante. Ano passado eu estava muito ansiosa, com ideias erradas, e ela que me aconselhou, me ajudou. Às vezes é muito complicado lidar com tudo o que está ao redor”, destaca Júlia.
Ela completa relembrando as marcas de ser uma aluna fora de faixa e os diversos obstáculos que já enfrentou na vida, incluindo os que a fizeram “desistir da escola” por um período, como a vivência de relacionamento amoroso abusivo.
Aos 21 anos, a jovem que mora nas proximidades da escola, conta que reside na casa em que trabalha como doméstica. O horário da tarde é reservado aos estudos na escola que é regular, logo, funciona apenas um período.
Na escola, Alana relata também que tem muitas dificuldades de socialização, se sente uma pessoa “mais fechada” e que algumas dessas questões precisam ser trabalhadas. “No Ensino Médio não é fácil para ninguém. Tanto que eu saí do emprego que eu ajudava em casa, não recebi o Pé de Meia porque não foi aprovado”, completa.
Na sala de aula a professora de português, Verônica Alves, que atua na rede estadual há quase 14 anos, explica que por estar no projeto Professor Diretor de Turma (PDT) procura “conversar com as famílias, repassar informações para os demais professores”, dentre outros suportes de modo mais atento e direcionado.
Além de ser professora de português, que é quem tem mais aulas, eu dou (disciplinas) eletivas e ainda dou formação cidadã. Na escola temos alunos que tem problemas de depressão, e a gente procura esclarecer, conversar. Muitas vezes, eles não têm coragem de falar por causa do estigma da doença mental. Mas ainda há muita ignorância.
O PDT é uma iniciativa realizada nas escolas públicas estaduais no Ceará desde 2008 e nela o professor fica responsável por uma determinada turma, com a responsabilidade de conhecer os alunos individualmente e acompanhá-los de perto.
A professora relata que inclusive a conscientização dos pais ainda é um obstáculo. Muitos, relata, por falta de informação, quando são orientados a buscar serviços da rede na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para os filhos, se sentem contrariados. “As pessoas não enxergam como doença. Acham que é frescura (do adolescente), que é coisa para chamar atenção e não dão a devida atenção”, completa.
Como as competências socioemocionais são trabalhadas com os adolescentes?
No contexto escolar, essas competências podem ser trabalhadas por meio de programas específicos, como práticas de educação emocional e atividades que incentivem a resolução de conflitos, a colaboração e a empatia, por exemplo.
No Brasil, documentos de referência para a educação, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define as aprendizagens essenciais de todas as crianças e jovens brasileiros em cada uma das etapas de ensino da Educação Básica, segundo a gerente de pesquisa do Laboratório de Ciências para a Educação (Edulab21) do Instituto Ayrton Senna, Karen Cristine Teixeira, "têm destacado a importância do desenvolvimento pleno e integral dos estudantes" e, nesse sentido, diz ela: "a educação socioemocional se constitui como um dos direitos de aprendizagem".
Portanto, explica Karen, é "indispensável que ela esteja representada com intencionalidade nos currículos e esteja articulada com os projetos político-pedagógicos das escolas".
É importante que as competências socioemocionais façam parte do cotidiano da sala de aula. Os estudantes precisam ter acesso a momentos de letramento socioemocional, nos quais eles aprendam o que cada competência significa, como reconhecer e mobilizar aquela competência no seu dia a dia, que ajudam a criar um entendimento e um vocabulário comum a toda a comunidade escolar.
Questionada sobre quais competências socioemocionais têm mais conexão com a promoção da saúde mental, Karen diz que, segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Ayrton Senna, em 2021, são " autoconfiança, confiança, determinação, entusiasmo, foco e tolerância ao estresse".
Sobre as questões específicas de gênero, Karen explica que na pesquisa da OCDE divulgada em 2024 os "resultados mostraram que meninos tendem a relatar maiores indicadores de saúde mental e bem-estar em comparação às meninas. Além disso, meninas de 15 anos de idade relatam menores níveis de desenvolvimento nas competências que são mais relevantes para a saúde mental".
Ela também detalhou que um estudo longitudinal feito pelo Instituto Ayrton Senna que acompanhou estudantes dos anos finais do ensino fundamental durante a pandemia de Covid 19 evidenciou que "as meninas tiveram uma queda em sua saúde mental significativamente maior do que os meninos entre os anos de 2020 e 2021. Enquanto os meninos tiveram uma queda de 6% em sua saúde mental, as meninas tiveram uma queda de 17,9%".
Karen enfatiza que levar em consideração as diferenças relacionadas ao gênero "pode ajudar a fornecer apoio mais personalizado aos desafios das meninas para que a saúde mental seja preservada".
Nesse percurso, é estratégico, por exemplo, desenvolver junto às meninas principalmente as competências de resiliência emocional - tolerância ao estresse, à frustração e autoconfiança - para que elas possam lidar melhor com emoções e conservem a crença nas próprias capacidades.
Abordagem socioemocional nas salas de aula do Ceará
Na rede estadual do Ceará, na qual, em geral, os alunos têm de 15 anos em diante, a coordenadora da gestão pedagógica do Ensino Médio da Secretaria Estadual da Educação (Seduc), Iane Nobre, explica que a abordagem socioemocional é agregada no currículo a partir de ações pedagógicas como Projeto de Vida e o Professor Diretor de Turma que são componentes curriculares com carga horária estabelecida e as quais as turmas de 1º, 2º e 3º têm horários dedicados.
Na prática, é nesse momento que esses assuntos que não são conteúdos dentro das disciplinas ganham “espaço próprio” com discussões e atividades que ajudem os alunos e alunas na reflexão e no desenvolvimento desses aspectos.
Nas escolas regulares (de meio período), os alunos, na semana podem ter até 2 horas aula para essa formação que considera a abordagem socioemocional de forma mais dedicada. Nas de tempo integral, podem ter até 5 horas/aula na semana e nas profissionalizantes até 4 horas/aulas semanais.
De acordo com ela, essa abordagem começou a ser incorporada na rede estadual em 2008, quando surgiu o projeto Professor Diretor de Turma na educação profissionalizante e em 2022 conseguiu ser universalizada nas escolas estaduais.
Temos competências socioemocionais que se desdobram em várias características que impactam na forma como essa pessoa tanto se enxerga, com as competências intrapessoais, competências que me ajudam e me perceber melhor, tem as interpessoais, eu e as outras pessoas, como a gente convive e se relaciona e tem as competências de mundo, de visão de futuro, de ser um cidadão global e enxergar questões sociais mais amplas.
Sobre conseguir medir o impacto dessa abordagem, Iane diz que em 2019 a Seduc começou a fazer um primeiro teste para tentar mensurar as competências socioemocionais entre os estudantes. Naquele ano, relata, foi feito um monitoramento com as turmas de 1º ano, em um estudo longitudinal. Na pesquisa de Sobral, diz ela, "foi ampliado esse olhar".
“Nós fazemos uma autoavaliação formativa que já é no próprio sistema da Seduc e o professor faz sistematicamente. Duas vezes no ano, a Seduc recolhe esse levantamento e, segundo Iane, "consegue ter uma visão de rede, de saber quais competências precisam ser mais fortalecidas, onde estão as maiores necessidades”, destaca.
Trabalho dos psicólogos educacionais
Apesar dos avanços na implementação das formações socioemocionais, professores e alunos ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam que ainda há muitas lacunas na estruturação do acompanhamento psicológico nas redes de ensino.
Conforme a Seduc, a rede estadual tem 62 psicólogos educacionais e 25 assistentes sociais lotados nas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Credes), no interior; e na Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor), na Capital. A rede tem 398 mil alunos em 2024.
O professor acaba fazendo uma função que não é dele. O apoio psicológico ainda é muito pouco, tanto para alunos como para os professores. Deveria ter ao menos um núcleo em cada regional para os atendimentos das escolas, mas infelizmente a gente só conta com os serviços que já existem e olhe lá.
A psicóloga clínica e educacional, Camila Pontes Anselmo, destaca que, diante das demandas cada vez mais evidentes por cuidados com a saúde mental, as escolas já estão mais atentas a essa preocupação e há, segundo ela, “um movimento crescente nas instituições escolares em trabalhar a inteligência emocional dos alunos, que são indivíduos com dimensão biológica, psicológica e transcendental”.
E o aspecto psicológico, explica, “é responsável pelos processos emocionais, sentimentos, traumas e relacionamentos interpessoais”.
Ela esclarece que o trabalho do psicólogo escolar “consiste em acolher os alunos, estabelecer estratégias de intervenção em situações de crise e atuar como mediador no diálogo entre professores, coordenadores e famílias”.
Faz parte da função, completa, “ajudar a identificar as possíveis causas de adoecimento psíquico, déficits cognitivos ou transtornos relacionados à aprendizagem, que podem estar dificultando o desenvolvimento saudável dos alunos”.
A psicóloga também reforça que o desenvolvimento de competências socioemocionais “impacta diretamente a saúde mental dos alunos”. Dentre os exemplos dessa articulação, menciona que o tema “trabalho e projeto de vida” possibilita “desenvolver habilidades, sonhar, estabelecer metas e descobrir um propósito para a existência” e isso auxilia à saúde mental.
Outra dimensão é autoconhecimento e autocuidado, que, destaca, “permite que o aluno entenda suas motivações, emoções e afetos e isso contribui para uma relação mais saudável consigo mesmo, aumentando sua autoestima, autonomia e autoconfiança, elementos essenciais para uma boa saúde mental”.