‘Perdi minha bolsa por estar grávida’: assédio e preconceito afetam saúde mental de mulheres cientistas
As mulheres são a maioria dos pesquisadores no Brasil, representando 53% desse grupo, conforme dados do Perfil do Cientista Brasileiro, divulgado em 2023. Além das proporções quantitativas, os resultados do levantamento constataram aquilo que as cientistas sentem no dia a dia: o mundo da pesquisa segue cheio de percalços para mulheres por conta do gênero. Essa realdade sedimenta barreiras que pesam justamente sobre um aspecto definidor da qualidade de vida: a saúde mental.
O estudo que é uma espécie de “censo da pesquisa brasileira” reitera: as mulheres enfrentam entraves maiores para alcançar posições de chefia na ciência; têm mais impactos na carreira com a chegada dos filhos e são vítimas de assédio moral e sexual.
O levantamento, elaborado por pesquisadores da Academia Brasileira de Ciências (ABC), engloba profissionais no início ou no meio de carreira. Dentre outros achados, a pesquisa sistematiza os desafios relacionados ao gênero na ciência brasileira.
O estudo que tem apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) demonstra a urgência na implementação de políticas que promovam a equidade nos espaços universitários.
Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Essas dimensões ganham forma no dia a dia e geram sofrimentos, dores e traumas, como ser chamada de “burra” e “incompetente” pelo professor orientador; perder a bolsa de monitoria por ter engravidado; sentir-se pressionada a não ter filhos para que a carreira possa progredir e com isso não “impactar” a produção científica, cujos prazos são extremamente rígidos ou ser preterida em seleções pelo fato de ser mulher.
O Diário do Nordeste ouviu relatos de pesquisadoras que, infelizmente, reiteram a ocorrência de inúmeras situações dolorosas e traumáticas. E pior, a sensação é que, apesar de avanços sobre ações de equidade de gênero, a superação de preconceitos e as mudanças institucionais ainda seguem distantes.
O Perfil do Cientista Brasileiro traz como pontos negativos de destaque sobre relações de gênero:
- Impacto da parentalidade: O estudo constatou que a parentalidade afeta de forma desigual homens e mulheres na ciência. Mulheres relatam um impacto muito maior na chegada dos filhos em relação aos homens em diversos aspectos da carreira, como participação em eventos e produção científica. A queda na produção científica após o nascimento dos filhos é significativamente maior entre as mulheres.
- Assédio moral e sexual: O estudo revelou que 47% das pesquisadoras relatam já terem sofrido assédio sexual na academia, em contraste com 12% dos homens. A grande maioria dos casos de assédio sexual contra mulheres (99%) foram perpetrados por homens. Outro ponto é a alta ocorrência de assédio moral, com maior incidência entre as mulheres (62,9%) do que entre os homens (46,5%).
- Sub-representação em posições de liderança: A pesquisa destaca a existência do "efeito tesoura", em que a representação feminina diminui drasticamente em cargos de liderança na ciência. Apenas 36% dos bolsistas de produtividade do CNPq são mulheres. Essa disparidade se torna mais evidente ao analisar a concessão de bolsas de produtividade considerando gênero e raça.
- Dificuldades de progressão na carreira: O estudo constata que a falta de reconhecimento como liderança científica é um obstáculo apontado por 73% dos pesquisadores em início de carreira. Existe uma percepção de que a capacidade científica está associada à senioridade, o que pode dificultar o reconhecimento do potencial de jovens pesquisadores, especialmente mulheres.
Pressões e competência posta em xeque
“Era falado. Era expresso. Ele (orientador) mandava eu fazer algo de determinado jeito, aí eu fazia e quando a gente ia analisar os resultados, nós trabalhamos com hipóteses, né?, nem sempre a gente confirma a hipótese que a gente fez, e quando não era a hipótese que a gente elaborou, ele falava que a culpa tinha sido minha e que ele estava perdendo tempo e dinheiro por causa de aluna incompetente”, relata uma pesquisadora (que optamos por não identificar) de uma institução de ensino superior no Ceará que está no pós-doutorado.
E completa: “Em outra situação eu fiz exatamente ao contrário dele, porque ele tinha falado que eu precisava questioná-lo. Fiz ao contrário, fui pelas minhas recomendações e não foi o que ele queria. Aí foi e falou: Ah, não, agora você foi burra. Ou seja, se eu seguisse o que ele recomendava eu estava errada, se eu não seguisse estava errada também. Então não tinha o que fazer”.
Essas ocorrências traumáticas se deram entre 2016 e 2018 quando ela estava no mestrado. O profissional era temporário na universidade, relembra, e a tensão criada em volta dos temas relacionados à denúncia no espaço institucional, segundo ela, a fez não registrar uma queixa formal na ouvidoria.
Infelizmente, dentro da universidade a gente tem muito a cultura de coleguismo entre os profissionais. Aí você não é bem-visto, se você for abrir uma denúncia ou abrir alguma reclamação contra alguém, contra um professor. Apesar das pessoas se conhecerem, das conversas de corredor. Mesmo assim, você tem que ter coragem de expor as situações que você passa porque pode fechar portas no futuro.
De acordo com ela, em situações de distrato por parte do orientador ela percebia que o desrespeito tinha como alvo sempre mulheres ou homens gays. “Ele só respeitava homem e homem hétero”.
Outros comportamentos eram o tom elevado na frente de outras pessoas, “era realmente como se não tivesse nenhum pudor. Ele disse que ele teve formação no Rio de Janeiro. Ele falou que lá no Rio de Janeiro ele foi criado assim e que ele ia criar as alunas dele da mesma maneira”.
Ela também recorda que na época do mestrado, o bolsista não era autorizado a trabalhar em outro local ao mesmo tempo, pois a dedicação precisava ser exclusiva.
“Então, aquilo é a fonte de renda. Aquilo é o seu trabalho. Isso é outro fator estressor. Porque as pessoas não veem por não ser CLT (com carteira de trabalho assinada). Não tem vínculo empregatício, as pessoas não nos veem como trabalhadores, mas a gente tem compromisso, tem horário, demandas. E ainda tem um ônus que a gente não tem férias, porque como é o nosso trabalho, depende da gente”.
A maternidade como dilema para as pesquisadoras
Em outro momento, mas compartilhando dramas semelhantes por ser uma mulher pesquisadora, funcionária pública que está no doutorado explica que as tensões de gênero, recorrentes no ambiente de pesquisa, para ela, foram evidenciadas ainda na graduação, quando engravidou no último ano do curso.
Na época, não consegui enxergar algumas restrições ali, algumas palavras que eu ouvia. Porque há 11 anos a gente não estava tão evoluído como hoje, que ainda precisa evoluir, mas, já conseguimos ver que esse espaço da universidade é um pouquinho mais acolhedor. Quando eu falei para o meu orientador que eu estava grávida. Ele disse: Ah, não! então eu vou substituir você. Eu era monitora na época e perdi a bolsa porque eu estava grávida. Ele achava que eu não ia cumprir meu trabalho. Depois vi o quanto isso foi um abuso.
Desde então, relata, tem atuado arduamente para “conciliar a carreira com a maternidade”. Naquela época, quando concluiu a graduação grávida, destaca: “E eu senti muito mais acolhimento das professoras mulheres. E é muito importante que a gente possa ter ali aquelas pessoas que enxergam o que você está passando. Os homens não são tão sensíveis a essa causa. É fato", completa.
Dois anos após concluir a graduação, ela ingressou no mestrado e anos depois passou em um concurso público para a área na qual desenvolve pesquisas.
Todos esses anos sob efeito de estresse, em 2024, eu precisei tomar medicação para ansiedade, porque eu sentia que eu não estava conseguindo mais trabalhar naquele ritmo que eu trabalhava. Aí eu precisei de ajuda para conseguir também me concentrar melhor para o doutorado. Entender que certas coisas não dependiam de mim. Dizer alguns não.
Sobre a rede de apoio para se manter na profissão e em paralelo cuidar da filha, ela explica que conta com o esposo e também pagou creches, e escola de tempo integral para a filha, que agora tem 11 anos, quando a criança era mais nova.
“Eu considero a escola em tempo integral importantíssima, porque foi por isso que eu consegui. A minha filha ficou na escola em tempo integral até os 6 anos de idade. Então eu consegui ter esse tempo, sabe? De trabalhar ali às oito por dia”. De acordo com ela, a persistência no campo de trabalho que escolheu é uma vitória pessoal.
“Eu sempre tive essa vontade de seguir em frente. Você vai quebrando ali padrões familiares, vai seguindo, conquistando coisas que outras pessoas não conseguiram.É tão recompensador. A minha competição é muito interna. Não é com ninguém, é comigo mesma. Eu tenho muito orgulho da minha trajetória, de ter conseguido chegar até aqui. Eu não consegui todos os objetivos que eu queria, mas consegui muita coisa”, enfatiza, consciente dos obstáculos enfrentados, sobretudo, os de gênero.
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Hoje, explica, nos eventos científicos dos quais participa, ela já consegue fazer intervenções, como falar com os organizadores para que os espaços tenham, por exemplo, áreas para as crianças, de modo que as mães pesquisadoras possam levar os filhos em viagens de trabalho.
Essas coisas acolhem as mães e aí você entende: nossa, esse lugar também é para mim. Por que quantas mulheres deixaram de seguir sua carreira por conta desses percalços da maternidade? Quantas mulheres poderiam ter sido cientistas, artistas, enfim, várias categorias e não conseguiram porque não tiveram esse apoio? Então é o apoio institucional, apoio social, uma rede de apoio familiar ou uma rede de apoio paga que faz com que a gente consiga seguir.
No dia a dia, relata, é muito comum que pesquisadoras ao seu redor desistam da maternidade por conta da carreira. Ela diz também que nos últimos três anos tem feito terapia e em 2024 “precisou de acompanhamento psiquiátrico”. Além disso, a rotina de cuidados inclui acompanhamento nutricional e exercícios físicos.
Ambas as pesquisadoras ouvidas pelo Diário do Nordeste concordam que, apesar de uma maior conscientização, inclusive, das próprias mulheres, a garantia de suporte e a capacidade de mobilização para enfrentamentos mais contundentes desses tipos de situações, ainda são distantes.
Para elas, o envolvimento das instituições com a criação de medidas mais efetivas, incluindo mecanismos acessíveis de denúncia, momentos e espaços de escuta, fatores de correção em editais para as mulheres que tiveram filhos e uma maior atenção à saúde mental das pesquisadoras são urgentes e precisam ser implementadas para que avanços mínimos sejam conquistados nesses ambientes.
Como essa questão compromete a saúde mental?
No mundo do trabalho, explica a psicóloga, doutora em Psicologia e professora de Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Mariana Aguiar Alcântara de Brito, há uma precarização das relações em meio a uma “lógica globalizada, um processo intensificado de aceleração social onde a relação tempo e trabalho é muito difícil de ser resolvida”.
E nesse universo, destaca ela, há um fenômeno que é o chamado de produtivismo acadêmico. “Um foco dado a avaliações internas e externas das agências de fomento que gera muita competitividade e vão corroendo os laços sociais e vão tornando pesquisadores e pesquisadoras muito sozinhos. Há uma solidão muito grande e processos muito individualizados”, acrescenta.
Nessa lógica produtivista, explica ela, “há um foco na produção quantitativa e se perde a questão da qualidade e isso gera um sofrimento ético político. A pesquisa é um lugar de importância, de reconhecimento, de destaque e é um lugar que através dele se consegue recursos financeiros. Isso reforça a importância e gera uma pressão ainda maior”, completa.
Nos ambientes acadêmicos e de pesquisa existem estressores "característicos" como a mencionada pressão das avaliações, as cargas elevadas de trabalho e estudo, cobranças por desempenho, dentre outros. No caso das mulheres há questões de gênero que marcam também essa dinâmica como o acúmulo de tarefas (as domésticas e as de pesquisa/trabalho) e as relacionadas ao conflito carreira versus gestação, por exemplo.
Considerando esse conjunto de obstáculos, o que é possível fazer para equilibrar e quais os desafios mais contundentes no caso das mulheres?
Para a psicóloga Mariana Aguiar um ponto importante, de partida, no que diz respeito a análise da docência é que ela tem uma ampla presença feminina, “normalmente as profissões que envolvem cuidado são ocupadas culturalmente por mulheres. E isso tem gerado intensificação e sobrecarga por conta da tripla jornada. As mulheres têm uma sobrecarga mental maior e isso amplia a vulnerabilidade que elas se encontram”, acrescenta.
Equilibrar essas condições de modo a garantir espaços mais propícios à melhoria da qualidade da saúde mental e do bem estar das mulheres é um “processo difícil”, avalia. Isso porque “envolve condicionantes sociais e mais amplos do que uma gestão só institucional ou de medidas de manejo individual, pois tem muita pressão institucional, externas, dos colegas, autocobrança”, aponta.
Questionada sobre o que as instituições podem fazer para melhor acolher as mulheres em sofrimento mental, a psicóloga destaca que são possíveis, dentre outras iniciativas:
- A construção de espaços coletivos, de salas de acolhimento onde se possa falar sobre o assunto, de transformação do próprio trabalho;
- Construção de parcerias e mudança de cultura institucional, como o combate ao produtivismo;
- Promoção de políticas afirmativas de equidade nos ambientes institucionais;
- O mapeamento, inclusive numérico, das situações de adoecimento de modo a garantir a proteção das mulheres afetadas;
Dentro dessa lógica da equidade, às vezes até pensamos na redução de carga horária, a gratificação, diminuir tempo de aposentadoria. Desde a última reforma (da previdência) temos perdido muito enquanto gênero. No caso da categoria docente, temos tido perdas históricas sobre direitos de aposentadoria. Isso tudo incorre na vulnerabilidade social, principalmente dessas mulheres que têm outras atividades de cuidado também além do trabalho.
De acordo com ela, apesar da complexidade do cenário, as questões relacionadas à saúde mental de pesquisadoras e mulheres docentes nas instituições de pesquisa e ensino já “estão sendo discutidas, faladas, têm sido ampliadas pesquisas sobre essa temática, campanhas”. Mas: “ainda em um contexto muito pontual e muito ligado a alguma temática, alguma data especial”.
Ela também reforça que há muitos serviços de escuta, plantão psicológico, “mas com foco maior é no indivíduo sem levar em consideração contextos sociais, contextos macros. Há muito que ser feito”.
A psicóloga, professora e pesquisadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Diana Ramos de Oliveira, e também integrante da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, destaca que: “pesquisas já apontam para um nível de estresse laboral no trabalho das docentes no ambiente acadêmico, diante das múltiplas exigências que precisam ser cumpridas em atividades de ensino, pesquisa e extensão, ademais de acumular com suas tarefas domésticas”, e acrescenta que depois da pandemia de Covid "os prejuízos na saúde mental se intensificaram".
Penso ser fundamental investimentos institucional em treinamento e capacitação sobre gênero e outros marcadores sociais da diferença de maneira a compreender que um espaço de trabalho saudável será mais produtivo ao oferecer respostas às situações desgastantes e conflituosas no espaço acadêmico e fomentar um trabalho para menor predisposição para problemas de saúde mental relacionada ao trabalho.
Diana reforça que “a saúde mental e o bem-estar dos servidores e colaboradores” estão na ordem do dia, mas não há "um padrão no entendimento e marcos regulatórios para lidar com as ocorrências no âmbito acadêmico”.
Assim sendo, avalia, “tanto o funcionamento e as consequências são distintas” e por efeito, “o silêncio de muitas docentes em algumas universidades se intensifica juntamente com seu mal-estar psicológico”.
Ela também enfatiza que ainda que as instituições públicas “disponham de resoluções, pró-reitorias e coordenações específicas para tratar sobre este e outros tipos de violências institucionais, precisam continuar discutindo sobre estas pautas de gênero para reduzir o sofrimento psíquico das docentes no ambiente acadêmico”.
Diante dos históricos obstáculos impostos às mulheres pesquisadoras, a psicóloga avalia que “as instituições, além das políticas públicas internas sobre gênero e outros marcadores sociais da diferença, devem criar espaços para acolhimento em que as mulheres que se encontram em sofrimento psíquico se sintam à vontade para frequentar sem mais prejuízos”.
Medidas adotadas pela paridade de gênero na ciência
No decorrer das últimas décadas, a discussão no Brasil sobre a garantia de acesso e permanência das mulheres na ciência, de modo saudável, tem ganhado ênfase, sobretudo, pela organização das próprias mulheres. Nesse sentido, alguns direitos foram ampliados e outros conquistados, como:
- Prorrogação das bolsas de estudo: Conforme a Lei 13.536/2017, benefícios concedidos pelas agências de fomento à pesquisadoras com duração mínima de 12 meses poderão ter esse prazo prorrogado por até 180 dias, se for comprovado o afastamento temporário do bolsista em virtude da ocorrência de parto, de adoção ou de obtenção de guarda judicial para fins de adoção durante o período de vigência da respectiva bolsa;
- Gravidez de estudante: Embora não exista uma norma nacional que garanta explicitamente a licença-maternidade para as estudantes, a Lei Federal 6.202/75 permitiu que gestantes, a partir do oitavo mês, pudessem estudar e fazer trabalhos e provas em regime domiciliar. O início e o fim do período em que é permitido o afastamento serão determinados por atestado médico a ser apresentado às instituições.
- Fatores de correção em seleções: Adoção de critérios em seleções nas instituições de ensino e pesquisa, que consideram a pausa da maternidade em processos de avaliação de currículo. São medidas práticas, por exemplo, a ampliação do intervalo de análise em, pelo menos, 2 anos por filho nascido ou adotado no período avaliado. Logo, se a seleção considerar a produtividade dos últimos 5 anos, no caso das mulheres nessa condição devem considerar os últimos 7 anos. Ou adoção de fatores de correção na pontuação obtida na análise do currículo.