Uma massoterapeuta de 59 anos, moradora da Barra do Ceará, periferia de Fortaleza, que hoje ajuda mulheres em sofrimento psíquico a aliviar as próprias dores. Quando jovem, Maria José Nascimento, a Mazé, sonhou ser médica ou enfermeira. Mas uma série de dilemas a impediram de alcançar o desejo. Depressão, ansiedade e a dependência química do álcool atravessaram sua história.

Apesar das dificuldades, ela, felizmente, há 6 anos encontrou tratamento e cuida da saúde mental. Desde então, recomeça diariamente. 

Em outro cenário, mas na mesma região, Mariana (nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte), também uma mulher de baixa renda, busca ajuda para tratar a ansiedade e a depressão. Costureira e mãe de duas filhas, sendo uma adolescente e a outra bebê, viu ainda jovem a maternidade se transformar em uma experiência “solitária”. E essa, junto a outras responsabilidades não tem sido uma experiência leve, tampouco fácil.  

Ambas as histórias, de moradoras da periferia de Fortaleza, se conectam em uma realidade que une: saúde mental, gênero e pobreza, e não são casos isolados. Ao contrário, evidenciam a realidade de diversas mulheres Brasil afora em um contexto no qual as privações de direitos como o acesso à saúde, educação, trabalho e renda, dentre outros, podem e têm agravado os sofrimentos mentais. 

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Legenda: O Diário do Nordeste discute em que medida a pobreza afeta a saúde mental das mulheres
Foto: Fabiane de Paula

Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.

Em que medida a pobreza afeta a saúde mental das mulheres?  Os fatores de risco nesse contexto são diferentes a depender da renda da população afetada. Mazé é uma das centenas de mulheres das periferias brasileiras em tratamento mental e, em um paralelo solidário, tem ajudado a cuidar de outras mulheres que também padecem nessa jornada. Há seis anos, o cenário para Mazé, relata, era de tristeza, alcoolismo, pobreza extrema, insegurança alimentar, abandono e quebra parcial de vínculos familiares.

Em depoimento, ela relembra esse tempo e se afirma consciente do tamanho das mudanças. Aflições e angústias as acompanhavam. Manifestações do adoecimento que em meio à vida marcada por privações diversas, fizeram Mazé, segundo ela mesma, “se largar”. 

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Faltava cuidado, sobrava dores. Assim como tantas outras mulheres adoecidas, Mazé, mãe de 6 filhos, lembra que, àquela altura, “não via saída”. Com a saúde mental afetada, sem dinheiro, sem oportunidade, envelhecendo, “vagava” pelos arredores da casa onde mora até hoje e ficava até 4 dias sem retornar à residência: “eu não ligava para mim”, recorda. 

Eu não tinha renda para pagar nada. Eu vivia de migalhas, minha filha (a mais nova dos seis filhos que Mazé tem) trabalhava sozinha. Minhas amigas iam deixar alimentos. Minha filha recebia o auxílio e pagava o aluguel com isso, ajudava e quando entrei no projeto (4 Varas) eu era voluntária e vinha também para ter onde almoçar, porque antes eu não tinha mesmo o que comer. Quando eu cheguei aqui eu cheguei arrasada, achava que não tinha solução para mim, mas hoje eu tô formada e realizada. 
Maria José Nascimento
Massoterapeuta e integrante do Projeto 4 Varas

Levada por uma amiga ao Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária (MISMEC), Projeto 4 Varas, um das iniciativas mais reconhecidas no tratamento da saúde mental da população periférica de Fortaleza, desenvolvida no Pirambu desde a década de 1970, Mazé, aos poucos, ao ser cuidada e receber acolhimento, tem visto e sentido a vida melhorar. 

“Esse projeto me deu vida, me deu oportunidade. Encontrei amor, respeito, não me julgaram em momento algum”, ressalta.

No local, que é uma entidade civil sem fins lucrativos, Mazé passou a fazer terapia e participar de sessões de escalda pé. Aos poucos, foi reduzindo o uso de medicações como ansiolíticos e antidepressivos.

Na redução de danos, conta, tem se mantido longe do álcool. Um ano após entrar no projeto, pediu para trabalhar como voluntária no espaço referência no tratamento humanizado e voltado à população vulnerável. 

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Ajudar outras mulheres

No trabalho voluntário, ela recebeu formação em massoterapia e reflexologia (técnica de tratamento com estímulos em pontos específicos nos pés) e, há alguns anos foi contratada no espaço para atuar na aplicação dessas terapias integrativas no público atendido no local. 

“No dia da minha formatura, foi a coisa mais linda da minha vida. Nunca pensei que esse projeto fosse fazer o que fizeram comigo. O que eu tenho para dizer é que aqui é o lugar daqueles que sofrem, que se sentem sozinhos, que são desprezados”. Hoje, ela vai de segunda à sexta ao MISMEC 4 Varas onde trabalha junto a outros 34 voluntários, recebe ajuda financeira de uma das filhas e tem reconstruído a própria trajetória. 

E é nesse local que Mariana (nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte), também moradora da Barra do Ceará, costureira e mãe de duas filhas, procura ajuda para tratar a ansiedade e depressão. 

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Legenda: Mazé atua no MISMEC 4 Varas e Olga do Nascimento é vice-presidente da instituição
Foto: Camila Lima

Com a primeira filha, Mariana sentiu-se “só e abandonada”, já que o pai da criança é ausente. Precisou trabalhar intensamente e, ao ingressar em um novo relacionamento, que já dura 12 anos, viu a possibilidade de estruturar uma nova família e viver novas emoções. “Como com a minha primeira filha eu fui mãe solo, eu tinha muito medo de relacionamento, sofria, me sentia só”, conta. 

Eu passava de dois, três dias sem dormir e meu humor mudava muito. Tinha horas que sentia muita agonia e não queria conversar com ninguém, tinha vontade de não existir. Vontade de largar tudo  e ir embora. Achava que ia ficar sozinha, que não tinha ajuda de ninguém e fui vendo aqui que era acolhida. E vai tirando só a tensão da responsabilidade. Tem um ambiente que a gente pode parar, descansar, sentir o vento, conversar. 
Mariana
 (nome fictício que optamos por usar para preservar a fonte)

Ao procurar ajuda no posto de saúde, além dos tratamentos convencionais na unidade que atende o bairro, foi orientada a buscar o MISMEC 4 Varas, onde além de terapia, conta que faz também massoterapia e ventosa.

“Se não tivesse esse espaço seria muito difícil, porque às vezes a gente vai no posto fica na fila de espera. Esse espaço aberto acolhe muitas mulheres. Só de escutar a gente já é muito bom”, completa.

Ela relata que sobrevive com pouco mais de um salário mínimo, e o “espaço de descompressão” a tem ajudado a se permitir “desacelerar” da jornada que une, dentre outras responsabilidades: a ocupação profissional, o cuidado com as filhas, o custeio da casa e a vida doméstica. 

A demanda é evidente, explica a vice-presidente do MISMEC 4 Varas, Olga do Nascimento Ribeiro, e sinaliza que, por semana, passam pela instituição cerca de 70 pessoas, destas, 90% são mulheres. “São mulheres, adolescentes, mães que inclusive trazem crianças para serem cuidadas”, detalha. 

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Junção: pobreza, gênero e saúde mental 

A pobreza é um fenômeno multifatorial e não pode ser vista em uma associação automática com a geração de transtornos mentais. Contudo, pesquisadoras ouvidas pelo Diário do Nordeste ressaltam que nessa interseção, a pobreza impõe uma série de privações, sobretudo, as mulheres, e isso eleva riscos que afetam a saúde mental, por isso, tal conexão não pode ser ignorada. 

A psicóloga e doutora em psicologia e professora da Faculdade Ari de Sá, Bárbara Nepomuceno, explica que é preciso compreender a interdependência entre tais categorias sociais, “indo além de um simples somatório de fenômenos”.

De acordo com ela que é professora da Faculdade Ari de Sá e tem pesquisas científicas com foco nessa intersecção (pobreza, mulheres e saúde mental) a interação entre essas dimensões “produzirá um novo fenômeno” e, por isso, afirma, é preciso um olhar mais atento à saúde mental e aos processos de sofrimento psíquico de mulheres que vivem em condições vulneráveis. 

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Legenda: Estudos dizem que a pobreza não determina, mas contribui para o risco de adoecimento mental
Foto: Fabiane de Paula

Considerada a partir de uma perspectiva multidimensional, a pobreza, destaca a pesquisadora, “coloca o sujeito em uma condição de privação de acesso à renda, à educação, a condições dignas de trabalho, a vivência de situações de vergonha, humilhação e de culpabilização e a responsabilização por essa condição”. 

Na saúde mental, completa Bárbara: “os estudos apontam que pessoas em sofrimento psíquico estão mais vulneráveis à baixa da renda, afastamento do trabalho ou não acesso ao trabalho, aumento dos gastos com serviços de saúde e medicamentos, o que contribui para uma intensificação das condições de pobreza”. 

Nesse sentido, ressalta a pesquisadora, é possível dizer que os fatores de risco para a saúde mental das mulheres são diferentes se elas tiverem mais ou menos renda, ou seja, se forem ricas ou pobres. 

Os problemas de saúde mental são atravessados por questões culturais, sociais, econômicas, muito ligados às questões concretas e cotidianas da vida. Os estudos em saúde mental revelam que os fatores socioeconômicos influem no desencadeamento do sofrimento psíquico e que este está intimamente relacionado aos modos de vida dos sujeitos. 
Bárbara Nepomuceno
Psicóloga, doutora em Psicologia e professora universitária

Assim, argumenta ela, “os marcadores sociais de gênero, idade, local de moradia, condição socioeconômica, trabalho, estado civil, viver ou não em contexto de pobreza, impactam na saúde mental dos sujeitos”. 

As mulheres que vivem condições de pobreza, destaca, estão sujeitas a uma série de fatores que as vulnerabilizam, tais como: a privação à renda, à educação, ao transporte, ao lazer, à moradia, insegurança alimentar, desemprego e precarização do trabalho, acesso deficitário ao cuidado em saúde, vivência de vergonha e humilhação, entre outros, e isto as coloca “em um contexto de risco ao sofrimento psíquico”.

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Atenção na rede de tratamento

A psicóloga do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Juliana Murta, argumenta que essa interseccionalidade “é crucial considerar como esses fatores se sobrepõem, simultaneamente, para intensificar vulnerabilidades”. 

Ela explica, que “mulheres em situação de pobreza sofrem não apenas os efeitos das limitações financeiras, mas também as discriminações e pressões de gênero e raça” e acrescenta que: “embora a conscientização sobre esses temas tenha aumentado, a rede hospitalar e de tratamento ainda não oferece uma atenção integral suficiente à relação entre pobreza, gênero e saúde mental”. 

Para ela, parte disso “se dá pela falta de uma formação social e política adequada para ouvir e compreender essas questões como estruturais”. Muitas vezes, avalia Juliana, o tratamento foca apenas nos sintomas, sem tomar como aspectos relevantes as causas sociais e econômicas que agravam o sofrimento mental. 

A psicóloga também enfatiza que os fatores de risco para a saúde mental das mulheres “variam conforme sua cor e classe social”. “Mulheres em situação de pobreza enfrentam uma combinação de estressores sociais, como instabilidade financeira, falta de acesso a serviços de saúde e educação, além de violência de gênero”, detalha. 

Juliana ressalta que “a pobreza não determina, mas contribui, e muito, para o risco de adoecimento mental e para a dificuldade de acesso aos serviços necessários em casos de adoecimento já estabelecido”. As questões referentes à pobreza, assim como o racismo e o sexismo, “são de ordem estrutural, o que implica a necessidade de estratégias estruturais para modificar essa realidade”, reforça. 

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Acesso limitado aos cuidados

Essas diferenças entre mulheres pobres e ricas, avaliam as profissionais da saúde, são evidentes também no acesso aos tratamentos. Enquanto mulheres com renda menor estão “mais vulneráveis aos transtornos mentais”, e por efeito padecem também com um limitado acesso aos cuidados em saúde mental, as com maior renda, afirma Juliana, “podem ter mais acesso a tratamentos e apoio psicológico, embora também estejam sujeitas a fatores de risco como pressões profissionais e familiares”. 

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Por isso, as demandas por investimentos mais consistentes nas políticas de saúde mental e ampliação, qualificação e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) “são urgentes”, reitera a psicóloga e pesquisadora Bárbara. 

Não podemos desconsiderar a necessidade de fortalecimento da Política de Assistência Social, dos programas de enfrentamento à pobreza e à privação de direitos, assim como o fortalecimento das políticas de educação. É fundamental, também, a ampliação do acesso às creches, elemento que impacta diretamente nas possibilidades de acesso à renda e ao trabalho para as mulheres.
Bárbara Nepomuceno
Psicóloga, doutora em Psicologia e professora universitária

A psicóloga Juliana Murta acrescenta que as políticas públicas deste campo precisam “ampliar o acesso a cuidados de saúde mental de maneira integral”, o que se reflete, dentre outras iniciativas, na implementação de programas comunitários de apoio psicológico, na formação de equipes multidisciplinares nos serviços públicos de saúde para lidar com questões de gênero e pobreza e na promoção de campanhas de prevenção de transtornos mentais. 

O fortalecimento da Atenção Básica, que se materializa, por exemplo, nos postos de saúde, é outra dimensão a ser considerada na melhoria dos cuidados da saúde mental das mulheres.

Para ela esse nível de atendimento com suporte psicossocial e tratamentos acessíveis, “é uma estratégia fundamental para garantir que essas mulheres recebam o cuidado adequado, sem depender exclusivamente de redes hospitalares”.