Castigos físicos e desemprego dos pais atrasam desenvolvimento de crianças no Ceará, aponta estudo

Pesquisa inédita com 6,4 mil famílias cearenses investigou os fatores externos associados à saúde infantil

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Criança entre brinquedos
Legenda: Interação com adultos por meio de brincadeiras é fator positivo para desenvolvimento infantil, segundo o estudo
Foto: Natinho Rodrigues

“Umas palmadas para educar não fazem mal.” A afirmação é mais comum do que deveria – e mais equivocada do que parece. Pesquisa inédita com 6.447 famílias de crianças de até 4 anos do Ceará mostrou que os castigos físicos e psicológicos estão entre os fatores mais prejudiciais ao desenvolvimento infantil.

O estudo Primeira Infância Para Adultos Saudáveis (Pipas) entrevistou pais e responsáveis de crianças em 16 municípios cearenses sobre temas como saúde, nutrição, segurança e educação. Os resultados foram publicados neste mês na revista científica The Lancet.

13%
das crianças cearenses apresentaram suspeitas de problemas no desenvolvimento infantil global, incluindo as áreas motora, cognitiva, de linguagem e socioemocional.
 

Coordenado por Sônia Venâncio, médica, doutora em Saúde Pública e pesquisadora; e financiado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), esse é o primeiro estudo brasileiro em larga escala que avalia o desenvolvimento da criança e identifica os fatores associados a ele. 

Entre os cearenses, uma constatação preocupa: 84% dos cuidadores confessaram utilizar algum tipo de punição física ou psicológica com a criança. Em um dos municípios, a porcentagem foi de 92%. 

O uso de palmadas foi relatado por 49% deles, ato relacionado a pontuações mais baixas no desenvolvimento de crianças de 3 a 4 anos acompanhadas; e 25% assumiram gritar com os pequenos.

O número alto de famílias com essa conduta foi “surpreendente”, como reconheceu a médica, e embora seja apontada como uma questão cultural, precisa ser tratada “em políticas públicas, seja na saúde, educação, assistência social”.

Mapa mostra quais cidades do Ceará participaram de estudo sobre desenvolvimento infantil
Legenda: Famílias de 16 cidades do Ceará participaram do estudo sobre desenvolvimento infantil
Foto: Reprodução/FMCSV

Os dados do estudo foram coletados em outubro de 2019, durante a Campanha Nacional de Multivacinação, mas apontam para aspectos que merecem ainda mais atenção após a pandemia, como salienta Sônia Venâncio.

“Esse contexto todo, de estresse gerado pela pandemia, desemprego e aumento da insegurança alimentar nas famílias, especialmente as com criança; é muito desfavorável às interações positivas necessárias”, avalia.

Vulnerabilidade socioeconômica

Outro achado da pesquisa que ganha maior proporção no cenário atual é que em municípios com piores indicadores socioeconômicos, houve maior prevalência de crianças com possível atraso no desenvolvimento

O desemprego do chefe da família também apareceu como fator de risco à saúde global infantil.

Crianças com menos de 3 anos que vivem em famílias cujos chefes estavam empregados têm maior probabilidade de atingir os marcos de desenvolvimento em relação àquelas com chefes de família desempregados.

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a professora e enfermeira Márcia Machado, do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFC, já havia citado como o desemprego e a insegurança alimentar assolam as crianças e as relações familiares.

“Isso gera na família uma repercussão inimaginável. As crianças ficam sob estresse tóxico, isso gera agressividade, e há todo um conflito familiar aumentado por essas questões”, destaca.

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Todos os resultados do estudo foram apresentados às gestões de cada cidade participante, para que sirvam de base para elaboração de políticas públicas voltadas à primeira infância.

“Uma ida da criança à creche, a um CRAS, a um posto de saúde é uma oportunidade para as famílias receberem orientações voltadas a esse assunto. É preciso reforçar ações integradas voltadas ao desenvolvimento infantil”, finaliza a médica e pesquisadora Sônia Venâncio.

Informação é crucial

A pesquisa também evidencia que ter informação correta é um dos aspectos cruciais para que o cuidador consiga construir um ambiente favorável ao desenvolvimento infantil. Um exemplo é que crianças cuja família havia lido a Caderneta da Criança ou recebido orientações profissionais sobre o assunto tiveram melhores pontuações.

Para a empresária cearense Damires Gentil, 34, ler sobre o assunto foi uma forma de adotar práticas favoráveis à saúde global dos filhos e sentenciar que castigar os pequenos não é o caminho.

Família em foto de Natal
Legenda: Damires declara "abominar" castigos físicos e focar no diálogo com os pequenos Murilo, de 9 meses, e Ísis, de 3 anos
Foto: Arquivo pessoal

Mãe de Isis, de 3 anos, e Murilo, de 9 meses, ela afirma adotar o diálogo como principal forma de repreender e educar. “O castigo físico, pra mim, nunca foi uma opção. Fui criada sem isso. Sempre falamos o ‘não’ firme, mas sem precisar assustar a criança”, diz.

Abomino quando uma criança cai, se machuca, quebra uma coisa sem querer e vai ser punida. Sempre pensei que não foi porque quis, mas porque está aprendendo. Acho que ela aprende melhor se eu conversar do que gritar e bater.
Damires Gentil
Mãe de Ísis e Murilo

Damires reconhece, por outro lado, que é preciso ter estrutura para adotar essa conduta. “É preciso, claro, muita paciência pra ensinar e dialogar com um serzinho que não entende ainda o que está acontecendo”, pontua. 

O que influencia no desenvolvimento infantil?

Fatores de risco

Socioeconômicos

  • Desemprego do chefe da família;
  • Baixa escolaridade materna;
  • Insegurança alimentar.

Biológicos

  • Fumo durante a gestação;
  • Prematuridade.

Relacionados aos cuidados

  • Cuidador não receber informações profissionais sobre desenvolvimento infantil;
  • Crianças cujo cuidador relatar ter problemas de desenvolvimento.

Fatores protetivos

  • Amamentação com leite materno no período recomendado;
  • Ter acesso a creche/escola;
  • Ter acesso a livros infantis;
  • Ser engajado em atividades de estimulação, como brincadeiras e leitura.

Outros dados da pesquisa

Pessoa segura novo exemplar da Caderneta de Saúde da Criança, distribuída pelo Ministério da Saúde
Legenda: Caderneta de Saúde da Criança é distribuída pelo Ministério da Saúde, e inclui marcos de desenvolvimento neuropsicomotor, afetivo e cognitivo, para acompanhamento dos profissionais
Foto: Ministério da Saúde

  • 78% dos cuidadores leram de forma parcial ou total a Caderneta da Criança;
  • 65% das crianças de 0 a 3 anos não possuíam livros infantis. Entre as crianças de 4 a 5 anos, o índice é de 37%;
  • Crianças que possuíam de um a três livros tinham 71% mais chances de atingir seus marcos de desenvolvimento;
  • Crianças que assistiam a TV ou usavam tablets/smartphones por 2 horas ou mais por dia estavam menos propensas a se desenvolverem adequadamente;
  • 84% das crianças participantes haviam recebido pelo menos 1 alimento ultraprocessado no dia anterior.
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