O direito à vida em Fortaleza é desigual. Para alguns, expira até 20 anos mais rápido. Da falta de acesso à saúde, passando pela educação até a segurança pública, todas as ausências contribuem para um fato: moradores de bairros menos desenvolvidos vivem por menos tempo.
Quem mora no Meireles, por exemplo, bairro com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza, vive, em média, até os 75 anos de idade. Já no Conjunto Palmeiras, o de menor IDH da cidade, a expectativa cai para 65 anos.
Essas são as idades médias dos moradores que morrem nas diferentes regiões da capital cearense, e são mostradas pelo Desigual Lab, plataforma do Instituto de Planejamento da Prefeitura de Fortaleza (Iplanfor) lançada neste ano.
A maior diferença de tempo de vida se dá entre os bairros Novo Mondubim, na Regional 10, e Parreão, na Regional 4: no primeiro, periférico, a média de idade da população ao morrer é de 56 anos. No segundo, salta para 77 anos. Abismo de duas décadas separando gentes de uma mesma cidade.
As informações do Desigual Lab têm como base registros da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), e expressam, em anos, a média da idade das pessoas que morreram em Fortaleza em 2021.
Os 10 bairros de Fortaleza onde a população tem menor tempo de vida, seguidos da colocação no ranking de IDH (quanto maior a posição, menor o IDH), são:
- Novo Mondubim – 56 anos (sem IDH em 2010)
- Curió – 56,7 anos (104º)
- Floresta – 57,8 anos (95º)
- Barroso – 58,3 anos (105º)
- Sabiaguaba – 58,9 anos (83º)
- Boa Vista / Castelão – 59,2 anos (75º)
- Planalto Ayrton Senna – 59,4 anos (111º)
- Pici – 59,5 anos (98º)
- Siqueira – 59,8 anos (113º)
- Pedras – 60 anos (84º)
Já os 10 bairros onde a longevidade é maior entre os moradores são:
- Parreão – 77,1 anos (19º)
- Bom Futuro – 76,5 anos (27º)
- José Bonifácio – 76,4 anos (11º)
- Aldeota – 76,4 anos (2º)
- Dionísio Torres – 75,9 anos (3º)
- Meireles – 75,7 anos (1º)
- Joaquim Távora – 75,6 anos (10º)
- De Lourdes – 75,1 anos (12º)
- Parque Araxá – 74,7 anos (17º)
- Guararapes – 74,6 anos (5º)
O ranking de IDH por bairro utilizado pela reportagem é de 2010, o mais recente disponível, levantado pela então Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SDE) e disponibilizado pela plataforma Fortaleza em Mapas.
O estudo considera apenas 117 dos atuais 121 bairros da cidade.
O IDH é um índice composto por três pilares – saúde, educação e renda – e varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, melhor o grau de desenvolvimento humano de um território.
Por que se vive mais fora da periferia
Para viver por mais tempo, um cidadão precisa ter acesso garantido a uma série de direitos básicos – principalmente à renda, como lista Alesandra Benevides, coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) do campus da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral.
A pesquisadora destaca que “são múltiplos os fatores que ligam a renda com viver mais”. “Com mais renda, você pode escolher alimentos mais saudáveis, ter uma boa nutrição. Morar em bairros com melhor saneamento básico e, automaticamente, ter menor risco de doenças”, inicia.
“Maior renda está associada também a maior educação. Com isso, a pessoa cuida mais da saúde. Isso também é um mecanismo que liga maior riqueza a maior expectativa de vida”, complementa Alesandra.
A coordenadora do LEP aponta ainda que questões de infraestrutura e segurança dos bairros interferem no estilo de vida e, portanto, influenciam no indicador. “Além do saneamento, bairros mais ricos têm espaços públicos, praças em que a pessoa pode fazer atividade física sem ter que desviar de buraco, com risco menor à segurança”, observa.
“Todos esses aspectos bem tangíveis e objetivos, como você ter um cano de esgoto pra sua residência, que é o saneamento; como as coisas mais intangíveis, como fortalecimento de habilidades socioemocionais e cognitivas, levam a uma redução da desigualdade social e te levam a viver mais, em geral”, resume.
Élcio Batista, vice-prefeito de Fortaleza e superintendente do Iplanfor, reconhece que o mapeamento “expressa que essa cidade é desigual”, e endossa que a diferença de tempo médio de vida entre bairros mais ricos e mais pobres da cidade “tem uma multiplicidade de fatores”:
- Infraestrutura urbana;
- Acesso a saneamento básico e água potável;
- Alimentação;
- Atividades econômicas do bairro;
- Acesso ao sistema de saúde e a consultas frequentes;
- Violência.
É para a violência urbana, aliás, que as áreas mais pobres de Fortaleza perdem mais gente, como analisa Luiz Fábio Paiva, sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC – sendo, então, importante causa de diminuição da longevidade da população nas periferias.
O especialista sublinha que “a dinâmica do crime não é uma especificidade das camadas populares, mas elas são as pessoas mais afetadas”, sobretudo pela atuação de facções criminosas e do mercado ilegal de armas e drogas.
“Uma estratégia dos grupos é o controle territorial, para, a partir dele, conseguir desenvolver esquemas de armazenamento, comércio e ganhos financeiros. E acontecem preferencialmente nas periferias”, assinala.
Nas áreas nobres, muitas vezes moram os envolvidos nos crimes, as pessoas que ocupam posição de poder no esquema criminoso. Mas não controlam território ali, e sim na periferia da cidade.
Nas violentas disputas territoriais, então, “sobra” para as periferias. “Quando se fazem acertos de contas, disputas, quando se planeja chacinas, os territórios das periferias são os alvos. Essa mortandade afeta a população como um todo, e isso aparece nos dados de longevidade das cidades”, frisa.
“Isso não explica o dado como um todo, mas é um aspecto.”
Élcio observa que “nos bairros de maior vulnerabilidade, o índice de homicídios maior de pessoas mais jovens puxa a expectativa de vida pra baixo”. O gestor elenca, porém, o direito à saúde como um dos maiores desafios para equiparar as condições de vida da população nas distintas regiões de Fortaleza.
“Fortalecer a atenção primária é o principal, de forma integrada com o esporte e o lazer. Trabalhar o acesso à saúde com consultas e exames e não trabalhar a atividade física, o lazer das pessoas, para enfrentar os problemas de saúde mental; não se consegue enfrentar o problema”, analisa Élcio, que também é cientista social.
‘Armadilha’ da pobreza
Realidade cortante em Fortaleza, a pobreza que passa entre gerações contribui diretamente para abreviar o tempo de vida nas periferias. Alesandra, do LEP/UFC, define o cenário como “armadilha da pobreza”.
“É isso: os avós eram pobres, não conseguiram estudar, sempre trabalharam; a mãe criou sozinha, é pobre como os avós; a pessoa foi criada no mesmo contexto, e essa é a armadilha. Acontece quando não há investimentos suficientes para romper esse círculo vicioso”, lamenta.
Em Fortaleza, temos problemas na periferia que são contínuos: inundações, problemas de segurança, de saneamento. Tudo isso influencia pra que você ache aquilo normal e continue reproduzindo o que eram seus avós e seus pais.
Embora a desigualdade social englobe aspectos como renda, saúde, acesso a serviços públicos, à Justiça e à educação, é neste último onde reside o maior potencial de rompimento do ciclo da pobreza, como frisa a pesquisadora.
“Educação é um começo pra que você saia dessa armadilha da pobreza, porque interfere na renda. Às vezes, quando você consegue mudar de casa, de bairro, você consegue romper. Às vezes você está num bairro perigoso e não quer criar seus filhos lá”, ilustra.
Como reduzir os ‘abismos’
Sobre a questão, Alesandra é categórica: “se a prefeitura fizer os serviços que devem ser feitos, já vai reduzir bastante esse abismo. Não é só fazer aterro na praia. É importante chamar turista, deixar a orla bonitinha. Mas isso não diminui a desigualdade social”.
A pesquisadora alerta que as gestões públicas precisam atentar a políticas de “saneamento, educação, infraestrutura e serviços públicos, como a coleta do lixo”, como medida básica e inicial de combate à pobreza e às desigualdades em Fortaleza.
De pronto, o que as políticas públicas devem focar é na coleta de lixo e esgoto, boa iluminação pública, uma excelente educação, com professores preparados na rede pública e uma infraestrutura escolar preparada para receber os alunos. E também uma excelente rede primária de atenção à saúde.
Élcio Batista reforça que a gestão precisa “desenhar política pública de forma integrada, baseada em dados e buscando ter o maior impacto possível”. Além disso, ele avalia que, “para reduzir as desigualdades, é preciso conhecer esses problemas em profundidade”.
“Temos de desenhar políticas públicas baseadas nesse conhecimento da realidade. É por isso que o Iplanfor é o principal instrumento de capacidade institucional para enfrentar a redução das desigualdades na cidade”, define, informando que a Prefeitura de Fortaleza busca parcerias para “estudar os problemas da capital”.
Elisangela Teixeira, diretora do Desigual Lab, declara que a plataforma é composta pelas mãos de profissionais ligados à tecnologia, economia e outras diversas áreas. A cientista e professora universitária complementa, contudo, que o conjunto de mapas que reúne os dados é “descritivo” e não tem a função de “apontar as causas, mas fomentar a pesquisa nas áreas, buscar evidências pra encontrar os reais motivos de tudo isso”.