Há 100 anos, Bode Ioiô era eleito vereador de Fortaleza em protesto político; entenda a história

Parte importante do folclore da Capital, o caprino se tornou símbolo da audácia e do humor do povo cearense.

Um animal fez história em Fortaleza, há 100 anos. Em 1922, o bode chamado de Ioiô foi eleito vereador da Capital cearense, numa época em que o voto era espontâneo numa folha de papel, como protesto da população alencarina.

Ioiô tinha trânsito livre na cidade, mas geralmente fazia um percurso da Praia de Iracema ao Centro - daí seu nome, remetendo ao movimento do brinquedo. Frequentava diversos estabelecimentos comerciais, mas especialmente os cafés, onde era bem recepcionado.

Após sua morte, ele se tornou peça de museu, primeiramente rejeitado por uma elite intelectual que o julgava indigno de atenção por representar algo tosco e sujo. Porém, com o passar dos anos, o bode se tornou símbolo de rebeldia e irreverência presentes na cultura do “Ceará Moleque”.

Para Cleyton Monte, cientista político, professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos de Política, Eleições e Mídia (Lepem) da UFC, historicamente, o voto de protesto como o dado em Ioiô pode ser observado tanto em candidatos bizarros ou engraçados como em lideranças não diretamente ligadas às grandes máquinas políticas.

"A eleição em Fortaleza sempre é imprevisível. Fortaleza é vanguarda e elegeu, na década de 1980, a Maria Luíza Fontenele num momento em que não havia previsão, porque ela aparecia como figura popular e anti-máquina do Estado. Na década de 1990, foi o Juraci", exemplifica.

O pesquisador percebe que o eleitor fortalezense tem um "toque crítico" e pode se inclinar a candidatos diferentes, e não apenas votar branco ou nulo - modalidades que tendem a se manter na mesma margem e não costumam apresentar crescimento expressivo entre os pleitos.

Origens do bode

Hoje, o principal memorialista do bode é o turismólogo Gerson Linhares, idealizador do projeto Fortaleza a Pé e do futuro Museu do Bode. “O bode é um mascote que pode divulgar muito bem a cidade”, entende.

Segundo Gerson Linhares, Ioiô viveu 16 anos. Em 1915, ano da seca severa no Estado narrada por Rachel de Queiroz em “O Quinze”, o animal chegou a Fortaleza junto com retirantes do interior do Ceará, possivelmente do Sertão Central.

Com as dificuldades financeiras dos primeiros donos, ele foi vendido para José de Magalhães Porto, correspondente no nordeste da empresa britânica de exportação de couros e peles Rossbach Brazil Company, que funcionava na Praia de Iracema.

Na empresa, virou um mascote. Para boêmios e frequentadores do Centro, se tornaria uma celebridade nos anos seguintes, provavelmente por sua independência e simpatia mostradas durante os passeios que iniciou ao acompanhar Magalhães à Praça do Ferreira.

“Ele gostava de perambular entre os cidadãos. Onde via movimento e furdunço, ele queria entrar. Dizem que até no bonde ele pegava carona”, conta Gerson, embora considere esse último caso improvável porque, sendo Ioiô um “pai de chiqueiro” (dominante num rebanho), não devia cheirar bem. 

A preferência pelo Centro, conforme o turismólogo, seria pela facilidade em encontrar comida. Entre as anedotas contadas sobre o bode ao longo do tempo, consta a de que ele batia a cabeça e os chifres nos balcões de padarias na esperança de conseguir algum mimo. 

Voto-protesto

O tempo de vida do bode coincidiu com um período de mudanças em Fortaleza, quando a cidade começava a ganhar personalidade própria e a deixar de copiar costumes da Europa, fenômeno comum da Belle Époque alencarina. 

Além disso, os temas da corrupção e do abandono das classes mais pobres já corriam entre a população. Por isso, um grupo de frequentadores da Praça do Ferreira, capitaneado pelo advogado e poeta Quintino Cunha, promoveu uma campanha para alçar Ioiô ao legislativo municipal em 1922. 

No dia do pleito, as cédulas de papel com o nome do bode, à época “Yoyô”, foram suficientes não só para elegê-lo, mas para torná-lo um dos representantes mais citados. Mesmo com votação expressiva, Ioiô, obviamente, nunca foi empossado no cargo.

O “fim” do bode

Sem ser incomodado nem mesmo pelos fiscais municipais, Ioiô viveu até 1931, quando foi achado morto nas imediações da Praça do Ferreira - Gerson acredita que pela idade avançada. Foi uma comoção: o bode recebeu até homenagens em jornais locais. 

O dono do animal bancou seu empalhamento e, em julho de 1935, o doou ao recém-criado Museu Histórico do Ceará, hoje Museu do Ceará, criado em 1932.

Em 1996, num episódio curioso, o bode teve seu rabo roubado. Depois do incidente, passou por uma restauração e recebeu pelagem e rabo novos.

Ioiô nunca saiu de exposição e costuma ser a peça mais procurada do equipamento. Neste ano, uma mostra itinerante foi realizada entre março e maio em alusão ao centenário da eleição.

Famoso no Ceará, ele também ficou conhecido nacionalmente em 2019, ao ser tema do enredo da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti. Além disso, protagonizou documentários, histórias de cordel e livros infantis.

Museu do Bode

Ao que tudo indica, a figura marcante da Capital é inesgotável: Ioiô deve ganhar um Museu em sua homenagem nos próximos meses, de acordo com Gerson Linhares, depois de sete anos de discussões e negociações.

Cordéis e fotografias devem compor as principais peças do acervo. A ideia é que o equipamento seja dividido em três alas:

  • Ala Sertão: deve contar como os caprinos, originários da Europa, se adaptaram ao Nordeste e sua importância para a economia da região; 
  • Ala Fortaleza: vai contextualizar como era a Capital na época em que Ioiô viveu, descrevendo principalmente as edificações do período; 
  • Ala Rio de janeiro: detalha a homenagem que o bode recebeu no Carnaval carioca.

“Mas não é só o Museu. Queremos gerar empreendedorismo para artesãos, cordelistas, fotógrafos, artistas plásticos, além de viabilizar eventos. Vai ser um museu mutifacetado”, projeta Linhares.

O turismólogo também deseja uma parceria com escolas públicas para levar palestras e álbuns de figurinhas históricas a crianças e adolescentes, inclusive com a participação do mascote fantasiado de Ioiô, na perspectiva de um trabalho de educação patrimonial.