Na cidade de Tianguá, região serrana do Ceará, distante 320 km de Fortaleza, a família de Ana Karen, adolescente de 12 anos, aluna de escola particular, todas as segundas-feiras desce a serra rumo à Capital. O movimento é para garantir acompanhamento profissional à adolescente que desde criança apresenta características de superdotação. Os atendimentos devem resultar em um laudo, nos próximos meses, que poderá constatar as altas habilidades.
A identificação é o primeiro passo. Mas, apesar de necessária para que escolas e pais saibam como acolher e agir de forma adequada na inclusão desses estudantes, ainda é um dos gargalos para pessoas superdotadas moradoras das capitais, e mais ainda em municípios distantes dos grandes centros urbanos.
No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei Federal 9.304/1996 estabelece que o poder público deve instituir um cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdotação matriculados na educação básica (ensino infantil, fundamental e médio) e na educação superior. Mas, na prática, esse cadastro nunca foi criado.
Questionado sobre essa lacuna, o Ministério da Educação diz que o acompanhamento dos estudantes com altas habilidades ou superdotação é realizado via as informações fornecidas pelo Censo Escolar, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
No Censo, as próprias escolas, sejam públicas ou privadas, repassam ao Governo Federal os dados sobre as matrículas.
No mais recente disponível, de 2021, os registros indicam que no Brasil há 23.506 estudantes com altas habilidades e superdotação matriculados nas escolas públicas e privadas. Destes, 287 são do Ceará, espalhados em 65, das 184 cidades cearenses.
Fortaleza concentra 96 alunos com superdotação e altas habilidades do total de matriculados no Ceará, conforme o Censo. Caucaia aparece em seguida com 29 matrículas; Morada Nova com 15 e Juazeiro do Norte com 14.
Mas, profissionais e famílias destacam que, dada as dificuldades de identificação, os custos do processo - gasto com atendimentos particulares com psicólogos e psicopedagogos - e as limitações de orientação e informação, esse número é bem menor que a realidade.
Nesta matéria, que integra uma série, o Diário do Nordeste mostra a experiência de uma família do interior do Ceará na busca por diagnóstico em Fortaleza e também como as redes públicas procedem no trabalho com estudantes superdotados e com altas habilidades no Estado.
Demandas por identificação
No registro do Censo, nenhuma das matrículas é de estudantes de Tianguá. A família Ana Karen está no processo para tentar avaliar a condição da adolescente que desde criança demonstra altas habilidades na área linguística-verbal, manual e musical.
Os pais da adolescente, Alysson Renier Portela Muniz, servidor público federal, e Natercya França Moita Muniz, enfermeira, contam que Karen sempre gostou de ler e leu de forma precoce. Aos 6 anos, relatam, Karen começou a ler coleções de livros. “Ela gosta muito de ler. Geralmente, ela pede pra gente coleção de livros. Não ler só um livro não. Essa é uma das áreas”.
Outro aspecto ligado à inteligência intelectual é que Karen tem extrema facilidade na aprendizagem de outras línguas. Ela pratica o inglês, treina espanhol e já se arriscou também no japonês. Ana Karen, acrescentam os pais, tem uma dedicação profunda às atividades das quais gosta. Um envolvimento elevado e acima da média.
Para além das competências na área intelectual, a adolescente, desde a infância, descreve a mãe tem altas habilidades manuais. Um exemplo, é que a mãe de Ana Karen faz bolos, e a criança, aos 9 anos, através de uma vizinha, teve contato com massa de biscuit (massa de modelar utilizada em decoração de bolo e também produção de objetos como imãs de geladeira).
Ela ainda criança foi pesquisar e procurou como fazer a massa em vídeos na internet, então ela pediu à mãe que comprasse para ela fazer biscuit. “Ano passado ela fazia várias coisas de biscuit para vender. Hoje ela está fazendo anel para vender”, acrescenta a mãe.
A área musical também é uma das habilidades de Ana Karen. Quando era criança, se interessou por tocar piano. Os pais relatam que não tinham condições financeiras para comprar o instrumento e adquiriram um teclado.
“Quando ela tem interesse em determinado assunto, ela vai tão a fundo, com tanta facilidade, que isso é que deixa a gente além de orgulhoso, impressionado e percebendo que realmente é diferente”.
Embora a capacidade e habilidade da adolescente sejam identificadas pelos pais como acima da média em algumas áreas, os pais contam que “tardaram” a procurar um laudo oficial de uma possível superdotação, pois acreditavam no mito de que para ser considerado superdotado uma pessoa precisaria dominar todas as áreas do conhecimento.
Com o início da pandemia de Covid, em 2020, depois de serem orientados por uma parente que mora em Fortaleza sobre a possibilidade de superdotação de Ana Karen, os pais procuraram ajuda no Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Ceará (Creace) que integra a estrutura organizacional da Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc).
O Creaece funciona no bairro de Fátima, em Fortaleza, e atende ao público-alvo da educação especial (crianças com deficiência, com transtornos e com superdotação) e oferece atendimento educacional especializado, formação continuada para professores e produção de material didático-pedagógico para pessoas com deficiência visual.
Entre o primeiro contato e o atendimento no Creaece, contam os pais, foi mais de um ano de espera. Isso devido à pandemia de Covid que afetou os atendimentos. “Nós tivemos inclusive dificuldade para conseguir uma declaração na escola. A falta de informação é tão grande que eles não sabiam nem o que colocar”, diz o pai sobre a necessidade de repasse de informações da escola aos profissionais que atendem no Creaece.
Deslocamentos para atendimento
Todas as segundas-feiras, a família viaja e é atendida presencialmente na unidade. Ao todo são 10 sessões com o acompanhamento de psicóloga, professora da área de linguística e professora da área de música. Uma assistente social também já participou do processo. A projeção é que após as 10 sessões (já foram realizadas 7), o laudo sobre a condição de Ana Karen seja emitido.
“Ela (Ana Karen) acha o maior barato. Antes de ser chamada, a gente conversou com ela. Não falou nada sobre como é o processo em si. A gente perguntou se ela tinha interesse e ela disse que quer ir. Ela adora o atendimento e o desenvolvimento que ela nota, através de brincadeira e jogos, que esse mundo dela é interessante e ela pode adentrar ainda mais”.
A família também destaca que espera com a identificação poder orientar a escola como deve proceder no processo de formação da adolescente. “Morar no interior dificulta demais esse acesso às informações propriamente ditas porque a gente fica ilhado. Os colégios daqui da região, não só da cidade, não tem preparo algum para lidar com as crianças”, relata o pai.
Alunos na rede pública
Na rede pública estadual do Ceará, segundo a Seduc, dos 403 mil estudantes matriculados, 8,5 mil são da Educação Especial.
São identificados como superdotados e altas habilidades. Esses alunos estão matriculados em 35 escolas públicas.
Em nota, a Seduc ponderou que nas escolas estaduais “é preciso compreender que adolescente com altas habilidades não é necessariamente o aluno que apresenta alto desempenho acadêmico. Por isso, há necessidade de se realizar uma investigação minuciosa, que envolve a família, a escola e os diversos contextos em que o estudante está inserido”.
Quando há evidências ou suspeitas que adolescentes da rede estadual podem ser superdotados, conforme a pasta, o estudante é submetido a uma avaliação por uma equipe multidisciplinar, preferencialmente envolvendo psicólogos, psicopedagogos, os pais, a escola e demais profissionais da saúde ou da educação envolvidos com esse estudante.
No caso são adotados procedimentos de avaliação, tais como:
- Testes psicométricos para a aferição do QI;
- Inventários de características;
- Observação do comportamento;
- Entrevistas com a família e os professores,
- Testes informais para estabelecimento de vínculo entre avaliador e avaliado
Na matrícula desses alunos na rede estadual, explica a Seduc, é importante “apresentar relatórios de acompanhamento e avaliações realizadas por multiprofissionais”. Caso os pais ou responsáveis não tenham o relatório, o processo poderá ser iniciado pelo próprio profissional lotado no equipamento que oferta o serviço como os Núcleos de Apoio Pedagógico Especializado e ou Creaece.
Na rede pública municipal de Fortaleza são 240 mil estudantes matriculados, sendo 10 mil na Educação Especial, dos quais 3 são identificados com altas habilidades/superdotação. Nas escolas municipais, diz a SME, quando há suspeita de superdotação, são tomadas as seguintes medidas:
- O professor da sala de aula comum elabora um encaminhamento, contendo as informações referentes às observações sobre o estudante, e direciona para avaliação do professor da Sala de Recursos Multifuncionais (SRM);
- O professor da SRM observa as especificidades do estudante em sua rotina, e realiza uma avaliação pedagógica individual;
- Se for constatado que o estudante tem hipótese diagnóstica de superdotação, a escola agenda uma reunião com a família para tratar das necessidades educacionais do estudante;
- O professor da SRM faz a avaliação diagnóstica e o estudo de caso, para subsidiar a elaboração do Plano de Atendimento Educacional Especializado (AEE) do estudante;
- O estudante passa a ser acompanhado pelo professor do AEE, profissional responsável em auxiliar no processo de enriquecimento curricular e orientar aos demais professores e as famílias sobre as possibilidades, necessidades e recursos pedagógicos utilizados pelo estudante;
- O AEE faz o encaminhamento do estudante para atendimento por equipe multidisciplinar para confirmar ou não a hipótese diagnóstica.
Questionado sobre o acompanhamento das demandas de alunos com superdotação, o Ministério Público Estadual do Ceará destacou que monitora a garantia do direito dessa população e apontou três pontos de atenção na educação especial, que além dos estudantes superdotados, engloba os com deficiência e transtornos.
Um deles a matrícula que muitas vezes é negada, diz o MPCE “em virtude da deficiência do aluno. Mas o direito à educação é para todos, indistintamente”. Outra demanda recorrente é a oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE). E por último, o laudo médico no âmbito escolar. O documento, diz o MPCE, “não deve ser condicionante para a realização da matrícula”.
O documento, explica a instituição, “pode ser solicitado pela escola para colaborar com o acompanhamento escolar e direcionamento de atividades, entretanto, não pode ser fator de impedimento do acesso à educação''.
Serviço
Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Ceará (Creaece)
Endereço: Rua Graciliano Ramos, 52, Bairro de Fátima, Fortaleza
Fones: (85) 3101.2167 (Coordenação Geral)
(85) 3101.7011 (Coordenação do Atendimento Especializado)
(85) 3101.7826 (Secretaria)