Vencedoras do Prêmio Oceanos de Literatura 2019 contam os processos criativos das premiadas obras
Djaimilia Pereira de Almeida, Dulce Maria Cardoso e Nara Vidal foram anunciadas como as mais recentes vencedoras do concurso no último dia 5 de dezembro, no Itaú Cultural (SP)
O resultado do Prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa deste ano ficou marcado pelo ineditismo na própria história da honraria. Pela primeira vez, somente mulheres ocuparam o pódio deste que é um dos reconhecimentos literários mais importantes entre os países cujo idioma é o português.
O nome das vencedoras foi divulgado na última quinta-feira (5), no Itaú Cultural (SP). A instituição atua diretamente na realização do prêmio que, nesta edição, chegou com novidades. O valor total da premiação aumentou e ele passou a contemplar três livros, ao invés de quatro, batendo ainda número recorde de concorrentes.
Foram 1.147 livros de 10 países diferentes, publicados por 314 editoras. O júri inicial, com 72 membros de 5 países, elegeu os 53 livros semifinalistas; o segundo júri, com 9 profissionais de 3 países, selecionou os dez finalistas, até chegar ao nome das escritoras premiadas.
Em entrevista ao Verso, Djaimilia Pereira de Almeida, com o primeiro lugar no concurso; Dulce Maria Cardoso, com o segundo; e Nara Vidal, ocupando o terceiro, dimensionam os processos criativos que culminaram no enredo e projeção das obras agraciadas.
Tonalidades
Nascida em Angola e crescida em Portugal, Djaimilia Pereira de Almeida venceu com "Luanda, Lisboa, Território". O livro, publicado pela Companhia das Letras, foi descrito pelo júri como um "romance que narra o trajeto de pai e filho de Luanda para Lisboa - tendo como destino final, em Lisboa, o 'bairro de lata' de Paraíso. Nele, Djaimilia compõe um relato sensível sobre as ilusões e desilusões do mundo pós-colonial".
Segundo a autora, a narrativa foi desenvolvida ao longo de quase quatro anos e teve origem numa coleção de objetos comprados em feiras de antiguidades que ela costuma frequentar.
"O livro resulta da forma como, em conjugação com outros elementos (canções, memórias, imagens), aqueles objetos começaram a tomar um sentido", explica.
Afirmando nunca pensar nas obras que escreve como forma de tratar temas específicos - Djaimilia também é autora de "Esse cabelo", "Ajudar a cair", "Pintado com o Pé", entre outros títulos - a romancista interessa-se, antes, em trabalhar sobre certos ambientes e tonalidades.
De acordo com ela, "os temas surgem retrospectivamente, no momento em que nos damos conta de padrões, texturas e recorrências de uns livros para outros e no interior do mesmo livro".
Quanto à maneira como encarou o fato de dividir a honraria com outras duas mulheres no Oceanos, a escritora é enfática: "Foi uma honra muito grande e uma alegria redobrada", festeja, ao mesmo tempo que adianta os projetos futuros. Embora breve, a resposta é contundente: "Nos próximos tempos, vou descansar um pouco. Tive um ano cheio, em que escrevi muito, e acabo de publicar um livro novo em Portugal, 'A Visão das Plantas'".
Imagens
Por sua vez, a portuguesa Dulce Maria Cardoso, ao falar do processo de escrita do romance "Eliete", da editora Tinta da China, sublinha o fato de que tudo nela sempre começa com uma imagem, que lhe persegue e move a ir atrás para tentar decifrar.
"No caso deste livro, foi a imagem de uma mulher nua, enrolada num lençol, a correr de madrugada num lugar que parecia ser uma zona ao pé do mar", detalha. "Depois, fui atrás para tentar saber quem era essa mulher".
A escritora conta que suas personagens costumam ser construídas lentamente porque começa a desenvolver com elas uma relação, como se fossem pessoas reais a habitar por ali perto.
Com Eliete, a protagonista da obra homônima, não foi diferente. "A imagem que construí dela, inclusive, deve aparecer no terceiro volume do livro", adianta, revelando ainda ser este um projeto antigo, de longa data, mas que se tornou oportuno chegar aos olhos do mundo neste momento em que o globo atravessa difíceis realidades.
"De alguma maneira, faz até mais sentido que eu apareça agora em público por causa do ressurgir dos regimes ditatoriais, da extrema direita e deste tempo horrível em que, o que julgávamos garantido, não está". Não sem motivo, o estadista nacionalista português Salazar, neste primeiro volume, emoldura a narrativa, devendo ganhar maior projeção no segundo momento da obra.
"Eliete", no fim das contas, é sobre isso e vai além. Na avaliação do júri do Prêmio Oceanos, "exílio existencial e solidão de uma mulher de classe média estão impressos neste romance acerca do tédio da sociedade contemporânea, do vazio da vida urbana e das redes sociais".
Densidade
Foi a partir de um trabalho numa casa de repouso que Nara Vidal, única brasileira a figurar no pódio, começou a escrever a trama de "Sorte", seu romance de estreia.
"Lá, conheci uma senhora que tinha sido levada para aqueles conventos na Irlanda por ser mãe solteira, e o filho dela foi dado para uma família. Ela nunca conheceu a criança. Eu já sabia dessa prática da igreja católica durante determinado período, mas ouvir dela foi muito impactante. Cheguei em casa e comecei a esboçar o que seria o livro".
No total, foram seis anos ruminando o romance, publicado pela Editora Moinhos e encarado por Nara, radicada em Londres, como enxuto, mas contendo extensa pesquisa. "'Sorte' foi um desafio de tentar me aprofundar nas histórias de terror de duas mulheres. A escolha da narrativa curta é uma característica da falta de vez e voz delas".
Nesse movimento, ainda destaca: "A questão do machismo presente no livro é comum a todas nós. Há ainda um desejo da sociedade em nos diminuir e isso compartilho com as mulheres do livro. Mas o destino delas é muito próprio. Criei personagens trágicas que não são representativas da minha vida".
Nara também, ao publicar por uma editora brasileira independente, traz à tona uma distinta satisfação: "Como a única brasileira, sinto um orgulho enorme em representar essas casas editoriais pequenas e importantes como a Moinhos. Uma alegria descabida ver a Moinhos lá. Significa muito".
Para Selma Caetano - idealizadora e curadora do Oceanos - é essa diversidade que enriquece a distinção literária. "A literatura em língua portuguesa é diversa e forte para se equiparar aos patamares de difusão das literaturas em língua inglesa, francesa e espanhola. No entanto, falta-nos políticas públicas para que ocupemos o lugar que nossa literatura merece".
A gestora também adianta que, no próximo ano, o Oceanos tentará, sobretudo, encontrar caminhos para consolidar cada vez mais a participação dos países do continente africano no prêmio, onde, segundo suas palavras, "se produz literatura de qualidade extraordinária".
"Para nós, é muito importante, antes, dar a conhecer essas obras e autores dentro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e, depois, reconhecer enquanto prêmio de literatura o trabalho desenvolvido nesses países".
>> SAIBA MAIS
Criado em 2003 como Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, para prestigiar a literatura do Brasil, a partir de 2007 o Oceanos passou a estar aberto à literatura em língua portuguesa publicada no Brasil. Depois de 14 edições contemplando obras editadas no Brasil, recebeu definitivamente a denominação de Oceanos e abriu as suas inscrições para livros escritos em língua portuguesa publicados em qualquer lugar do mundo, tornando-se um prêmio transnacional na estrutura e na dinâmica de avaliação, com júris compostos por especialistas de países do continente africano, Brasil e Portugal. Compuseram o júri final do prêmio deste ano dois portugueses – o poeta Daniel Jonas e o crítico literário Manuel Frias Martins – e três brasileiras: as escritoras Maria Esther Maciel e Veronica Stigger, e a crítica literária Eliane Robert Moraes. Além disso, nesta edição o valor total da premiação foi aumentado de R$ 230 mil, em 2018, para R$ 250 mil.
*O jornalista viajou a São Paulo a convite do Itaú Cultural