Veja como a pandemia foi retratada pela literatura de cordel desde março de 2020
Obras sobre o coronavírus fortalecem a ideia de cordelistas como cronistas do seu tempo
Daqui a alguns anos, quando a pandemia de Covid-19 for motivo de curiosidade e pesquisa histórica pela geração que não a viveu, uma das ferramentas de busca certamente será a literatura de cordel.
Com folhetos sobre a temática editados desde março de 2020, as editoras cearenses Tupynanquim, de Klévisson Viana, e Rouxinol do Rinaré, do cordelista homônimo, ajudam a traçar um panorama da importância dessa produção frente ao mais grave contexto sanitário do século.
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“O poeta popular escreve muito sobre as questões do cotidiano, e isso tem sido algo recorrente na história desse gênero literário, que além de muitas outras funções educativas e de entretenimento, ficou também conhecido como ‘jornal do sertão’. Pra você ter uma ideia, quando o homem foi à Lua, muitas das pessoas só acreditaram na história depois que o fato foi estampado em folhetos de cordel”, introduz Klévisson.
Em tempos de desinformação e fake news, então, fortalecer o diálogo com o público se torna cada vez mais necessário, e é exatamente a isso que os poetas se propõem.
O cordelista também é um cronista de seu tempo. O cordel, assim, ‘faz história’, registrando fatos; contribui com a educação e a formação de leitores, pois sua leitura é lúdica, prazerosa!”.
Publicações
Pela Tupynanquim, entre os títulos com este foco temático, destacam-se o “Cordel do Coronavírus”, do poeta de Granja-CE, Tião Simpatia; um editorial publicado no Almanaque da editora, em dezembro passado; e ainda, de autoria do próprio Klévisson, o cordel “A Covid tem ceifado a vida de muita gente”. Neste último, diz um dos trechos, entre a crítica e a esperança:
A Covid ceifando muitas vidas
E o perverso zombando da doença
Quando a morte espalha sua sentença
São milhares de histórias destruídas
As famílias enlutadas e perdidas
Sem saber se retornam ou vão em frente
É preciso mais amor por nossa gente
Esse povo sofrido e humilhado
O futuro que tenho projetado
Será muito melhor que meu presente.
O texto na íntegra pode ser conferido no novo livro do poeta, “Meu baú de cordéis”. A obra, de 240 páginas, estará pronta até o final de junho. Vale lembrar que a Tupynanquim costuma trabalhar com grandes tiragens, a partir de mil exemplares, logo, os títulos mencionados ainda estão disponíveis para aquisição.
Rouxinol do Rinaré, por sua vez, oferece a possibilidade de tiragens menores, a partir de 100, por exemplo, ainda que ultimamente os autores tenham solicitado de 500 a 3.000 unidades.
Entre os primeiros cordéis que ele editou sobre a temática da pandemia estão “A conspiração chinesa numa visão trumpeana”, do poeta Chico Fábio, e “O dia em que a Terra mudou”, coautoria de Evaristo Geraldo com Stélio Torquato.
Depois, ainda editou e imprimiu outros quatro escritos pelo jornalista Assis Ângelo, paraibano radicado em São Paulo, a saber: “A serpente quer pôr ovo no coração do Brasil”, “Repórter entrevista piolho do cramunhão”, “Jornalismo e liberdade nos tempos de pandemia” e “Coruna vírus: piolho do cramunhão faz o mundo todo tremer”.
“Pelos títulos já se percebe abordagens sobre diferentes perspectivas: O trabalho do Stélio e Evaristo alerta sobre os perigos do vírus, já os cordéis do Assis tem uma abordagem mais crítica às autoridades”, analisa Rouxinol.
Denúncia e reflexão
Assis Ângelo reconhece que assumiu para si a missão de provocar os poetas a inserir a questão política com mais frequência nos versos. “Meus quatro folhetos tem dois personagens básicos: o coronavírus e um tal de Bolsonaro. A cultura popular introduzindo-se na política, e vice-versa, é uma coisa séria”, defende.
Em “Serpente Quer Por Ovo No Brasil”, por exemplo, ele diz:
A Covid-19
No mundo é pandemia
No Brasil é quase nada
É somente gritaria
Segundo Bolsonaro
É conversa, fantasia
Os mortos se multiplicam
No colo do Capitão
Que o tempo todo só fez
Engendrar complicação
Deixando o povo tonto
Sem luz, na escuridão
Para Stélio Torquato, recorrer à poesia com o colega Evaristo foi uma forma de tentar entender melhor o que vivíamos, mas também de proporcionar reflexão aos leitores.
“Procuramos imaginar como esse novo quadro iria afetar a todos nós, tornando-nos mais fraternos, como afirmamos no trecho final do cordel”:
Parece que a natureza
Disse: “Chega de agressões!”
Então, criou esse vírus
Para assolar as nações
E impor um sentido novo,
Com todo país e povo
Humanizando as ações.
Ainda segundo o professor e cordelista, apesar de todas as dificuldades que o isolamento social tem trazido, incluindo o cancelamento das Bienais e Feiras do Livro, esse trabalho tem gerado bons resultados.
“Tanto é assim que restam poucos exemplares da tiragem inicial. Para isso, as redes sociais têm sido muito úteis na divulgação deste e de outros trabalhos que temos feito nesses dias tão difíceis e pesarosos”, relata.
A visão é compartilhada pelos editores Klévisson Viana e Rouxinol do Rinaré, que citam ainda alguns cordéis-homenagem encomendados com frequência nesse período.
O professor Gilmar de Carvalho é um dos contemplados por essa literatura que tanto defendeu e estudou. “Já estou editando dois cordéis sobre o saudoso escritor e pesquisador, que partiu recente vítima da Covid-19”, afirma Rouxinol.
Aliás, foi Gilmar, em março de 2020, quem incentivou poetas cearenses a se organizarem e fazerem um cordel coletivo e digital sobre a pandemia.
A obra contou com a participação dos poetas Eduardo Macedo, Klévisson Viana, Rouxinol do Rinaré, Julie Oliveira, Paola Tôrres, Evaristo Geraldo, Vânia Freitas, Gerardo Pardal, Fernando Paixão, Paulo de Tarso, Pedro Paulo Paulino, Arievaldo Vianna (in memoriam), Paiva Neves e Luís Távora.
Aos leitores e espectadores do futuro, eles garantem com seus versos, não faltará informação.
Serviço
Tupynanquim Editora: tupynanquimcordelbrasil@gmail.com
Rouxinol do Rinaré: rouxinoldorinare@gmail.com
Assis Ângelo: eduribeiro@jornalistasecia.com.br
Stélio Torquato: WhatsApps 85-987702056