Primeira publicação dramatúrgica de Mailson Furtado, "Tantos Nós" exalta juventude, arte e sertão
Agora em livro, texto de espetáculo homônimo – produção coletiva liderada pelo cearense vencedor do Jabuti para a Cia teatral Criando Arte, de Varjota (CE) – vale-se de relatos autobiográficos para promover reflexões
Ainda é bastante comum associarmos sucesso e estabilidade à vida nas grandes metrópoles. Compreensível. Ao reunir multiplicidade de serviços e oportunidades, esses lugares emergem como uma espécie de “salvação” para aqueles que buscam alçar maiores voos. Grosso modo, parecem ser a única forma possível de realizar sonhos e presentificar a existência no mundo.
O que dizer, então, das pequenas cidades, distritos e comunidades? Será que ali também não há inúmeras possibilidades de vivências e criações? Há pouco mais de três anos, quando iniciou a circulação por diferentes partes do Ceará e do Nordeste com o espetáculo “Tantos Nós”, a Cia teatral Criando Arte, oriunda do município de Varjota, interior cearense, quis atestar a potência de acreditar na vida e no fazer artístico, ainda que tão distante de Fortaleza (mais de 260 quilômetros) e outras capitais.
Nesse sentido, a montagem – concebida entre outubro e novembro de 2016 e estreando nos palcos em abril do ano seguinte – apresenta a vida de quatro jovens e suas experiências na abreviada localidade em que fazem morada. São relatos fortes e com estreita sintonia com os percursos pessoais dos atores, visto que o texto foi alicerçado em momentos experienciados por cada um, valendo-se de suas próprias perspectivas.
“Trata-se de uma produção conjunta, digamos assim, que começou a ser composta a partir de experiências mesmo autobiográficas encontradas ao longo de uma década de carreira do grupo, completada em 2016. O espetáculo, portanto, ganhou esse corpo, essa forma de dizer o nosso lugar a partir de nossas próprias vivências”, explica Mailson Furtado, autor vencedor do Prêmio Jabuti em 2018 com o livro-poema “à cidade”.
É ele que, agora, traz a público, o texto de “Tantos Nós” em formato de livro, homônimo à peça. Publicada de maneira independente e disponível em formato eletrônico no site da Amazon, a obra é a primeira de caráter dramatúrgico do poeta. Chega aos olhos dos leitores exatamente neste momento porque, segundo o escritor, há nas linhas uma forma discursiva no sentido político de ser.
“Uma juventude que vê, no seu lugar, nessa pequena cidade do interior, uma possibilidade de acreditar na vida a partir da arte. Isso, para mim, tem um peso de discurso muito grande e acho que esse seria um momento bastante oportuno”, sublinha.
Dizeres
Mailson considera que “Tantos Nós” veio abrir uma porta para a Cia Criando Arte, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento de um debate mais aprofundado sobre algo que eles mesmos queriam dizer. O grande cerne do trabalho é ser um fichamento à juventude, à arte e ao sertão, mostrando a possibilidade de mundo ali, naquele lugar por muito tempo negado.
“Ainda hoje, grande parte da juventude considera que os espaços interioranos não servem para as pessoas se tornarem adultas, o que faz com que muitos deles vão para fora buscar oportunidades. Esse espetáculo vem dizer um tanto disso, que é possível, sim, acreditar na existência nessa pequena localidade”.
No que toca ao sertão, o poeta e dramaturgo deseja apresentar, com o texto, as nuances desse território geográfico e cultural no século XXI, visto que ainda é tão pouco dito. A bem da verdade, geralmente continua sendo encarado como um ambiente avesso a evoluções.
No texto de Mailson, não: nada da imagem de fome, seca e galhos retorcidos que insistem em ocupar o senso comum. A atmosfera sertaneja fruto do lapidar verbal do autor valoriza as inquietações de quem, naquele rincão de mundo, deseja amar, romper barreiras, ir além.
Ajudam a consolidar essa imagem as fotografias que integram a obra. Extraídas das diferentes apresentações do espetáculo Ceará afora, exibem fragmentos de como as performances e cenários dialogam com a plateia. Ao centro, por exemplo, há uma mesa em alusão a um bar, em que, volta e meia, os personagens se reúnem para trocar ideias sobre as próprias condições – de marasmo, novidade ou esperança – e necessidades.
Bebendo de influências de escolas/conceitos abordados por nomes como Artaud e Grotowski, pelo pensar singular do teatro do absurdo e por toda a tradição do teatro popular do Nordeste – numa confluência de estilos há muito experimentada pela Cia – a montagem distorce a ideia de tempo e espaço, investindo na metalinguagem e deixando ganhar corpo, em movimento de liberdade, os tantos nós de que sempre somos feitos e se fazem em nós.
Projetos
Após a pandemia de Covid-19, a intenção é fazer com que o espetáculo circule ainda mais, atravessando diferentes paisagens humanas e territoriais. E o livro irá junto, estendendo o raio de alcance do que foi apreciado pela plateia.
Segundo Mailson, a experiência de escrever sob a égide da dramaturgia é bastante diferente no que toca à criação de poemas, vertente com a qual ficou nacionalmente conhecido.
“O teatro em si – principalmente esse trabalho e outros que estão vindo, mais recentes – é pensado por muitas cabeças. Por meio de oficinas e laboratórios de criação, descobrimos muitas coisas juntos. É algo bastante coletivo, nesse primeiro momento de ideias, para a construção. Por sua vez, esse instante inicial na poesia, pelo menos para mim, é muito individual, solitário, às vezes”, situa.
O escritor também comenta que tem aproveitado esse período de pausa compulsória para estreitar o contato com a literatura, especialmente no que diz respeito à leitura e a possibilidades audiovisuais. Além de participar de encontros virtuais, igualmente está escrevendo muito pautado em experimentações, tentando encontrar coisas que ainda quer encontrar e ainda não sabe direito o que é.
Adianta que, em agosto, deve vir a público o poema-livro “Ele”, composição poética que entremeia versos com outras linguagens, a exemplo da crônica e da própria dramaturgia, para narrar o perfil biográfico de um cidadão “comum” que nem sabe dele, observando sempre o mundo a partir da terceira pessoa.
A obra, desde sábado (11), está disponível para pré-venda na Amazon Kindle, com leitura liberada para 3 de agosto. Para assinantes da Kindle Unlimited, o download é gratuito.
Após esse lançamento, no fim do ano, o projeto “Nômade” deve ganhar destaque, compilando poemas revisitados dos dois primeiros livros de poesia de Mailson: “Sortimentos” (2012) e “Versos Pingados” (2014). Ideias e projetos com ânsia de reverberar o bonito e importante do mundo: a vida.
Tantos Nós
Mailson Furtado
Independente
2020, 64 páginas
R$ 30