Por trás do Abaporu: quem foi Tarsila do Amaral, a pintora de vida sofrida e coração generoso

Nestes 101 anos da Semana de Arte Moderna, historiadora Mary Del Priore descortina aspectos íntimos de um dos nomes mais importantes das Artes Plásticas brasileiras

Escrito por Eulália Camurça e Diego Barbosa , verso@svm.com.br
Legenda: Autorretrato de Tarsila do Amaral, realizado em 1923: postura nobre, batom marcado e vermelhíssimo Jean Patou encobrem vida de pelejas

Muito além da postura nobre, do batom marcado e do vermelhíssimo Jean Patou, existe uma Tarsila do Amaral (1886-1973) sobrevivente no autorretrato de 1923. Não foi uma vida fácil. “Diria que a história dela é quase o oposto ao que pintou. Porque os quadros da Tarsila mais conhecidos, aqueles corriqueiros, são telas com cores muito ingênuas, frescas, alegres. A impressão que se tem é que estamos num reino encantado. E foi tudo ao contrário”.

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Quem fala é a historiadora Mary Del Priore, há anos envolta na sucessão de equívocos que foi a trajetória da pintora – protagonista de “Tarsila: Uma vida doce-amarga”, biografia publicada no ano passado pela editora José Olympio. O livro ilumina a jornada de um dos nomes mais importantes das Artes Plásticas brasileiras por meio de fatos ainda encobertos, frutos de uma vida íntima pouquíssimo conhecida, tragada pelo sofrimento e pela abnegação.

A criadora do “Abaporu” frustrou-se com quatro maridos, perdeu a filha para uma doença e a neta para um acidente. Foi abandonada por amores, acumulou poucos amigos e, desprezada pela crítica da época, terminou a carreira vendendo quadros sob encomenda. Ainda assim, conservava o sorriso generoso e a tez mansa. Voz doce e presença suave. 

“Ela é o exemplo vivo daquilo que chamo de anti-dolorismo. Em momento nenhum sente pena dela mesma. Sofre o pão que Asmodeus amassou, mas – escorada nos valores que hoje mudaram completamente, valores de época – sempre se levanta. Usa todas as características que se esperava de uma mulher daquele tempo para continuar sobrevivendo”.
Mary Del Priore
Historiadora e escritora

Mas por que tantos infortúnios? Vamos aos fatos. Nascida em Capivari, interior de São Paulo, Tarsila cresceu em uma família considerada um dos velhos e bons clãs da classe média alta paulista. Pouco se conhece, contudo, dos primeiros anos de menina. 

Sabe-se que teve seis irmãos na fazenda. E que o pai, embora não fosse milionário – era um agricultor mediano com uma pequena fazenda, mas constituído de tradição – perdeu tudo no crash da bolsa de Nova York, em 1929. Talvez, a partir daí, o caminho da pintora comece a se lançar no abismo.

Legenda: Tarsila nos anos 1920
Foto: Arquivo pessoal

Del Priore narra a vida de Tarsila, dona de uma personalidade complexa e intrigante, com riqueza de escrita confessional e apurada de uma historiadora dedicada a estudar o universo feminino. Tarsila experimentou a riqueza e a pobreza, a liberdade e a prisão. E os marcos da vida da artista revelam os contextos de um Brasil preconceituoso e machista. 

Intensa e em declínio

A separação do primeiro casamento aconteceu quando o Código Civil espelhava o patriarcado, como descreve Del Priore no livro: “Só dava três opções à mulher separada ou desquitada: voltar para a casa dos pais, onde seria criticada pelo fracasso do casamento; entrar para a prostituição, se fosse pobre e sem preparo profissional; unir-se ao homem que viesse a amar, sabendo que teria o repúdio da sociedade ‘por não ser casada’”.

A arte levou Tarsila a conhecer os artistas que ampliaram seus horizontes, a levaram para diferentes lugares do mundo e a experimentar diferentes maneiras de expressar a vida.  Uma vida intensa, mas em permanente declínio. “A pintura dela só é reconhecida a partir de 1963, ou seja, há décadas no mais absoluto limbo”. 

Quem imaginou que a mulher que abusou das cores e das formas, inspirou filmes e coleções de moda, cujos quadros valem milhões no mercado de arte, chegou a ser pintora de parede em construções no avançar da vida? “Até que ela toma um tombo, faz uma operação na coluna e fica entrevada. A Tarsila termina a vida em cima de uma cama, numa cadeira de rodas”.

Legenda: Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade: casamento complicado
Foto: Fundo Oswald de Andrade/Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio

Não à toa, essa importante personagem que recebeu insultos e sofreu intolerância foi, como revela Del Priore, “vítima de seu tempo”. Mesmo diante de tudo, cultivava a serenidade, “mantinha a capacidade de ficar de cabeça erguida”. Força vinda da fé religiosa

“Essa fé a constitui, que lhe dá identidade social – lembro que ela sempre estudou em colégio de freira, logo pinta muito crucifixo, santo, ou seja, toda a formação pictórica da Tarsila é muito acadêmica, com muita influência desse ambiente religioso. E ela termina a vida vivendo exatamente aquele modelo de mulher”. 

Mulher que se pintou gloriosa, que morreu vivendo o que acreditava e segue inspirando gerações. Inclusive a própria Mary, que estudou no mesmo colégio de Tarsila – o Nossa Senhora de Sion, tradicional instituição de ensino localizada no bairro de Higienópolis, região central de São Paulo – e se diz sintonizada com a artista em alguns aspectos.

Legenda: Sorriso generoso e tez mansa acompanharam Tarsila até o fim da vida
Foto: Reprodução fotográfica Correio da Manhã/Acervo Arquivo Nacional

Um dos principais é o fato de ter pertencido à geração de mulheres que, até os anos 1960 e 1970 – quando chega a nova onda feminista no Brasil – acreditavam que ser mulher era sinônimo de ser mulher de alguém. “Não dava pra ser mulher sozinha. Então, esses passos todos da Tarsila eu conheço muito bem, incluindo esse mundo de Artes Plásticas, uma vez que, quando fui morar em São Paulo, frequentei muitas galerias, museus, colecionadores”.

Sublinhando que a biografia foi toda construída por meio de informações encontradas em jornais – uma vez que os amigos próximos de Amaral já estavam mortos – Mary Del Priore retoma a meditação sobre o tempo para situar Tarsila na História.

“Tarsila definitivamente não é uma feminista, uma mulher à frente de seu tempo. Ao contrário: acho que o tempo da Tarsila mastiga até os ossos essa pobre mulher, e acaba cuspindo ela. Só depois que ela vai ser realmente, digamos, descoberta”.

Para ver Tarsila

Nestes 101 anos da Semana de Arte Moderna, completos nesta segunda-feira (13) – quando iniciava o evento que pautou inúmeras discussões e até hoje inspira projetos e trabalhos – cabe saber também onde estão os quadros de Tarsila, aprimorando as premissas apresentadas na biografia de Del Priore.

O “Abaporu” (1928), por exemplo, um dos quadros mais famosos da artista, não está em solo brasileiro, mas no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba). 

Legenda: O Grupo Mirante de Teatro Unifor frequentemente entra em cartaz com a peça de mesmo nome da pintora
Foto: Ares Soares

A tela “O Pescador” (1925), por sua vez, está exposta no Hermitage Museum, de São Petersburgo. O quadro aborda um tema excepcionalmente brasileiro: um pescador, sentado em uma pedra em um lago, em meio a uma pequena vila com casinhas e vegetação típica. 

“A Cuca” (1924) está exposta no Museu de Grenoble, na França, e é considerado um prenúncio do Movimento Antropofágico. O trabalho foi doado pela própria artista para o museu onde hoje se encontra.

Em Fortaleza, a Fundação Edson Queiroz expôs quadros de Tarsila em mostras como  “Arte Moderna na Coleção Fundação Edson Queiroz” (2019), e, por meio do Grupo Mirante de Teatro Unifor, frequentemente apresenta a peça homônima à pintora, com texto de Maria Adelaide Amaral e direção de Hertenha Glauce.

 

Tarsila: Uma vida doce-amarga
Mary Del Priori

José Olympio Editora
2022, 114 páginas
R$54

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