'Oração para desaparecer': novo livro de Socorro Acioli é carta de amor à Almofala, Ceará e Portugal
Escritora cearense lança romance neste domingo (10) na Livraria Leitura do shopping RioMar Fortaleza; no enredo, um mergulho na mitologia dos Tremembés e costura afiada entre dois continentes
Socorro Acioli é gente de prece. “Só não deu certo rezar pra desaparecer”, confessa, semblante tranquilo no fim de tarde de uma terça-feira. Ela surge entre os livros para uma conversa na própria casa, em vestido laranja e energia boa. Quer falar sobre o novo romance, cujo lançamento acontece neste domingo (10) na Livraria Leitura do shopping RioMar Fortaleza.
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“Oração para desaparecer” é obra posterior ao badalado “A Cabeça do Santo” (2014), ambos publicados pela Companhia das Letras. No mais recente projeto, a escritora conecta Ceará e Portugal por meio de Almofala, distrito do município de Itarema, distante 221 quilômetros da Capital. A região é famosa pela Igreja Nossa Senhora da Conceição, soterrada por quase cinco décadas pelas dunas e que depois ressurgiu.
Talvez nem nas mais intensas rezas Socorro imaginou que uma fotografia dessa curiosa estrutura um dia se tornaria livro com cada vez maior alcance entre o público. “Quando comecei a desenvolver o projeto, a única imagem que eu tinha era aquela foto histórica da Igreja com areia pela metade. Mas não sabia como, a partir dali, ia desenvolver um romance. Por mais que eu pesquisasse, não encontrava o fio que ia puxar para criar a ficção”.
Foi quando encontrou uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, mencionada em artigo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No texto, o poeta clama: “Eu peço aos sábios, aos poetas, aos pintores: prestem atenção na Igreja de Almofala”. Pareceu o passaporte perfeito para imergir nesse universo.
Drummond conta a versão dos Tremembés, na qual a Igreja foi construída como um pacto de paz não-cumprido. Para o povo, o fato de o templo ser coberto foi vingança dos Encantados. “Ele diz que, no dia que o Padre Antônio Tomás foi lá para tirar as imagens, uma prostituta da cidade, chamada Joana Camelo, jogou um tamanco na cabeça do sacerdote pra recuperar a imagem de Nossa Senhora – que, no entendimento dela, era dos Tremembés. Ali eu tinha a personagem. Então consegui pensar na história”, conta Acioli.
No romance, até chegar a Joana, os leitores precisarão atravessar outras paisagens. Conhecerão primeiro Cida, mulher sem identidade nem memória que tenta reconstruir uma nova vida em um lugar totalmente desconhecido. Ela conhece Jorge, que se apaixona pela excêntrica estrangeira e desbrava os segredos que a acompanham.
Joana, por sua vez, surge do outro lado do Atlântico como o fantasma de um amor há muitos anos perdido por Miguel. Contar mais da trama entre esses quatro personagens pode entregar o ouro de uma narrativa lida como uma longa carta de amor, embebida do caráter já impresso por Socorro em outros trabalhos: a dança sincronizada entre realidade e ficção e uma esmerada contribuição ao realismo mágico.
Pesquisar e escutar
A reunião de tantos mitos, fábulas, saberes e conexões só foi possível graças a bastante pesquisa e, sobretudo, escuta. Socorro recorda de diálogos com pescadores, artesãs, uma pajé e estudiosos feito Ronaldo Queiroz. O trabalho de mestrado do antropólogo versa sobre a religiosidade dos Tremembés e foi decorrente de inúmeras visitas a casas e cerimônias deles.
Acioli também perdeu as contas de quantas vezes foi à Almofala para investigar detalhes e checar informações. Nesses momentos, destaca, a veia jornalística – advinda da formação universitária – se sobressai. “Mesmo que você não assuma o Jornalismo como profissão, essa maneira de olhar para o mundo, de saber que toda realidade e todo fato terão mais de uma versão, fica em você”.
Foram sete anos nesse movimento até o livro ficar pronto. De início, o título seria “A Igreja Soterrada”. Mas Ronaldo explicou que os Tremembés possuem uma oração para desaparecer, inaugurando, ali, o novo nome da obra. A prece de fato existe, e é rezada quando eles estão em conflito. A oração que está no livro, contudo, não é a verdadeira.
“Fiquei com medo de divulgá-la porque depois as pessoas iam começar a desaparecer e eu ia ser culpada”, pontua. “Ao mesmo tempo, quando uma amiga, a jornalista e professora do curso de Música da Uece, Luciana Giffoni, me mandou uma foto de uma exposição em Portugal mostrando que havia outras Almofalas lá, eu já sabia que haveria uma Almofala aqui e outra do outro lado do mundo, ou melhor, outras sete”.
No fim das contas, o romance, diante de tantos temas, trata sobretudo de ressurreição – morrer em um lugar para ressurgir em outro. Para Socorro, o assunto compõe o imaginário brasileiro e ganha luz nos Ressurrectos, conceito criado por ela na obra para entremear as diferentes perspectivas a respeito da temática.
“A realidade me dá certos elementos que explicam a vida, o mundo, os fenômenos, mas as religiões dão outra explicação. Os mitos e a História também. É quando vou fundir tudo pra transformar esse caldeirão de informações em literatura”.
Por onde a história vai
Às voltas pelo apartamento com o gato, Miguilim – “é sério, gente, ele é um humano” – nada abala a crença de Socorro de que o trabalho do escritor é feito para os outros. Nem mesmo o amplo reconhecimento obtido na última edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), quando “Oração para desaparecer” e “A Cabeça do Santo” ficaram, respectivamente, em primeiro e terceiro lugar entre os mais vendidos.
Nem mesmo também os louros colhidos pelo novo romance em menos de um mês. “Oração” já foi vendido para o cinema, ganhará tradução em francês, foi o hit do clube de assinatura de livros Tag em outubro e a autora ainda protagonizou reportagem especial no programa Fantástico. É muito o que festejar, mas igualmente em cuidar para manter a essência.
“Coloco minha felicidade no prazer de escrever o livro, de lidar com as pessoas que o leem e no processo inteiro – nas viagens, nas pesquisas, nos contatos. Se minha alegria depender de ganhar prêmio ou de estar na lista de mais vendidos, acabou. Não ia dar mais certo, ia ser uma porcaria. E, infelizmente, a gente vê isso acontecendo com alguns trabalhos e artistas”.
A fala ressoa quando lembra das inúmeras mensagens que já recebeu sobre o impacto das palavras impressas na página. Gente que enxergou no enredo sobre ressurreição um mote para continuar vivendo. Centelha de renascimento em meio ao caos.
Não à toa, em determinado momento do romance, um personagem confidencia: “De tanto encher meu coração de beleza, esqueci de sofrer”. Socorro também anda assim. “É algo que tenho praticado em tudo: embelezar as coisas dentro do possível, preencher o tempo com elas. É desafiador trabalhar com literatura e ter uma carreira artística num mundo com tanto sofrimento. Muitas vezes, já me peguei perguntando: pra quê?”.
A resposta está aí, no quanto os escritos dela movem e transformam as coisas – espécie de profecia sentenciada por Frei Betto quando Acioli era ainda menina. “A escrita é um dom que Deus dá para tocar o coração das pessoas”, escreveu em carta. Isso marcou e segue no peito a cada passo, cada horizonte.
Os próximos, ela adianta: prometeu um livro infantil para a Companhia das Letrinhas; lançará no próximo ano, pela Editora Planeta, um compilado com cerca de 100 crônicas – algumas publicadas no Diário do Nordeste – sobre a relação com livros e escrita; também lançará a continuação de “A Bailarina Fantasma” (2015) e trabalha em um livro de não-ficção sobre o ofício da arte literária.
Há também um próximo romance em vista – embora bastante prematuro, ainda em fase de pesquisa. A trama acontece no Edifício São Pedro, em Fortaleza, e tem um menino como protagonista. “A história é inspirada no São Pedro, mas não é a história real do edifício – assim como a Igreja é em Almofala, mas os personagens da obra não são reais de lá. É sobre um prédio abandonado na beira do mar”, adianta.
Independetemente do que venha e como venha, haverá amor, esse tempero que penetra no coração da escritora e de lá não sai. É lar que convida para um café e um bolo, assim como ela nos convidou.
“As pessoas que eu tenho mais pena são as que eu vejo que não envolvem a vida de amor no que fazem. Uma das características da esquizofrenia, doença da minha mãe, é a incapacidade de sentir amor. Era tão triste ver a vida que ela teve, a forma como reagia – porque, para mim, a incapacidade de sentir amor é a pior doença de todas as doenças possíveis. Então, acho que também por causa disso vou para o extremo oposto. Já sou demais. E não consigo não ser assim”.
Serviço
Lançamento do livro “Oração para desaparecer”, de Socorro Acioli
Neste domingo (10), às 16h, na Livraria Leitura do Shopping RioMar Fortaleza (R. Des. Lauro Nogueira, 1500 - Papicu). Contato: (85) 3045-0300
Oração para Desaparecer
Socorro Acioli
Companhia das Letras
2023, 208 páginas
R$69,90/ R$37,90 (e-book)