‘O Pequeno Príncipe’ e mais: obras clássicas ganham versão em cordel e estimulam novas leituras
Por meio de estética genuinamente nordestina, narrativas abraçam elementos da nossa cultura e estendem o alcance de trabalhos consagrados
Imagine um garotinho loiro, a pele tingida de sol, portando chapéu de cangaceiro e rodeado por cactos. Agora tente visualizar os planetas por onde ele passou em busca de respostas sobre os mistérios da vida, encontrando figuras tão curiosas quanto encantadoras.
Essa mescla de referências nordestinas com o enredo de uma das obras mais famosas da literatura universal pode ser encontrada no livro “O Pequeno Príncipe em cordel”. Relançada em edição revista pelo selo Yellowfante, do Grupo Autêntica, a obra foi finalista do Prêmio Jabuti em 2016 e agora estende o alcance para mais públicos.
No centro do trabalho, a proposta de transpor para a Literatura de Cordel o universo criado pelo francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Para isso, o autor da nova versão, Josué Limeira, se vale da riqueza e exuberância de nossas paisagens e cultura a fim de homenagear a narrativa que faz parte da vida dele até hoje.
“É também um dos livros mais traduzidos do mundo. Faltava a linguagem do cordel ser incorporada nessa coletânea de idiomas”, observa o escritor pernambucano. Ao planejar a obra, Limeira percebeu estar diante de um momento sublime, necessitando trazer para a adaptação um toque clássico e armorial. Não fugir da essência do material-base foi regra imperiosa.
“O texto seguiria a simplicidade, beleza e alegria do cordel, e as ilustrações fariam correlações com personagens e símbolos da cultura nordestina – basta ver nosso ‘pequeno cabra da peste’ trazendo o chapéu do cangaço, as vestes do maracatu, a pele amorenada e os cabelos amarelados, típicos dos meninos da zona da mata de Pernambuco”, detalha.
Assim, tanto Josué quanto o ilustrador Vladimir Barros possuíam todos os elementos para construir o projeto de tal forma que ele não apenas captasse o âmago da história original quanto compusesse a roupagem popular oferecida pelo cordel.
Nos versos, por exemplo, trabalho e pesquisa aconteceram por meio do desenvolvimento de estrofes em sextilhas, procurando rimas que valorizassem cadência e narrativa, gerando na audiência um sentimento de integração entre o erudito e o popular.
Limeira descreve algumas das figuras presentes nas páginas: “O Pequeno Príncipe, nosso galego sarará; o desenhista, nosso vaqueiro; os passarinhos que levam o Pequeno Príncipe do asteroide B612 são nossas asas brancas, uma homenagem ao Rei do Baião, Luiz Gonzaga; o vaidoso é nosso calunga do carnaval de Olinda, O Homem da Meia Noite, entre outros”.
Para todos os públicos
Conforme o poeta, devido à simplicidade literária e às ilustrações regionalizadas, “O Pequeno Príncipe em Cordel” trouxe encantamento e conseguiu diminuir a faixa etária dos leitores, levando a bela mensagem de Saint-Exupéry aos pequeninos.
A nova versão também inspirou peças teatrais e enredos de quadrilhas juninas; criou economia criativa no artesanato de barro do Alto de Moura, em Caruaru (PE); virou game elaborado por um grupo de estudantes do Recife; foi adotada por mais de 40 escolas no Brasil e, neste ano, compõe o enredo da escola de samba Tom Maior, do carnaval de São Paulo.
“Estamos realizados com tantas conquistas, sendo a principal ter cativado o coração dos leitores”, festeja Josué. “A forma como o cordel traduz o cotidiano, com simplicidade, criatividade, irreverência e sonoridade, é de encantar. Existe uma fascinação pelo gênero que tem o poder de, em uma única estrofe, revelar o conteúdo inteiro de um sentimento ou de uma situação. Isso é magnífico”.
O projeto, assim, demonstra a capacidade da Literatura de Cordel de possuir novas vertentes, adaptando clássicos da literatura universal numa composição diferente dos tradicionais livretos – estes ligados às raízes da arte popular em versos.
O próprio Limeira, unido novamente ao ilustrador Vladimir Barros, também apresenta ao público “A Revolução dos Bichos em Cordel”. Igualmente publicado pela Yellowfante, o trabalho nasce a partir do texto original do inglês George Orwell (1903-1950).
Além das especificidades dos versos, as ilustrações têm como referência o construtivismo russo, influente movimento estético-político – refletindo a preocupação de Vladimir em associar os desenhos a referências históricas e culturais.
Josué, por fim, destaca alguns cordéis que adaptaram obras clássicas – levando em consideração tanto o livro em si como a dificuldade de transpor clássicos relativamente extensos para essa linguagem. Na lista, constam: “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, adaptado por Janduhi Dantas; “O Guarani”, de José de Alencar, adaptado por Klévisson Viana; “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, adaptado por João Gomes de Sá; e “O Alienista”, de Machado de Assis, adaptado por Rouxinol do Rinaré.
“Esse é um movimento ascendente, já que estamos diante de tantos clássicos adaptados e comercializados. Porém, não é disruptivo. A dinâmica não veio para descontinuar os livretos de cordel – que, ao longo da história, fizeram com que nossa literatura fosse raiz. É apenas uma das vertentes que o cordel conseguiu produzir para uma vasta economia criativa, alcançando música, teatro, televisão, cinema, artesanato e a própria educação como elemento fundamental da oralidade, da pesquisa e do ensinamento”.
Escolarização da literatura
Escritora, poeta cordelista, pedagoga, produtora cultural, editora e especialista em Literatura, Julie Oliveira percebe com muita alegria o crescimento de títulos clássicos adaptados para o cordel. Para ela, essa também é uma oportunidade de escolarização da literatura.
“Vejo um ganho de mão dupla: tanto permite uma aproximação maior dos jovens (e público em geral) com as nossas letras, mostrando suas diversas potencialidades e reinvenção; quanto o contato – muitas vezes o primeiro – com uma obra clássica”, situa.
Nas andanças da artista cearense por escolas e instituições de ensino, frequentemente estudantes afirmam que leram autores como José de Alencar, Machado de Assis e William Shakespeare por meio de adaptações de cordéis. Só depois da leitura dos folhetos é que se interessam por conferir a obra original.
“Não é um movimento interessante? Ao mesmo tempo, penso que não é algo tão recente, visto que os poetas cordelistas considerados clássicos – como o próprio pai do cordel, Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e Martins de Athayde (1880-1959) – adaptavam histórias e fatos históricos, a exemplo da obra ‘A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás’”.
Gomes de Barros reescreveu este último título em versos contando os episódios significativos da “História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França”, inaugurando à época um gênero épico dentro da Literatura de Cordel.
Há outro detalhe importante: com o prenúncio da “morte do cordel”, os poetas buscaram inserir esse tipo de literatura nas salas de aula. Segundo Julie, o movimento influenciou bastante a grande safra de adaptações, tendo em vista a criação de uma demanda de mercado baseada no interesse/encomenda de editoras por coleções do gênero.
Por sinal, o primeiro trabalho da cearense publicado por uma grande casa editorial foi a adaptação em cordel de “Branca de Neve”, pela Imeph. Julie também escreveu “A Cigarra e a Formiga – nova fábula em cordel” (Giramundo Editora, 2013), e recentemente publicou “A História de Pandora em nova Simbologia” (Ganesha Edições, 2022), a ser lançada no próximo dia 11 de fevereiro.
“Se eu pudesse destacar obras que me atravessaram de forma especial, gostaria de citar a recente adaptação de Rouxinol do Rinaré, intitulada ‘O Pequeno Príncipe em versos rimados’ (Terra da Luz Editorial, 2020) – ilustrada pelo grande Jô Oliveira, e toda escrita em quadras”, sublinha a cordelista, apresentando mais uma versão em cordel do clássico de Exupéry.
“Outra que tenho apreço é ‘O Pavão e o Rouxinol’, de Mariane Bigio (Prazer de Ler, 2019), em que a autora reconta um famoso conto de Esopo”, completa.
Ceará em destaque
São muitos os cordelistas com adaptações que merecem nosso olhar. Em solo cearense, dentre os principais autores nesse ramo, está o professor e cordelista Stélio Torquato, além dos já citados Rouxinol do Rinaré, Klévisson Viana, Arievaldo Viana (in memoriam), Evaristo Geraldo e Arlene Holanda.
Julie destaca, em especial, Stélio Torquato. O poeta possui grande quantidade de obras adaptadas e realiza ação diária nas universidades e instituições de ensino por meio dessa arte. O saudoso Arievaldo Viana (1967-2020) integra esse mesmo time, tendo conquistado a inserção do cordel nas escolas por meio do projeto “Acorda Cordel na Sala de Aula”.
“A luta desses poetas proporcionou, inclusive, a criação de um mercado, de modo que as grandes editoras cearenses – e de todo o país – têm lançado, há alguns anos, um olhar para as nossas obras. Isso é muito gratificante”.
Ainda nessa conta, iniciativas governamentais como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), são fomentos de extrema importância para a distribuição de obras e fortalecimento do público leitor. Inclusive, diversos cordelistas cearenses têm livros distribuídos por esses programas, a exemplo de “A dama das camélias” (Editora Nova Alexandria-SP), de Evaristo Geraldo.
A oralidade na história do cordel, de acordo com Julie, faz com que a linguagem utilizada pelos poetas seja mais próxima do povo. Isso não implica, porém, marcas de simplismo. “Destaco isso porque muitos pensam que o cordel precisa ter um determinado tipo de escrita para ser cordel, confundindo-o muitas vezes com a poesia matuta. Na verdade, são tipos de poesias diferentes”, explica.
Na essência, o cordel realmente utiliza linguagem mais informal, o que com certeza aproxima muitos públicos – uma vez que a referida arte não se ampara num rebuscamento para comunicar. Ao mesmo tempo, investir no intercâmbio entre o clássico e o contemporâneo, o erudito e o popular, por meio desse panorama traz para Julie a certeza de que precisamos nos despir de preconceitos infundados, contribuindo para que as pessoas leiam mais.
“Muitos puristas usam o argumento de que pode haver um empobrecimento das obras literárias nesse processo de adaptação, o que discordo completamente. Estamos o tempo inteiro recontando histórias, e na produção escrita isso não é diferente e nem deve ser. Penso que, quando realizada de maneira que preserve as características da obra adaptada (até certo ponto, pois a imaginação do autor que reconta não deve ser tolhida), as adaptações são um meio produtivo para a efetivação do contato entre os alunos e a literatura clássica, permitindo, assim, o direito e o acesso à literatura”.