Mulheres na música: invisibilidade, talento questionado e a luta para ocupar espaços na cena local
Machismo e objetificação do corpo feminino são alguns das barreiras enfrentadas por mulheres musicistas
A música abriu caminhos para Yanaêh Mota. Do primeiro contato com um instrumento, aos 17 anos, veio o ingresso na faculdade, o mestrado, o doutorado, a participação em eventos e a possibilidade de lecionar e formar novos músicos. Mesmo com um currículo ‘completo’, a cearense e tantas outras musicistas encaram os percalços e desafios da carreira por questões de gênero.
Yanaêh conheceu mais intimamente a música instrumental na adolescência, quando fez aulas de violoncelo em um projeto social em Fortaleza. Oito meses depois do início do curso, ingressou na faculdade de Música na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Lá o primeiro choque foi: cadê minhas colegas mulheres? Porque de 25 alunos, só três eram mulheres, então a gente percebe que já tem um gap aí”.
A partir das percepções de invisibilidade feminina e pouca ocupação de espaços na música, Yanaêh se debruçou a estudar questões de sexualidade e gênero no nicho tanto no mestrado quanto no doutorado, evidenciando que esta é mais uma face do machismo.
“Durante esse percurso, eu percebo muito claramente lugares em que nós mulheres não estamos, seja porque estamos em minoria ou passando por situações horrorosas como assédios. Nós sempre estivemos na cena cultural, mas por questões estruturais nós temos dificuldades pra alcançar certos espaços, ficamos num lugar abaixo do que homens conseguiram”, conta.
Espaços restritos
Uma das pioneiras na cena musical local, Mona Gadelha também pondera a necessidade de haver mais iniciativas para mulheres. “É notório o crescimento da presença das mulheres em todos os setores da música, mas por que essa presença não é demarcada? Parece uma tendência de ocultação, boicote”.
Mona relata que, quando começou a carreira, essa presença feminina era mais no canto. "Hoje, vejo trabalhos incríveis de grandes instrumentistas mulheres. Sempre acompanho a cena do Ceará e vejo talentos que precisam ser mostrados, vistos, acompanhados. Antigamente, a gente tinha dificuldade de citar, hoje o medo é esquecer, porque são muitas. Tem uma cultura que precisa ser desconstruída".
“Uma coisa necessária é convidar, reconhecer essa presença, esse trabalho, se atentar. Conhecer esses trabalhos desenvolvidos pelas mulheres. Chama que nós estamos aqui”.
A professora de Música da Uece, Lu Basile, pondera que essa invibilidade é causada porque a sociedade é machista. “A mulher é cultuada como objeto e geralmente de acordo com o estereótipo ‘bela, recatada e do lar’. Quantas cientistas brilhantes temos, e pouco sabemos sobre elas, assim como na música temos mulheres incríveis, porém não são lembradas, são invisibilizadas”.
Além disso, Lu conceitua que esse processo é histórico. No Ceará, por exemplo, há registros de mulheres na cena instrumental desde a década de 1920.
“As irmãs Ambrosina e Emília Teodorico eram pianistas nas salas do cinema mudo. Maria de Lourdes Gondim era compositora e trabalhava como pianista na Rádio PR 9 em Fortaleza. Hilda Mattos, compositora gravou canções pela Casa Edson. Dona Mazé do bandolim, compositora incrível, gravou suas músicas instrumentais”.
Há outro aspecto que as musicistas apontam de que, quando uma banda é formada apenas por figuras femininas, é conhecida como 'banda de mulheres'. O complemento ainda parece ser necessário para enfatizar. Quantas bandas dos mais diversos ritmos são compostas só por homens e a sociedade não referencia pelo gênero?
"Tenho umas amigas guitarristas, que tocam só na banda delas, Letícia Monteiro e Natália Rebouças, elas falam que precisam ficar provando o tempo inteiro que sabem tocar. Tem um estigma muito grande", complementa Mona.
Reivindicar direitos
Para além disso, Mona destaca a importância de não deixar de se posicionar diante dessas dificuldades. Esta matéria, por exemplo, surgiu a partir de outra publicada no Diário do Nordeste, em que listamos alguns músicos instrumentais com faixas publicadas na internet para o público conhecer. A lista, contudo, era formada por homens.
Para a pesquisadora Yanaêh, o parco número de trabalhos publicados, que não foram identificados na hora de montar a lista do DN, se justifica pela falta de oportunidades para mulheres. "É uma questõa estrutural, se não conseguimos integrar os editais, os festivais, como vamos nos lançar? Como lançar nossas carteiras?".
"A gente não pode mais aceitar esse lugar do oculto, é importante esse debate, abrir esse espaço para as mulheres, que sejam convidadas pra dirigir espetáculos, estar à frente de projetos e realmente ter uma equidade mesmo, consolidar essa conquista, porque já é uma luta de tantos anos”, reforça a também coordenadora do Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes.
Em nota enviada à reportagem, o Grupo Mulheres da Música do Ceará questiona a falta de profissionais mulheres na lista e expõe a luta da categoria. “As mulheres, trabalhadoras e artistas, da/na música cearense lutam há tempos por espaço e visibilidade, mas essa luta se torna ainda mais difícil quando somos sistematicamente esquecidas nos meios midiáticos”.
“Isso tem consequências reais que se refletem no alcance do público, nas oportunidades de trabalho e, sobretudo, na constante tentativa de desqualificação profissional que enfrentamos diariamente”, argumenta a nota do grupo articulado em rede social.
Influência do corpo
As profissionais relatam ainda as divergências que existem com relação ao canto, espaço já ocupado por mulheres e, muitas vezes, colocado em evidência. No entanto, é mais raro ver musicistas femininas tocando nas bandas. Conforme Yanaêh, isso acontece pois há uma influência do corpo, que é objetificado.
“Quanto mais se exige de controle, de manuseio de equipamento, mais se entende que é uma tarefa de homem. São reflexos na música de uma tradição misógina, machista, que são concepções estruturais, a mulher cantora foi se consolidando muito lentamente, mas tem essa relação imediata com o corpo”, explica.
Além disso, a violoncelista acrescenta que “homens partem do pressuposto de que nós não sabemos manipular nossos próprios instrumentos. Amigas já me narraram que um cara sempre vai querer ensinar algo, sempre nosso corpo vem antes do talento, da capacidade”.
Já para Lu, há a construção de uma espécie de ‘persona’, criando um modelo para outras meninas e provavelmente deve influenciar de algum modo na formação do gosto e passam a desejar esse padrão.
“Mas acho que também pode ocorrer que, por conta justamente desse modelo de figura de destaque, com uma construção exuberante do figurino e performance e das atitudes, isso pode estar influenciando o menor interesse pelo conhecimento de milhares de outras mulheres que estão tomando parte da cena musical, mas como instrumentistas”.
Conheça as musicistas
Yanaêh Mota
Yanaêh teve seu primeiro contato com o violoncelo aos 17 anos, em 2012, quando participou de um projeto social. Quase um ano depois, ingressou na graduação de Música da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Hoje, se dedica aos estudos e ao ensino e atua como professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).
É Doutoranda em Música pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGMus/UFRGS); Mestra em Música pelo PPGMus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGMus/UFRN) e Licenciada em Música pela Uece.
Lu Basile
Lucila começou na música bem cedo, quando começou a brincar com um piano que tinha em casa. Por volta dos 7 anos, entrou para uma escolinha de artes para aprender a tocar o instrumentos, além de pintura e escultura, por incentivo da mãe. "A música, as artes são parte inseparáveis da minha experiência".
É graduada em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992); Mestra em Música pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua como professora adjunta da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Sua pesquisa foca a música urbana do final do século XIX até as três primeiras décadas do século XX.
Mona Gadelha
Cantora, compositora, jornalista, produtora, pesquisadora. Lançou sete discos - Mona Gadelha, 1996; Cenas & Dramas, 2000; Tudo se Move, 2004; Salve a Beleza,2010; Praia Lírica, um tributo à canção cearense dos anos 70, 2011; e Cidade Blues Rock nas Ruas, 2013. Participou do álbum "Massafeira" com o blues “Cor de Sonho” (lançado em vinil, 1980; relançado em CD duplo, 2010/CBS-Sony, com livro).
É uma das pioneiras da cena rock do Ceará e atua como coordenadora do Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes. Formada em Comunicação Social pela UFC, fez especialização em Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia de São Paulo. É mestre em Comunicação na UFC, com pesquisa em performance e transgressão em Fortaleza nos anos 1970.