Lorena Portela visita lugares-pessoas com o livro ‘Primeiro eu tive que morrer’
Escritora abraça estadias seguras para se expressar em palavras
Isto não é uma resenha. É mais uma tentativa de conversar com você do que qualquer outra coisa. Portanto, antes queria te dizer que li “Primeiro eu tive que morrer”, da cearense Lorena Portela, após seis meses de jejum literário, e também que ela foi a primeira pessoa que entrevistei cara a cara - na redação do jornal e com um tempo razoável para isso -, depois de um ano e meio de pandemia. E isso significa muito.
Feito quando chega visita em casa, me preparei para recebê-la, mas sem saber exatamente o que oferecer. Daí que logo nos primeiros ‘olás’ trocados, compreendi que a autora e eu estávamos em um terreno seguro, não sendo necessárias formalidades, ainda que estivessem na mesa assuntos dos mais profundos. Entre eles, os lugares de Lorena.
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Comecemos então por Jericoacoara, cenário do primeiro livro dela produzido de forma independente, e que, já vendeu mais de 6 mil exemplares. É lá que a protagonista da história - cujo nome não é revelado e eu só me toquei disso agora -, busca refúgio, à beira de um colapso pessoal e profissional.
A vila apresentada por Lorena talvez tenha muita da primeira ida dela naquele local, ainda na adolescência, de passagem com uns amigos. E, por isso mesmo, retornar ao ambiente, coisa que ela fez em setembro último, colocou-a diante de contrastes que certamente o leitor de sua obra perceberá.
“É óbvio que eu chego em Jeri e fico meio triste com algumas coisas... Eu não sou ‘contra o desenvolvimento’, nada disso, agora eu acho que quem não entende a magia do lugar tende a achar que tá tudo certo colocar um bar de um modelo x, não respeitando o entorno e isso me dói um pouco”, desabafa.
Ainda assim, assegura a autora, você verá todas as cores do pôr do sol “joia rara”; poderá mergulhar no mesmo mar de tons azul, roxos, espelhados; e também caminhar pelas ruelas que levam ao forró, num compilado fiel dos cenários que ajudaram a protagonista a enfrentar angústias acumuladas.
Lugares-pessoas
Talvez encontre por lá também uma Guida, mulher-fortaleza que acolheu as dores da visitante e cuja generosidade é inspirada na própria mãe da autora. Aliás, é bem aqui que a chave vira para mim, e talvez para você: os lugares de Lorena são pessoas.
“Às vezes eu fico pensando: meu deus, que saudade de casa, que hoje é Londres… Mas a minha casa é meu marido que tá lá. Se ele estivesse aqui, eu teria menos saudade de casa, provavelmente. Então é isso, a saudade de um lugar é sempre uma pessoa”, solta ela, lá pelos vinte e poucos minutos de entrevista.
A Europa mudou tanto a vida desta cearense como Jeri transformou a de sua protagonista. Depois de uns anos em Lisboa e agora devidamente estabelecida em Londres, foi na Capital da Inglaterra que a autora encontrou toda a inspiração para transbordar em palavras.
“Londres não tá no livro, mas foi imprescindível estar lá. É uma cidade super estranha, muito diferente de tudo que eu vivi a minha vida toda, porque eu morei na praia a vida inteira e agora é o extremo oposto. Não tem praia, é cinza, chuvosa, escura, fria… mas tô sempre indo a exposições, bibliotecas, parques, vendo os músicos. Então eu acho que tem uma força propulsora ali naquela cidade”, observa.
Não por acaso, é lá que ela escreverá seu segundo romance. E, assim como em “Primeiro eu tive que morrer”, será numa rede de apoio construída majoritariamente por mulheres que ela embasará esse percurso.
Basta pensar que o novo livro começou em um curso de Socorro Acioli; Natércia Pontes foi outra que chegou junto no processo; e Natália Timerman também segurou a mão dela e disse: “deixa eu te ajudar nisso aqui”.
“As mulheres estão muito atentas umas às outras e eu acho que a gente tem que estar mesmo, não só atentas às necessidades como ao movimento”, defende Lorena. De novo, reverenciando as pessoas-lugares.
Um trecho para guardar
Olha só, essa conversa já está quase acabando, mas antes queria compartilhar a parte que mais me tocou no primeiro livro da Lorena e acho que é indiferente você ter lido ele ou não.
É uma frase que até guardei num aplicativo de trechos para não esquecer: “Tudo que existiu não inexiste nunca mais”. Lê de novo. Profundo, né?
Segundo a autora, o trecho nasceu de um incômodo antigo. “Eu tinha uma amiga que dizia ter muito medo de pegar voo. E ela disse que, entendendo esse medo, viu que ele nascia na ideia de que ela ainda tinha muita coisa pra viver e muita coisa pra entregar. Ficava com pena de morrer. Depois ela perdeu o medo, quando entendeu que não, que se ela vivesse até ali, a vida dela era aquela, foi até ali e é isso”, explica.
“Isso faz muito tempo. E eu sempre fiquei com isso na cabeça, que a gente define a vida ou as existências pelo tempo de duração ou pela intensidade das coisas, sendo que uma existência é o que é, ela é absoluta em si, ela é um fim em si, e assim a frase se explica”, completa.
É por isso mesmo que ninguém vai tirar de Lorena o fato de ela ter nascido no Ceará, depois ter morado em Lisboa e hoje ter um lar em Londres. Tampouco de ter condensado boa parte das experiências vividas nesses lugares em um livro de ficção com o qual inúmeras mulheres se identificam logo de cara.
“Foi o que existiu e não deixa de existir. Completou, é um ciclo completo, não acaba, segue com a gente”. Fim?