Festival Sérvulo Esmeraldo 90 anos celebra a memória do artista cearense
Exposições e atividades formativas voltadas a profissionais, pesquisadores e público em geral acontecem durante 30 dias. O Crato testemunha o íntimo desejo de Sérvulo em partilhar o conhecimento e compreender a arte como agente de mudança social e ensino
A chance de mergulhar na mente de um artista e explorar as motivações e influências do ato criativo é oportunidade rara. Adentrar tal intimidade permite a compreensão do quanto uma obra artística resultadas reminiscências e relações afetivas com o lugar de origem. No caso de Sérvulo Esmeraldo (1929-2017), cujo domínio da arte era sinônimo de educação e partilha social, o cotidiano do torrão natal também foi decisivo à edificação da obra.
"Nunca vi um filho tão apaixonado por sua terra como o Sérvulo". Quem fala com propriedade é Dodora Guimarães, viúva do artista e responsável por manter a memória e o acervo do cratense em constante debate público. No ano em que completaria 90 anos, o cidadão apaixonado pelas formas geométricas ganha um evento totalmente dedicado a explorar as raízes de sua produção.
De 30 de outubro a 30 de novembro, o Festival Sérvulo Esmeraldo 90 anos finca estruturas na generosidade outrora defendida pelo realizador. Estabelece no Crato uma série de ações educativas. Cursos, residências artísticas e exposições com grandes nomes da arte e da pesquisa no Brasil unem diferentes gerações à íntima vontade do escultor, gravurista, ilustrador e pintor em propagar uma arte emancipadora.
A ideia é fazer germinar na fértil Região o pensamento inventivo de Sérvulo Esmeraldo. Perceber quais aspectos locais foram determinantes na trajetória deste criador. As atividades são gratuitas, disponíveis a todos os públicos e centradas na formação. "O Festival celebra a memória do Sérvulo. Não vamos tratar das obras, mas do pensamento e do desejo que ele cultivava em realizar ações na sua cidade natal, o Crato. Todo o pensamento do encontro foi criado em função dos interesses dele, no que diz respeito à arte e como ele pensava a cultura", defende Dodora.
Além da idealizadora e presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo, o trabalho de organização contou com os esforços do jornalista, crítico de arte e curador Marcus de Lontra Costa. Para concretizar uma iniciativa tão específica, nada mais natural do que convidar nomes cuja trajetória iluminam o trabalho de Sérvulo e defendem a troca de saberes como poderosa ferramenta educativa. O Festival, portanto, é uma comunhão de amigos e colaboradores próximos.
"Nossa proposta é, a partir da trajetória de Sérvulo, provocar reflexões e perceber como uma série de influências até mesmo geográficas, como o fato de ele ter nascido na região, no Crato, depois ir para Fortaleza, Sudeste do Brasil, França e ter retornado para o Ceará, criou camadas de saber. Bagagens de conhecimento que reverberam e produzem uma peça que não se esgota nela ou na própria história individual do artista, mas que eclode como processo coletivo de conhecimento, de identificação das suas raízes, identificação da sua cidadania", comenta Marcus de Lontra.
No território das atividades formativas, Marcus atuará diretamente em duas frentes. Ele protagoniza os cursos "Leitura de Portfólios" e "Pesquisa, Curadoria, Exposições", cada uma voltada para consumidores distintos.
O primeiro contempla profissionais que já tenham uma obra executada e que aceitem colocar este acervo em discussão juntamente a um grupo de pessoas. A outra ação se destina a artistas, estudantes de arte, gestores e agentes culturais e aponta provocações do que é a arte, as finalidades e sua importância no atual contexto brasileiro.
As atrações foram pensadas a dialogar entre si. Exemplo notório é a participação do artista plástico e educador Paulo Portella Filho. A "Oficina Preparatória para Professores de Arte e em geral do Ensino Fundamental" atua em três estágios. Na etapa inicial se articula com as proposições da oficina "Pesquisa, Curadoria, Exposições", mediada por Marcus. O trabalho continua com práticas em grupo com educadores de arte e Ensino Fundamental. Na fase final, será constituído um ateliê para grupos visitantes das exposições. Essa atividade demanda a participação ativa do grupo de professores, apto a compreender e a explorar as riquezas levantadas durante o Festival.
"Sérvulo é um artista universal, mas também é um artista do Ceará e do Crato. Isso é o que buscamos mostrar, que criadores como ele constroem um perfil de identidade, de união da comunidade que precisa ser valorizada para que entenda como o agrupamento humano é capaz de desenvolver saberes, potencialidades, de comemorar efetivamente o desenvolvimento de sua região, da sua cidade. Isso, ao que me parece, é essencial nas conversas e nas exposições", defende Marcus de Lontra.
Residências
A lista de participantes comprometidos com a filosofia do evento traz Gentil Barreira, Mônica Nador e Rochelle Costi. O trio comanda as residências artísticas que permitirão a um grupo de criadores selecionados vivenciar o celeiro cultural do Cariri cearense. Cada facilitador será responsável por 15 residentes durante nove dias de imersão, e o compartilhamento culminará em exposição coletiva.
Gentil Barreira guarda o mérito de acompanhar Sérvulo desde 1980. Registrou fotografias da vida e obra do escultor. "Um caso raro na história da arte", detalha Dodora. Além da atuação nos segmentos de publicidade, moda, retratos e arquitetura, desenvolveu trabalho autoral com foco na pesquisa documental e em estudos de luz e movimento. Realizou diversas exposições individuais e participou de importantes coletivas, no Brasil e no exterior. O interesse e dedicação à memória do amigo serão as ferramentas poderosas da residência.
Atuante na fotografia, vídeo e instalação, Rochelle Costi investe nas intercessões da arte contemporânea com a popular. Nos últimos anos, vem se associando a artistas populares para trabalhos que ela chama "colaborativos". Mescla fotografias com outras formas de expressão, compondo instalações.
A artista visual Mônica Nador completa o grupo de facilitadores das residências. "Vamos nos inspirar no Sérvulo e fazer 'stenceis', o que sempre uso. E aí, vamos ver o que fazer lá. Se vamos pintar pano, parede, vou sentir na hora. Não é uma coisa megapreparada. Vamos ver o que conseguimos extrair desta luz, desta luz prismática e geométrica de Sérvulo", anuncia Mônica.
O cotidiano de dividir expertises é um território comum à carreira da paulista. Ela fundou em 2004 o Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), no Jardim Miriam, periferia da capital de São Paulo. O trabalho de arte comunitária e autoria compartilhada resultou em grande impacto sociocultural e a iniciativa foi contemplada em 2018 com o 27º Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage.
No início dos anos 2000, a convite de Dodora, a artista visitou a região Sul do Ceará por conta da 1ª Bienal de Artes do Cariri. Ela relembra a passagem por Barbalha, onde atuou, e destaca o intercâmbio com jovens locais, além dos aspectos visuais do cordel e das bordadeiras.
"Tudo isso considerado arte, uma coisa linda. Essa mistura de culturas, tudo num nível só", relembra a criadora.
Exposições
Se os encontros promovidos pelas residências proporcionarão uma mostra coletiva, o Festival Sérvulo Esmeraldo 90 Anos abrigará ainda um especial momento de visita ao universo de Maciej Babinski. Oriundo de uma geração de artistas cada vez mais rara, de sólido domínio da técnica, Babinski é reconhecido como um mestre por ter colaborado para a formação de importantes artistas brasileiros. Dodora Guimarães também participou da seleção do acervo que inclui 59 obras entre desenhos, gravuras e pinturas, realizadas entre 1967 e 2019.
Permitir o contato de histórias e vivências tão díspares, porém próximas pela motivação de propagar o conhecimento é um dos grandes trunfos do evento. Como aponta Marcus de Lontra, Dodora cuida do acervo de Sérvulo não no sentido de posse. A obra se prontifica como instrumento de conhecimento e transformação.
"Um artista, ele é movido por razões íntimas para produzir. Agora, ele só se realiza quando essa peça tem sentido coletivo. Principalmente no caso de Sérvulo que trabalhou obras públicas durante toda a vida. Para ele, a inserção da arte na cidade, no espaço público, é momento de consagração do trabalho", avalia o curador.
O Festival Sérvulo Esmeraldo 90 Anos discute o quanto lugares fora dos centros hegemônicos do saber no Brasil são fundamentais para construir um processo de diversidade e vivências. Retribui o pensamento generoso do homenageado. Ao refletir em torno das motivações de unir tantas mentes prodigiosas, Dodora cita a alegre frase do companheiro:
"se é pro Crato, vamos botar pra quebrar!".
"Sérvulo foi um grande defensor do ensino da arte, da informação como elemento fundante. Pensei nisso ao planejar o Festival. Trazer esse pessoal é 'botar para quebrar'. Que bom os amigos terem aceito o desafio e estão todos muito empolgados. São parceiros que compreendem a obra de Sérvulo e entendem a proposta que é a imersão nos aspectos da cidade e da memória", festeja Dodora Guimarães.
Encontro de vários mundos
Pode um evento totalmente dedicado à memória de um realizador como Sérvulo Esmeraldo propiciar exposição voltada à trajetória de outro artista plástico? A pergunta é respondida quando identificamos o criador envolvido. Trata de Maciej Antoni Babinski, criador de origem polonesa com dedicada história de labuta nas artes visuais brasileiras.
Além da notória e reconhecida força técnica e criativa, cravada em trabalhos que exploram a gravura, ilustração e pintura, aos 88 anos, participa do Festival Sérvulo Esmeraldo 90 Anos como um símbolo de afeto e do que o contato com a diversidade do Cariri é capaz de propiciar para quem busca novos ares criativos.
"É muita honra ter sido convidado para um evento desta importância. É uma oportunidade de mostrar meu trabalho recente aqui no Ceará e além de ter uma parte didática sobre a gravura para um público de estudantes", explica gentilmente.
Babinski adotou o interior cearense há 27 anos. "Não como refúgio", lembra Dodora Guimarães. O morador do sítio Exu, em Várzea Alegre, encontrou na região campo de expansão para a vida e o exercício da arte com a maior liberdade possível. Fugiu da Polônia para a França por conta da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A diáspora incluiu Reino Unido e Canadá, até desembarcar no Rio de Janeiro, em 1953. Viveu e trabalhou em São Paulo, Araguari, Brasília e Uberlândia. De Brasília chegou ao Ceará, onde divide desde 1991 a vida com a cearense Lidia. A mostra "Maciej Babinski: Desenhos, Gravuras e Pinturas (1967 - 2019)" será aberta no dia 7 de novembro, às 19 horas, na Universidade Regional do Cariri (Urca). Com tanta estrada, fala com a propriedade de um cearense.
"É oportuno para a região reunir estes profissionais. Temos, às vezes, um certo isolamento das pessoas que realizam seus trabalhos mais nos grandes centros. Acho que o Crato é uma cidade importante para a educação, tem uma universidade, tem Juazeiro do Norte do lado e está no Cariri, que é culturalmente especial dentro do Brasil". Gravador, ilustrador, pintor, desenhista e professor, Babinski é contemporâneo de Sérvulo Esmeraldo Paisagem carbonizada integra a mostra "Maciej Babinski: Desenhos, Gravuras e Pinturas (1967 - 2019)