Fenômeno ASMR: Sons para relaxar viralizam, induzindo o sono e promovendo bem-estar
Sucesso na internet, prática se vale de estímulos visuais e sonoros para potencializar emoções positivas
Nada como chegar ao fim de um dia estressante e ter a possibilidade de relaxar. Se antes a recomendação era ficar longe da internet para atingir esse estado, hoje muitas pessoas se voltam exatamente para conteúdos na rede capazes de promover essa sensação.
Prova disso é o estrondoso sucesso de vídeos nos quais há pessoas sussurrando ou provocando barulhinhos agradáveis, a exemplo da manipulação de plástico-bolha ou do corte de barras de sabonetes coloridos. Os efeitos desses toques leves e metódicos têm nome: Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano, conhecida como ASMR.
Trata-se de um fenômeno sensorial, isto é, uma resposta psicofisiológica a estímulos sonoros e visuais específicos, na qual indivíduos experimentam calafrios e arrepios iniciados na nuca e que se espalham pelo couro cabeludo, descendo pelas costas. Podem se manifestar também nos membros e em outras áreas do corpo.
A ASMR, contudo, não é um termo científico, tendo sido cunhado em 2010. Destrinchando a sigla, temos que “resposta” se refere a uma reação do organismo; “sensorial” reflete a transmissão de informação pelo sistema nervoso; “autônoma” caracteriza algo que ocorre no corpo independentemente da nossa vontade; e “meridiano” está associado tanto à linha que liga os pólos geológicos da Terra quanto ao fluxo de energia pela nossa estrutura física, de acordo com a Medicina Chinesa.
Inclusive, esta última palavra relativa ao conceito remete à distribuição vertical das sensações pelo sistema nervoso – não à toa, há suposições de que o termo ASMR foi escolhido para substituir “orgasmo”. Os principais gatilhos que desencadeiam tais sensações são vozes sussurrando, sons nítidos e repetitivos (dedilhar sobre uma mesa de madeira, plástico amassando, água jorrando), sons e imagens de massinhas de modelar, entre outros.
“Esses estímulos geram sensações semelhantes à experiência de sinestesia, um fenômeno no qual estímulos sensoriais causam efeitos em outra modalidade sensorial não estimulada – sons ou imagens que causam sensações táteis”, enumera Tauily Taunay, psicólogo, doutor em Ciências Médicas e docente dos cursos de Psicologia da Universidade de Fortaleza e da Universidade Federal do Ceará.
A favor do sono e da leveza
De acordo com o estudioso, praticantes de ASMR tendem a relatar sensações de relaxamento e bem-estar, mas outros relatam nenhuma sensação, enquanto alguns têm sensações aversivas. Dentre os que afirmam se beneficiar da prática, o ASMR pode causar percepções subjetivas agradáveis, a exemplo de satisfação, alívio e até prazer.
“Muitos utilizam para induzir o sono, em função dos efeitos tranquilizantes dos sons suaves de sussurros, água sendo derramada etc. Algumas pessoas relatam sensação de intenso alívio ao visualizar cenas de unhas sendo desencravadas ou cascos de cavalos sendo aparados. Parece estranho, mas há grandes comunidades na internet e vídeos com milhões de visualizações relacionados a esse tipo de conteúdo”.
A engenheira civil Lara Barroso, 28, conheceu a prática em 2014, durante intercâmbio nos Estados Unidos. Diante da mudança de rotina e estilo de vida, resolveu buscar alternativas que ajudassem a relaxar e a dormir melhor. Desde o contato com ASMR, nunca mais parou.
“A meditação não era algo que funcionava bem pra mim, então decidi buscar novas opções. Buscando no YouTube por vídeos para ‘dormir mais rápido’, acabei encontrando diversos vídeos de ASMR, sem saber o que de fato significava. Assim, fiz uma pesquisa para compreender a técnica e conhecer os benefícios”, conta.
Uma das maiores vantagens que ela identifica na prática é a rapidez com que se alcança os efeitos promovidos por ela. Diante de uma vida corrida, o ASMR chega como ferramenta para alcançar relaxamento de forma ágil, controlando o pensamento acelerado e ajudando na obtenção de um sono mais profundo.
“É uma maneira prática de relaxar rapidamente. Além disso, a partir do contato com a técnica, é possível identificar quais sons e estímulos visuais são capazes de ter efeito benéfico no nosso dia a dia”.
Segundo a engenheira, o próprio YouTube oferece diversas opções de canais com foco no segmento. Ela enfatiza, porém, a importância de que cada pessoa assista a vídeos variados até encontrar o tipo de som/estímulo visual capaz de trazer os melhores resultados. Muitos fatores influenciam na experiência, como o sotaque de quem fala, tom de voz ou o uso de diferentes tipos de luzes.
Lara testou diversas opções até encontrar o tipo de voz que mais lhe agradava. Hoje, os canais favoritos dela são “Gentle Whispering”, disponível em inglês; e “Sweet Carol”, em português. Também existem aplicativos destinados a isso, a exemplo do Tingles. “O ASMR consegue proporcionar muito bem a função pontual de anti-stress, relaxamento e formigamento, como se estivesse recebendo uma massagem”, compara.
“O alívio do estresse e a entrada rápida em um estado de relaxamento, e até mesmo de sono, realmente acontecem comigo. É uma ferramenta que traz, sim, benefícios, que, no entanto, são pontuais. Na minha opinião, trazer benefícios à saúde mental de uma pessoa completamente saudável em termos psiquiátricos é completamente possível. Porém, ao se tratar de pessoas com patologias, nem sempre isso é alcançado”, completa.
Por isso mesmo, Lara acredita ser necessária muita cautela antes de afirmar que a prática alivia a ansiedade e até ajuda em casos de depressão – informações muitas vezes difundidas a respeito do assunto. “Não acredito que, num contexto maior, essa prática deva ser estimulada de forma isolada. É essencial que a disseminação dela venha acompanhada de uma conscientização consistente de que o ASMR não substitui nenhum tratamento médico nem terapêutico. Também é necessária muita responsabilidade social para que o estímulo à técnica não acabe virando mais uma rota de fuga fácil para acobertar cada vez mais problemas psiquiátricos identificados nos dias de hoje”.
ASMR e saúde mental
Opinião semelhante tem o Dr. Tauily Taunay. Segundo ele, em alguns casos há relatos de que o ASMR pode ser útil para promover alívio de sintomas de ansiedade, estresse e até depressão e dor crônica. Obviamente, não pode ser uma ferramenta terapêutica exclusiva para tratar tais condições, mas parece ajudar a reduzir temporariamente esses sintomas, como um complemento no tratamento.
“O ASMR, dado o papel central que a atenção concentrada exerce, parece estar associado ao mindfulness – um estado relaxado de atenção interna e externa, muito parecido com meditação – atuando como uma prática que resulta em aumento de bem-estar e de emoções positivas”, reitera o pesquisador.
Por outro lado, alguns estudos apontam que a prática promove liberação de dopamina e outros neurotransmissores, bem como gera um padrão de atividade elétrica cerebral denominado “ondas Mu”, ocorridas quando se inicia um movimento ou quando se observa alguém se movimentando. Elas estão associadas ao sistema de neurônios-espelho – grupo de neurônios que se ativam quando vemos outra pessoa realizar ações com significado pessoal.
Apesar de haver pesquisas relatando melhoras em sintomas depressivos mediante experiências com ASMR, ainda não há muitos estudos nem explicações para eventuais efeitos benéficos para a saúde mental. “Há hipóteses de que pessoas muito sensíveis à dor e ao sofrimento alheio, pouco aventureiras e que preferem estímulos menos intensos, estão mais suscetíveis de experimentar os efeitos prazerosos do ASMR”.
Não sem motivo, conforme o psicólogo, é recomendável que todos conheçam a técnica, mas apenas algumas pessoas sentirão os efeitos relatados, havendo muita variação. Há aqueles que curtem os sussurros, outros que se irritam. Dentre os pertencentes ao primeiro grupo, há ainda os que se satisfazem com vídeos sonorizados de sabonetes sendo cortados.
“Existem aqueles que não sentem nada especial com esses estímulos e, ainda, há quem se incomode bastante, como em casos de misofonia – pessoas que ficam irritadas, furiosas ou mesmo em pânico quando ouvem sons repetitivos, como gotas d'água ou batidas de lápis”.
No fim das contas, o ASMR é algo para se experimentar de forma individualizada, uma vez que exige concentração nos estímulos para se experimentar os efeitos – não fazendo sentido, assim, utilizá-lo em grupo, num contexto de relação social.
“Não há muitas recomendações de precaução, pois o máximo que pode acontecer é os estímulos não surtirem efeito, dependendo da pessoa e do tipo de estímulo específico. Recomendo que a pessoa teste diversos desses estímulos relatados acima e verifique se são capazes de gerar alguns dos efeitos relaxantes e prazerosos relatados por diversos usuários”.
Desligamento da mente
Kelvin Maciel, 25, é outra pessoa que enxergou na prática uma forma de se conectar a si e promover melhores ares. Faz cinco anos que ele é adepto do ASMR, mas recorda ter tido a primeira experiência na área bem antes. “Estava no cursinho quando ouvi falar de ‘áudios multidimensionais’ que ajudavam no relaxamento corporal e na estabilização de estresse”.
Após conferir um vídeo recomendado no YouTube, o designer freelancer resolveu aderir à sugestão e nunca mais parou. Kelvin lida com insônia e vai dormir se sentindo mentalmente esgotado, logo o conteúdo de ASMR acaba ajudando muito a relaxar.
“Acredito que me sinto mais calmo. De certa forma, me ajuda a entrar em um estado de ‘mind blank’ – expressão em inglês para ‘mente em branco’. Para mim, que sou concurseiro e passo o dia estudando e retendo conteúdo, é importante esse desligamento mental, porque sei que essa sobrecarga de estresse e pressão reflete diretamente no meu corpo. O ASMR me ajuda a drenar isso”, dimensiona.
Apesar de não ser adepto de plataformas sobre o assunto, ele costuma acompanhar com frequência alguns canais no YouTube. Dentre eles, o já citado “Sweet Carol”, “Sabrina ASMR” e “ASMR Lá Nas Alturas”. O motivo da tamanha adesão do público parece ser claro para o designer: está cada vez mais difícil nos desconectarmos do celular antes de dormir. Logo, essa forma de entretenimento pode ser um passo inicial de escape e relaxamento para quem não consegue simplesmente deixar o aparelho de lado e ir deitar.
“Possivelmente é uma forma de vivenciar os tempos atuais de muita pressão e estresse ocasionados principalmente em decorrência da pandemia”, percebe. “Costumo assistir ASMR somente antes de dormir, e pra mim todo o meu dia seguinte se define a partir de uma boa noite de sono. Então, acredito que os benefícios com certeza se interligam a aspectos psicológicos e físicos também”.
Atualmente residindo na Irlanda, Kelvin diz que, por lá, a prática já é conhecida e tem ganhado força – apesar de achar que, no Brasil, ela seja bem mais difundida. Para ele, trata-se de amar ou repudiar a técnica. “Mas até pra emitir opinião sobre algo você realmente tem que conhecer antes. Então, acredito que é importante, de uma maneira geral, que todos possam ter acesso à prática. Os efeitos têm se demonstrado positivos, inclusive do ponto de vista científico”, conclui.