Farofa da Gkay e influenciadores do consumo: “não há nada de espontâneo, mas muito de estratégia", diz pesquisadora
Estudiosos da Comunicação refletem sobre a monetização do “eu” na vida dos influencers e as táticas de marketing da festa que movimentou a internet
A essa altura da semana, você provavelmente já sabe quem é Gkay e é capaz de listar os “melhores momentos” da festa de aniversário dessa atriz e influenciadora digital paraibana. Afinal, durante três dias, ela reuniu, em um hotel de Fortaleza, o maior número de influencers por metro quadrado, e, se você tem rede social, algum conteúdo chegou por aí.
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Não tem problema (e talvez até ajude) se até domingo passado a aniversariante e os convidados eram os “famosos quem?” para muita gente. A estratégia de marketing da “farofa” deu certo e é sobre isso que estudiosos da Comunicação nos convidam a refletir.
“O importante é entender que não há nada de espontâneo nisso, mas muito de estratégia e mensuração”, analisa Simone Faustino, 35, jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, onde pesquisa influência digital e autoestima adolescente.
A pesquisadora lembra que os influenciadores têm uma equipe por trás, promovendo continuamente análises que vão desde as mais simples (como a contagem de likes, dislikes, comentários, compartilhamentos e posts salvos), até mais complexas, a exemplo das taxas de conversão ou compra geradas para as marcas após postagens publieditoriais.
“A taxa de engajamento – que mostra a quantidade ou o percentual de pessoas que interagiram com determinado conteúdo após sua postagem – é um índice importante para fazer com que novas pessoas procurem pelos influenciadores para segui-los e que novas marcas os contactem para contratá-los. É isso que faz a roda girar”, observa.
Logo, se você deu sua curtida para Gkay e a turma da farofa, reforçou o poder de mobilização dessas webcelebridades, como explica Jeimes Alencar, 45, professor e coordenador dos cursos de Marketing da Unifor.
“Eles praticamente criaram um reality show no próprio evento, em que tudo que acontecia era transmitido por meio de lives e postagens. Fizeram uma série de ações de marketing, uma forma de trazer a imprensa e a sociedade como um todo para os digitais influencers, para mostrar a força que eles têm como poder de marca”, entende.
O “eu” como negócio
Ainda que algumas pessoas custem a entender esses fenômenos virais, que parecem ter se tornado famosos da noite para o dia, o percurso de parte deles não é tão rápido assim. A própria Gkay já vinha amadurecendo produções para internet desde 2013, primeiro como humorista, depois como atriz e influenciadora digital - agora com 17 milhões de seguidores no Instagram, quase 2 milhões obtidos só essa semana.
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A pesquisadora Simone Faustino recupera o conceito de celebridade pré-internet para entender diante do que estamos agora.
“(Antes) Estava mais ligada ao arquétipo do herói, celebrado na Idade Antiga e ligado a sujeitos que se destacavam pelos seus feitos, pela fama criada por grandes feitos, por ser uma grande pessoa. Elas geravam admiração e até fomentavam relações afetivas e de consumo, mas costumavam ser pouco tangíveis para o público”, diz.
Hoje, porém, nesse cenário de mercantilização da imagem dominado por mídias como o Instagram, o YouTube e o TikTok, Faustino admite a ascensão de outro tipo de figura pública.
“São pessoas que constroem a si não mais como somente formadoras de opinião, mas enquanto marcas, extrapolando os limites das relações que ocorrem no meio digital. A gente vive o chamado capitalismo de plataforma, que favorece um modelo de negócio onde as pessoas monetizam a si mesmas, seus cotidianos e seus gostos para gerar menções, engajamento e negociar publicidade. Alguns autores chegam até a falar que os tempos atuais transformaram o ‘eu’ em uma commodity”, contextualiza.
Neste sentido, o professor Jeimes Alencar alerta também para uma falsa aproximação. “O digital influencer trabalha como símbolo. Às vezes, muito do que você gostaria de ser, muito do que você almeja, está ali. E o seguidor se identifica, mas, às vezes, está diante de uma falsa relação. Nem sempre é tudo cem por cento verdadeiro, né?”, provoca.
Ética e consumo
No jogo de realidade e aparência, um princípio ético pouco respeitado é o da sinalização objetiva do que é publicidade. “Sem separação entre o que se diz porque acredita e o que se diz porque houve pagamento, o público fica confuso e pode engolir tudo como verdade”, expõe Faustino.
De acordo com a pesquisadora, eventos como a Farofa da Gkay vendem cotas de patrocínio para grandes marcas, fazem parcerias com inúmeros fornecedores - que incluem decoradores, estilistas, buffets e, mais recentemente, laboratórios que fazem testagem de convidados para a Covid-19 - e pagam caro por postagens em perfis de fofocas, alguns com milhões de seguidores, que chegam a cobrar de 20 a 80 mil reais por menção no feed.
“Tudo nesse universo de superexposição é monetizado, desde a indicação do produtinho de skincare até os lugares onde eles comem e as viagens que fazem. Um exemplo: nunca se vendeu tantos pacotes para as Ilhas Maldivas, mesmo com a desvalorização enorme do real. Por quê? É lá que os influencers estão casando, passando lua de mel, fazendo fotos para serem imitadas. A vida perfeita vendida por eles gera nas pessoas o desejo da mímese, que é a imitação”, analisa.
Ainda segundo Faustino, muitos webfamosos têm noção de storytelling, um universo de técnicas para contar histórias de maneira marcante, usando elementos capazes de conectar o espectador em nível emocional. “Quando vemos, estamos com o cartão de crédito na mão”.
E assim, enquanto nos entretemos com a pegação de uns e a separação ou a reconciliação de outros, os valores de consumo vão dando conta do recado.
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“Naquele momento, as pessoas simplesmente deixam de se preocupar com outros assuntos do dia a dia: gasolina, preço de cesta básica e tudo mais, e focam na questão do consumo. Então, qual é o vestido que a influencer tal está usando? Qual o valor que foi gasto para pagar, por exemplo, um buffet ou almoço. E isso é muito divulgado por eles, inclusive o tempo todo”, pontua Jeimes Alencar sobre os R$2,8 milhões de investimento da Gkay, que provavelmente já retornaram para ela.
Seguir ou não seguir?
Ok, se você chegou até aqui, talvez esteja se perguntando se quer ou não fazer essa roda girar. A primeira recomendação de Faustino é tomar cuidado para não seguir alguém apenas pelo medo de estar perdendo algo, síndrome mais conhecida como FoMO, "fear of missing out".
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Depois, a pesquisadora reforça a importância de não perder de vista o ecossistema da internet como um cenário muito rico para a discussão de riscos e oportunidades. “Podemos debater muitas coisas, como padrões de beleza, pornografia de vingança, discurso de ódio e a responsabilidade dos influenciadores nesse contexto, pois há, sim, muita gente que se espelha neles”, ressalta.
A própria pandemia, a responsabilidade com o coletivo, o combate ao negacionismo científico e todas as questões sociais e legais envolvidas também devem estar no cerne dessa reflexão, segundo a estudiosa.
“As pessoas falam muito de fake news, mas, além de fake news, é bom a gente entender o que deve ser propagado ou não, ou quem eu devo seguir ou não. Então, criar esse filtro aí talvez seja um caminho melhor para se ter uma uma sociedade mais conectada, com mais sabedoria e conhecimento”.