Em exposições, Museu de Arte Contemporânea destaca relações entre natureza, corpo e territórios
Entre diálogos e especificidades, “Cansanção em Flor", "Trava Peste: linda quanto sol" e "Escuta Sensível das Plantas" estão em cartaz no Dragão do Mar
Sol, plantas, flor. Uruburetama, Maracanaú, Cariri cearense. Com elementos que ora dialogam, ora se diferenciam entre si, três das exposições atualmente em cartaz no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC), equipamento do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), convidam o público a travessias por vivências e territórios descentralizados.
O panorama destacado é de mostras que vêm como frutos da convocatória Cena Ocupa, de ocupação de espaços do Dragão do Mar: "Trava da Peste: linda quanto sol", de Isadora Ravena; "Escuta Sensível das Plantas", de Lyz Vedra, ambas com curadoria de Lucas Dilacerda; e "Cansanção em Flor", coletiva das artistas Dinha Fonsêca, Andréa Sobolive, Williana Silva, Maria Macêdo e Eliana Amorim, as duas últimas também curadoras.
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“Outras centralidades”
As três mostras são de artistas de fora da Capital. Além deste ponto em comum, destacam relações entre natureza e corpo, ainda que partam de aspectos e pontos de vista próprios.
“Quando a gente tem três exposições no mesmo espaço, é inevitável produzir diálogos, harmônicos ou não, e isso de fato é importante. As três trazem noções, percepções, obras que discutem ecologia, mas de lugares bem diferentes”, aponta Isadora Ravena.
“A gente encontra pontos de conversa a partir de diferenças nas vivências da gente”, ecoa Lyz Vedra. “Trazemos para as exposições nossas experiências. De alguma forma, a gente faz uma espécie de mapeamento de vivências nesse território tão extenso que é o Ceará”, avança a artista.
Maria Macêdo destaca a abertura do MAC a essas diversidades, ressaltando a “importância de editais de chamamento público como uma política efetiva de democratização e descentralização dos acessos”.
Em diálogo, Eliana Amorim sustenta: “Estarmos ocupando simultaneamente um museu de arte contemporânea na Capital do Estado, sendo artistas de outras territorialidades, aponta a necessidade que já estamos cansadas de repetir sobre a visibilização de outras centralidades”.
A ocupação por parte de “artistas que não vivem a Capital ou que vivem também o Interior, fazendo esse cruzamento”, como descreve Isadora, reverbera experiências distintas no espaço. “A gente tem diversas manifestações de artistas que vão corroer, trazer visões não tão encharcadas pelos mesmos problemas”, avalia.
Gestora do MAC, a curadora e pesquisadora Cecília Bedê compartilha que a seleção das três exposições pelo Cena Ocupa não ocorreu por um recorte específico de descentralização geográfica, mas que o fato é consequência natural de ações da própria instituição.
“Existe essa intençã. A gente tem tentado trabalhar essa descentralização em todas as ações, não só exposições. Ainda que isso não tenha sido nesse momento um critério, a instituição enxerga que a atuação dela precisa pensar o Estado”
“São exposições que têm a presença de outras territorialidades não só pelas artistas serem de fora de Fortaleza, mas também por trazerem informações, dados, simbologias ligadas à terra, clima, natureza, matéria-prima, ervas medicinais, costumes, tradições e, ao mesmo tempo, à desconstrução de estereótipos desses locais”, avança a gestora.
“Linda quanto sol”
“Trava da Peste: linda quanto sol”, de Isadora Ravena, abarca a transmutação do corpo e da natureza, aproximando temas como ecologia, espiritualidade e gênero.
“A perspectiva é de um olhar para a ecologia que se dá no tensionar de dualismos que atravessam a história, como as noções de artificial e natural. A exposição tem uma percepção de natureza que corrompe essa dualidade”, apresenta a artista.
Isso se dá, por exemplo, em elementos como a gilete. O objeto cortante é descrito por Isadora como “símbolo do perigo da travestilidade na década de 1980”, quando surgiu a prática de travestis “guardarem” lâminas na gengiva ou língua.
“Ela passa a fazer parte do corpo travesti, dá o status tanto de ser perigosa quanto de ser vítima do perigo. Essa duplicidade, na verdade, é a criação de um novo órgão”, reflete.
A transmutação e a criação de outras formas de vida experienciadas nos corpos travestis, relaciona a artista, espelha mudanças da natureza. “O humano pensa que ele a destrói quando, na verdade, ela está em constante mutação”, aponta.
“O que vai deixar de existir não é a Terra, a natureza, mas o próprio humano e os modos de existência que criou para si, que são falidos”, avança, seguindo: “‘Linda quanto sol’ está mais próxima desse lugar de aprender com outras espécies a construir formas de habitar o planeta”.
Outro destaque é a noção de ancestralidade trans, na instalação que “invoca”, como prefere Isadora, a artista Márcia Mendonça (1949-1998), nascida em Limoeiro do Norte. “Ao longo da sua trajetória e a partir de suas travessias, vai tendo acesso a lugares que, de primeiro modo, não são imaginados aos nossos corpos”, contextualiza.
Um destes acessos é à arte sacra: a cearense assina obras em pintura e escultura não somente no Ceará, mas fora do Brasil. “Aí você pergunta: quem conhece a Márcia? Nem as travestis, nem as de Limoeiro do Norte! Não é falta de querer, mas uma condição histórica de falta de acesso às histórias das nossas”, elabora.
“Escuta sensível das plantas”
Da quentura do sol, o passo seguinte é em direção ao contato, inclusive direto, com a terra. Em “Escuta sensível das plantas”, Lyz Vedra compartilha com o público obras criadas por ela que partem de uma pesquisa em dança e “ecoperformance”.
Graduada em Dança pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e, atualmente, mestranda vinculada ao Programa de Pós-graduação em Artes (PPGArtes) na mesma instituição, a artista propõe uma abordagem sensorial que entrelaça a “corporeidade travesti” à “corporeidade vegetal”.
“O corpo, para mim, é a plataforma da própria obra. É no corpo, é a partir e com ele, nessa relação com ele, que eu passo a criar”, compartilha a artista. Na maior parte das obras, seja em vídeo, fotografia ou desenho, o gesto criativo evidencia a proximidade do corpo humano com plantas.
O próprio espaço da exposição, Lyz ressalta, convida o público presente para acessá-la por disparadores comuns aos da própria criação. “É para que ela não seja apenas estática, mas funcione como um espaço de criação. Toda a criação que o público pode estar acessando aqui vem a partir da experimentação do corpo”, aponta.
Em uma das salas expositivas, há uma faixa de terra no chão por toda a extensão das paredes. No centro dela, um monte de terra maior convida o público a se descalçar e acessar uma estrutura onde elementos da natureza estão colocados dentro de um tecido marrom, prontos para serem explorados.
“A exposição é sensorial também como uma tentativa de trazer essa característica para o visitante, que é experimentar a pesquisa e as obras”, resume Lyz.
“A gente quer trazer uma proposta que não mantenha essa perspectiva de disposição de artes visuais apenas para olhar, mas para fazer, também. Que esse espaço seja um espaço de modos de fazer”, convida a artista.
“Cansanção em Flor”
Da planta, vem, então, a flor. Com ela, e ainda outras ervas e elementos da natureza, se achegam também uma série de conhecimentos e tradições que reverberam a ancestralidade.
O mote central de “Cansanção em Flor”, como explica a artista e curadora Maria Macêdo, é “o ecossistema da Chapada Nacional do Araripe e Floresta Nacional do Araripe como principais agentes de manutenção da vida, riqueza natural, cultural, histórica e geográfica”.
“Um território sagrado que carrega em seu nome a demarcação da existência e resistência dos povos kariris, que apesar do etnocídio seguem vivos/as e travando movimentos de retomada muito importantes e preciosos articulando diversos municípios”, define Maria.
A região é marcada por “potência hídrica, fauna e flora”, “importantes registros geológicos do período cretáceo” e “riqueza paleontológica”, além de “expressões/celebrações da cultura imaterial, os saberes e fazeres dos mestres e mestras da Cultura no Cariri, e toda a sua bioetnodiversidade”, lista.
A imbricação entre as riquezas da natureza e as sabedorias ancestrais se faz presente. No território, “secularmente são mães que alimentam e geram poderes curativos para aqueles e aquelas que conhecem o segredo da terra e a importância de saberem manipular a sabedoria da mata, oferecendo alimento e sustento por meio do comércio”.
“É desse lugar que nos alimentamos através do saber-viver e convivência cotidiana com mezinheiras, benzedeiras, curandeiras, educadoras e agricultoras-brincantes”, avança Maria. Esses aspectos são ressaltados nas obras, que acentuam o poder das ervas e dos ensinamentos das avós.
“O manejo, cultivo e cuidado com as vidas não humanas como elemento propulsor para a invenção de mundos é o foco central desta exposição”, resume a artista.
“Propomos um redirecionamento do olhar para as outras formas de pensar e produzir arte para além das questões da urbes, onde vida e natureza se fundem e criam novas formas de existir a partir das técnicas, conceitos, processos e procedimentos artísticos evocados”
Mais no MAC
Além das três exposições do Cena Ocupa, o Museu de Arte Contemporânea do Ceará acolhe a exposição "Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade”, com curadoria de Ana Aline Furtado e Cícera Barbosa. "Parceria como o Museu do Ceará, ela surge a partir de um debate entre os dois equipamentos sobre a data Magna, que é o dia 25 de Março, aqui no Ceará", explica Cecília Bedê.
Contando com obras do acervo do Museu do Ceará e obras de artistas contemporâneos do Estado, como Adriana Clemente, Alexia Ferreira, Blecaute, Cecília Calaça, Clébson Francisco e Paula Trojany, a exposição ressalta a história da resistência negra no Ceará ao destacar figuras como mulheres que lutaram em abolicionistas, mas foram apagadas da narrativa oficial.
Exposições “Cansanção em Flor", "Trava Peste: linda quanto sol" e "Escuta Sensível das Plantas"
Quando: em cartaz até 28 de julho
Visitação: de quarta a sexta, das 9h às 18 horas, e aos finais de semana e feriados, de 13h às 18 horas (acesso sempre até 17h30);
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará, no Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
Entrada gratuita.
Mais informações: (85) 3488-8622 ou pelo Instagram @macdragao