Dragão do Mar: de comunidades a bares, “política de vizinhança” é aposta para revitalizar território
Trajetória de 25 anos do Dragão do Mar envolve momentos de diferentes níveis e formas de ocupação
Um espaço cultural é construído tanto pelos diferentes agentes que por ali circulam quanto por aqueles com quem divide território. A vizinhança do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), por exemplo, na Praia de Iracema, inclui moradores das comunidades adjacentes, empreendimentos comerciais dos arredores, pessoas em situação de vulnerabilidade e também comerciantes informais.
A partir dos 25 anos do centro cultural, o Verso conversou com diferentes agentes do território no qual ele está inserido desde 1999 para traçar um panorama histórico dos movimentos de ocupação do local, lançar luz em ações atualmente realizadas que têm foco neste debate e destacar a importância da atuação conjunta em prol da revitalização da região. Esta é a segunda matéria de uma série de três, veiculadas até o aniversário do equipamento no domingo (28).
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Da atual gestora, a superintendente Helena Barbosa, ao idealizador do centro, o antropólogo e professor Paulo Linhares, passando pela vendedora ambulante Christiane Braga e o empresário Darlivan Cardoso, diferentes memórias e pontos de vista compartilhados com a reportagem auxiliam na construção desse panorama.
O Dragão do Mar foi pensado diretamente ligado a experiências formativas durante o Governo Ciro Gomes por Paulo, então secretário da Cultura do Ceará, ainda no início dos anos 1990.
Em entrevista por telefone ao Verso, o antropólogo explica que a busca na época era por instalar o projeto em uma região da cidade na qual haveria “a questão de uma centralidade, comunicação com o Centro, e a de um espaço de convivência de peso histórico, como a Praia de Iracema”.
Entre as opções, havia desde a área na 10ª Região Militar à infraestrutura onde hoje funciona o equipamento Porto Dragão, na rua Boris. As atenções se voltaram, então, aos imóveis e espaços que o centro cultural ocupa atualmente.
Na época, eles abrigavam bares como Coração Materno e Besame Mucho e a antiga Superintendência de Obras do Estado do Ceará. O projeto arquitetônico foi proposto pelos arquitetos cearenses Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo. “Aquela não era uma área como se imagina hoje, de muita coisa, não, ainda estava muito rara a infraestrutura urbana ali”, aponta.
Primeiros anos
A instalação do centro cultural, naturalmente, impactou diretamente a região. “No início da década de 2000, o entorno do Centro Dragão do Mar estava tomado por bares, restaurantes e boates”, escreve a pesquisadora Roselane Gomes Bezerra na tese "O bairro Praia de Iracema entre o ‘adeus’ e a ‘boemia’: usos, apropriações e representações de um espaço urbano” (2008).
Uma testemunha deste movimento foi a vendedora ambulante Christiane Braga. Moradora do Poço da Draga desde o início dos anos 2000, ela trabalha há mais de 20 anos vendendo bebidas e coqueteis principalmente nos arredores do Dragão do Mar.
“No começo, eu trabalhava em frente ao Órbita (atuante entre 1999 e 2020) na época já funcionava ali. Tinha depois o Hey Ho (que abriu em 2003 e fechou em 2010), logo no começo da José Avelino, o Reggae Club (inaugurado em 2007). Era muita lotação, não passava ônibus, carro”, lembra a vendedora, que também aproveitava ser vizinha do centro cultural para aproveitar o cinema e os museus.
"Sociabilidade urbana"
Mais ou menos na mesma época relembrada por Christiane, a então adolescente Helena Barbosa, por volta de 14 anos, via o Dragão do Mar com um olhar interessado, mas distanciado.
“Frequentava os espaços externos, mas sem entender o serviço ofertado. Era distante, o máximo a que se chegava era sentar no espelho d'água, ter uma foto na passarela, relações que se tem principalmente por ele ser ‘misturado’ com a rua, então a gente acabava passando”
Em entrevista concedida em 1998 à pesquisadora Linda Gondim, autora do livro “O Dragão do Mar e a Fortaleza pós-moderna: cultura, patrimônio e imagem da cidade”, o arquiteto Fausto Nilo definiu o Dragão do Mar como “um edifício urbano”, “meio rua”.
Quando começou a se envolver diretamente com a atuação cultural, por volta dos 18 anos, como estudante da Vila das Artes e produtora de festivais, mudou a relação. “Vinha pra cá de outra forma, ela acabou se aprofundando. Ia ao cinema, shows, bares ao redor, nessa relação do Dragão como mobilizador de todo esse circuito”, considera.
Anos depois, com o acúmulo de experiências na área, de gestão à produção, assumiu a gerência de Ação Cultural do CDMAC em 2017. Da época, Helena elenca diálogos que eram promovidos com os bares e boates ao redor e também com as comunidades.
“Havia conversas para incluir as casas de shows nas Malocas, festivais, e com a comunidade sempre houve ações mais pontuais, em especial com o Poço da Draga. Sempre se optou por contratar gente de lá, mas também se tentava estender as ações”, diz, citando o palco Draga Dragão, principal da Maloca de 2017, que era na comunidade.
Também gestor do Dragão do Mar — entre 2012 e 2019 —, Paulo Linhares aponta que, na estrutura das decisões, inclusive políticas, há “grande dificuldade de incluir, nos projetos de cultura que são transformadores de espaços urbanos, políticas de inclusão e participação das populações”. “O Dragão sempre foi um espaço revolucionário no sentido da convivência das pessoas, um fenômeno urbano de democratização e de convivência social, de sociabilidade urbana”, defende.
Impactos da pandemia
Ao passo que Helena começa a atuar no equipamento, o empresário paraense Darlivan Cardoso se mudava para Fortaleza. “Vim morar aqui em 2017 e o primeiro point que comecei a frequentar e me sentir acolhido era o Dragão do Mar e as boates ao redor”, compartilha.
Ele é um dos sócios da Kosmika Club, boate que abriu em maio de 2022 no casarão onde por mais de 20 anos funcionou o Órbita Bar. O antigo negócio encerrou as atividades no local ainda início da pandemia e não conseguiu retornar.
“Depois que teve a pandemia, ali morreu total. As boates, tudinho, fechadas. Ficou muito abandonada a parte da frente, a praça. O público vê abandono e fica com medo de frequentar”, observa a vendedora ambulante Christiane Braga, se referindo à Praça Almirante Saldanha — ponto central no debate de território tanto pela necessidade evidente de ações de manutenção, quanto pelo descompasso entre Prefeitura e Governo quanto à posse do logradouro.
Apesar do cenário recente delicado, a aposta de Darlivan e dos então sócios foi a de se somar à reocupação da região. “Quando saiu matéria (sobre o aluguel do casarão onde funcionava o Órbita, no fim de 2021), como empresário e investidor, achei interessante investir no negócio. Na época, estava saindo da pandemia e o pessoal estava ansioso para festas”, contextualiza, ressaltando: “Como empresário e como público do Dragão. Investi por ser público de lá”.
O cenário vivenciado por Darlivan ao longo dos anos, no entanto, é descrito por ele como “de abandono”. “A gente vê o equipamento e a região descuidadas, as boates fechando ao redor. Toda vez que surge uma notícia de uma casa em torno do Dragão fechando, dói no coração e a gente fica com medo, é uma insegurança”, afirma.
Política de vizinhança
Mais de 20 anos de histórias, demandas, questões e ações já se somavam quando, em janeiro de 2023, Helena Barbosa assumiu o papel de superintendente do Dragão do Mar. Um dos focos da gestão dela à frente do centro cultural é a busca por uma “gestão territorializada” a partir de uma “política de vizinhança”.
A principal ação voltada ao tema até aqui foi a criação do Núcleo de Articulação Territorial (NAT), que completa um ano neste mês. A partir dele, houve um trabalho de conexão com as comunidades vizinhas, pessoas em situação de rua e empresários da região, além de parceiros comunitários e institucionais que atuam em rede.
O núcleo funciona a partir de três eixos: Cultura e Território; Cultura e Direitos Humanos; e Cultura e Negócios. “A gente conseguiu construir programas com entrega de atividades e previsão orçamentária. Ele ganha estrutura e corpo, a gente tem um chão mais consolidado”, afirma Helena.
pessoas foram atingidas nas ações socioculturais do NAT realizadas no 1º ano de atuação do núcleo
Neste primeiro ano de atuação, o NAT efetivou aproximação e fortalecimento de vínculo, por exemplo, com as comunidades, movimento que resultou na criação do Programa de Gratuidade para as Comunidades Vizinhas, de acesso a ações culturais em espaços do CDMAC voltado a moradores do Poço da Draga, Moura Brasil e Graviola.
Darlivan aponta o diálogo existente para a promoção da programação de 25 anos de aniversário do Dragão do Mar, mas destaca a importância de “fazer eventos para atrair público” para além de momentos pontuais. Ele também defende que proprietários de imóveis desocupados ao redor sejam contactados para que os espaços ganhem função.
Neste sentido, o Dragão do Mar lança o “Esquenta Dragão”, parceria com boates vizinhas, nesta terça (30): o centro cultural irá promover programação musical gratuita a partir das 18 horas na área externa, com a festa seguindo na área interna das casas.
“A gente tem tentado há um ano e nossa última conquista foi fazer com que as casas de shows vissem nessa relação, aproximação, um ponto de fortalecimento para o território”, celebra Helena.
Além disso, o NAT realizou um mapeamento de “agentes jurídicos e indivíduos” que ocupam os territórios circunvizinhos do Dragão do Mar, listando os imóveis ocupados e desocupados nas ruas Dragão do Mar, José Avelino, Almirante Jaceguai, Almirante Barroso/Pessoa Anta, Boris e av. Almirante Tamandaré.
dos 80 espaços mapeados pelo NAT estão desocupados
Em ações voltadas à população em situação de rua, houve atuação em assistência social, cidadania cultural e saúde, com atendimentos e encaminhamentos para rede de proteção social.
Estão previstos, ainda, programas para apresentação de artistas de rua e em situação de rua e ações de difusão e fruição que não apenas levem as comunidades ao Dragão do Mar, mas ele às comunidades.
“Foram germinadas nas gestões anteriores provocações de como se conectar com as casas, comunidades, e nessa gestão a gente já aprofundou esse plantio no sentido de como consolidar essa relação e ter ações mais permanentes”, aponta Helena.
Diferentes ocupações geram vida diurna e noturna
As políticas pensadas e efetivadas no atual momento do Dragão do Mar são descritas pela superintendente como “de vizinhança”, em uma proposição de equiparar as importâncias dos agentes envolvidos. “É todo mundo vizinho pensando em uma política comum”, resume.
“Não é só uma questão de ganhar dinheiro com o negócio, de empreendedorismo, mas é de que vem faltando atenção pública da Prefeitura, do Governo do Estado e dos órgãos que são responsáveis por aquela parte”, lembra Darlivan Cardoso.
“Quando o Dragão está na sua potência máxima, ele se articula e consegue dar um mix de vitalidade para o território ali que funciona”, analisa, em diálogo, Paulo Linhares. A visão é refletida nas observações da vendedora ambulante Christiane Braga.
“Onde tem eventos, o pessoal vai. Esse ano teve (o bloco) Chão da Praça, pré-carnaval, e deu uma galera. Quando tem evento, festa na Praça Verde, lota, mas quando não tem, fica um movimento normal, não a lotação de antigamente, porque caiu muito”, opina. “Ali chama público, muita gente passeia, mas também o Dragão do Mar tem horário, 22 horas fecha, aí fica o público mesmo dos barzinhos, mas está difícil”, segue a comerciante.
Em relação aos usos do território, Paulo lembra da necessidade de diferentes ocupações ao longo do dia. “Fausto (Nilo) adora uma frase que diz mais ou menos ‘é preciso ter o carrinho do bebê e o cara saindo da boate’. Em outras palavras, vida noturna e vida diurna. Se só tem noturna, a tendência é não dar certo. Para a diurna, tem que ter escola, atividades, gente vivendo de dia ali. Essa plenitude, equilíbrio, depende de muitas variáveis”, ressalta.
Questionada sobre o papel do Dragão neste complexo contexto, Helena reconhece um início “complicado”, porque havia indefinição dos limites das responsabilidades entre os entes.
“Enquanto equipamento de ação cultural, tenho por missão fazer entrega de serviço no campo da cultura e da arte. Para que isso aconteça, eu preciso de uma rede de apoio. A gente construiu ela, pensou instrumentais”, aponta.
“(A linha) é muito tênue, mas a gente está muito mais seguro dela, para que essas fronteiras existam não no sentido de divisão, mas de esclarecimento de papeis, para que a rede inteira se comprometa nesse plano de cuidado”, segue a gestora.
“O Dragão provocou um plano de cuidado, mas houve um processo de maturação que se transformou em política, diretriz, eixo e em programas onde cada um dessa rede tem um papel”, reforça. “Quando eu falo de território, não entro, permaneço e trago resultados se não estiver com essa rede, que envolve outras políticas: infraestrutura, assistência social, direitos humanos, segurança pública, saúde. Entra todo mundo”, defende Helena.