Dragão do Mar 25 anos: entenda papel do equipamento na formação de plateia para artistas cearenses

Na primeira reportagem da série que conecta o passado ao futuro do Dragão, artistas e gestão avaliam impactos do espaço na cena cultural do Estado

Escrito por Ana Beatriz Caldas , beatriz.caldas@svm.com.br
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura completa 25 anos em 2024
Legenda: Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura completa 25 anos em 2024
Foto: Ismael Soares

Criado em 1999 com o intuito de se tornar o primeiro grande complexo de formação e difusão cultural no Ceará, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) completa, neste domingo (28), a marca de 25 anos em atividade ininterrupta. Nesse período, a gestão estima que mais de 26 milhões de visitantes foram beneficiados por ações de música, cinema, artes visuais, dança, teatro e mais expressões.  

Essa conexão entre artistas e público tem se configurado como uma das principais contribuições do Dragão do Mar: por meio dos vários equipamentos que compõem o centro cultural, o espaço desponta como importante formador de plateia, tanto para artistas do Ceará quanto para artistas de outros estados que se apresentam por aqui. 

A partir desta sexta-feira (26), o Verso publica uma série de três reportagens sobre os diversos eixos de atuação do Dragão do Mar, os desafios que ele ainda encontra e alguns dos principais marcos históricos do espaço cultural. Os textos buscam dimensionar a relação do equipamento cultural com os artistas, o território e a história de Fortaleza e do Ceará. 

Muitos dos artistas “de fora” que encontraram no local um importante mediador com o público cearense também vivenciaram diversas etapas da história do equipamento. Um dos que simboliza a relevância dessa troca cultural é o pernambucano Otto, que já apresentou boa parte do repertório de seus sete discos de estúdio no Dragão, além de shows especiais, como uma apresentação em homenagem ao rei do brega Reginaldo Rossi

Último show de Otto no Dragão, em julho de 2023, lotou o anfiteatro
Legenda: Último show de Otto no Dragão, em julho de 2023, lotou o anfiteatro
Foto: Marinho Jr.

“Foram várias apresentações que fiz na minha vida, sempre com muita alegria, celebração e felicidade. O Dragão do Mar faz parte da música brasileira e já carrega a identidade cultural do Ceará”, destaca o artista, que afirma que o espaço é “uma das melhores casas do Brasil”. 

Apesar do grande número de apresentações e festivais com artistas de alcance regional, nacional e internacional, é no cenário local que a proposta inicial do CDMAC se impõe, como política pública cultural que movimenta a economia criativa do Estado e possibilita que artistas da terra formem e se aproximem de seu público. 

Artista e professora de dança, Wilemara se apresenta no Dragão do Mar desde o início dos anos 2000
Legenda: Artista e professora de dança, Wilemara se apresenta no Dragão do Mar desde o início dos anos 2000
Foto: Luiz Alves

A professora e bailarina Wilemara Barros é uma das artistas cearenses que viu esse movimento acontecer desde o início. “Eu arrisco até dizer que eu inaugurei aquele lugar”, brinca. “Habito o Dragão desde 1999 e ali vivi momentos de muitos afetos e encontros. Tive a oportunidade de me apresentar não só no teatro, mas também na Praça Verde, no museu, sob a passarela, embaixo do Planetário, no Espaço Mix e pelas ruas do entorno”, afirma.

Um dos projetos do Dragão que marcou a carreira de Wilemara foi o “Quinta com Dança”, que vendia ingressos para apresentações artísticas por R$ 1. “Ele teve um impacto e contribuiu diretamente para a formação de plateia de dança na cidade. Foi muito importante na minha formação, porque nesse projeto eu me apresentava quase todas as semanas, com trabalhos bem diversos”, destaca.

Assim como Wilemara, outros artistas cearenses que hoje se apresentam em diversos outros palcos pelo Estado e pelo País tiveram o início de suas carreiras vinculado às possibilidades criadas pelos palcos do Dragão do Mar. 

Exemplo disso é o grupo Selvagens à Procura de Lei, que começou a se apresentar no equipamento e nos bares do entorno em 2010 e, desde então, realizou diversos shows que reuniram multidões na Praia de Iracema. A banda, aliás, foi “figurinha carimbada” das primeiras edições do festival Maloca Dragão, lembra o vocalista Gabriel Aragão.

“Depois disso, culminou no auge do nosso relacionamento com o Dragão do Mar, que foi a gravação do nosso primeiro disco ao vivo, o Ao Vivo na Maloca Dragão. Foi maravilhoso, de graça, tinha cerca de 20 mil pessoas na rua, estava lotado. É uma coisa que nunca vou esquecer na vida”, pontua.

Lorena Nunes em apresentação no Ponto.CE, festival que o Dragão sediava com frequência
Legenda: Lorena Nunes em apresentação no Ponto.CE, festival que o Dragão sediava com frequência
Foto: Iago Barreto/Divulgação

Um dos destaques da música contemporânea cearense, a cantora Lorena Nunes também começou a se apresentar no Dragão do Mar no início dos anos 2010, quando abriu um show de Luiz Melodia no Anfiteatro Sérgio Motta.

Foi também no anfiteatro que fez o show de lançamento de seu primeiro disco, Ouvi Dizer Que Lá Faz Sol (2014), e se emocionou ao ver o espaço lotado para prestigiar seu trabalho. “Imagina, né? Eu estava parindo meu primeiro filho”, brinca. "E foi lindo, lindo, lindo”. 

O segundo disco de Lorena, La Mar (2020), lançado na pandemia, também foi apresentado ao público pela primeira vez no Dragão – mais uma vez, com a casa cheia. “[O Dragão] é realmente um palco muito importante, não é nem para escoar, mas para que haja uma amostra da produção artística cearense, porque não é um palco só da Capital”, pontua a cantora.

Salas de cinema e teatro dão fôlego à produção independente

Dois dos equipamentos que compõem o complexo do CDMAC, o Cinema do Dragão e o Teatro Dragão do Mar, se destacam em uma cidade em que a tradição dos cinemas de rua se perdeu e os teatros enfrentam dificuldade para continuar de pé. 

Conhecido por exibir filmes que costumam passar despercebidos pelas grandes redes de cinema, o Cinema do Dragão também recebe mostras e festivais que valorizam e impulsionam a arte independente e destacam debates relevantes por meio da sétima arte. 

Atividades do For Rainbow ocorrem no Dragão do Mar desde a 7ª edição do evento
Legenda: Atividades do For Rainbow ocorrem no Dragão do Mar desde a 7ª edição do evento
Foto: Divulgação

Realizado anualmente, o For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero ocorre há uma década no Dragão, pautando a visibilidade da população LGBTQIAP+ e realizando, além das mostras, oficinas e apresentações culturais.

A diretora executiva do festival, Verônica Guedes, afirma que ter chegado às salas do CDMAC possibilitou aumento de público e fortalecimento da programação do evento. Dentre os recordes de público durante o festival estão os filmes “Inferninho” (Pedro Diógenes e Guto Parente, 2019) e “A filha do palhaço” (Pedro Diógenes, 2022), ambos de artistas cearenses.

“O Cinema do Dragão é importantíssimo no fomento ao cinema brasileiro independente – aqueles filmes que os cinemas blockbusters recusam, mas que são fundamentais para a construção do audiovisual brasileiro”, ressalta Verônica.

Moisés Loureiro durante apresentação do espetáculo
Legenda: Moisés Loureiro durante apresentação do espetáculo "Deixemos de Coisa", no Teatro Dragão do Mar
Foto: Analice Diniz/Divulgação

Eventos como as mostras de cinema e teatro não contribuem apenas para formação de público, mas também para o surgimento de novos nomes na cena artística. O ator e humorista Moisés Loureiro, por exemplo, tinha apenas 8 anos quando foi ao Dragão do Mar pela primeira vez, para conhecer o planetário e o teatro – passeio que o encantou e deu início a um interesse pela arte.

"Minha cabeça mirim quase ‘papoca’ de tanta informação nova, foi amor à primeira vista", lembra o artista. Menos de uma década depois, Loureiro começaria a se apresentar no palco onde teve contato com as artes cênicas pela primeira vez e não pararia mais.

"Desde então nunca mais deixei de estar no Dragão, como trabalhador da cultura ou como público, tem sido um dos palcos mais importantes da minha vida", afirma. Mais recentemente, o artista lotou sessões com o espetáculo Deixemos de Coisa, que circulou pela Capital no ano passado.

“Eu ajoelho e agradeço todo dia que acordo e vejo que [o Dragão] ainda não virou uma farmácia”, brinca Moisés. “O Dragão é um espaço de resistência, é uma conquista do povo e não podemos abrir mão dela”.

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Desafios envolvem questões técnicas e políticas

Em meio a elogios e falas que destacam a relevância do Dragão do Mar enquanto um equipamento cultural público e diverso, os artistas cearenses também ressaltam que ainda há muito o que caminhar para que o espaço se fortaleça como política cultural permanente, trazendo benefícios a curto e longo prazo para artistas e, claro, para o público.

Alguns dos principais desafios citados pelos entrevistados são a necessidade de melhorias e modernizações em alguns dos equipamentos, como as salas de cinema e o teatro, e a ausência de ações políticas que tornem o entorno do Dragão do Mar mais seguro e, por consequência, mais movimentado.

Icônica passarela do Dragão do Mar é parte do projeto original de Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon
Legenda: Icônica passarela do Dragão do Mar é parte do projeto original de Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon
Foto: Ismael Soares

“Há alguns problemas estruturais que precisam ser resolvidos urgentemente. É muito chato quando a gente está no meio de uma mostra e tem que parar o filme porque algum equipamento deu tilt e a gente não sabe se vai conseguir resolver ou não”, comenta a cineasta e produtora Verônica Guedes.

Recentemente, a Sala 2 do cinema ficou fechada por cerca de dois meses para reforma, após um problema técnico em um servidor. O funcionamento foi normalizado no início deste mês. 

A necessidade de investimento em mais estrutura técnica e modernizações também é apontada por artistas que se apresentam no Teatro Dragão do Mar. O ator, dramaturgo e diretor Ricardo Guilherme explica que o túnel que dá acesso à sala de espetáculos, por exemplo, atrapalha a fruição entre espetáculo e público, por estar em um local privilegiado, no centro da plateia. "É uma área que deve ser usada não como passagem, mas sim como espaço para a comunicação interpessoal de que as artes cênicas necessitam", explica.

O humorista Moisés Loureiro também cita a necessidade de mais espaço para apresentações. “É preciso modernizar o teatro e abrir mais salas de apresentação para dar vazão aos tantos artistas que temos. É preciso muita coisa. Num tá ruim não, mas para ficar bom ainda tem que melhorar é muito”, brinca o humorista, que também pontua a preocupação com o entorno do centro cultural

As questões políticas que envolvem a falta de zelo com o entorno do Dragão do Mar foram a principal preocupação citada pelos artistas. Enquanto o equipamento é gerido em parceria entre o Instituto Dragão do Mar (IDM) e o Governo do Estado – também responsável pela segurança pública –, a Praça Almirante Saldanha, que circula o equipamento, é de responsabilidade da Prefeitura. 

Com a proximidade das eleições, essa realidade vem acirrando o debate sobre a revitalização da área, bem como a assistência social às pessoas em situação de vulnerabilidade que por ali circulam. 

“O entorno do Dragão está cada dia mais sucateado, cada dia mais perigoso de transitar. Não existe uma preocupação do poder público com relação à praça do entorno, aos espaços do entorno. Isso tem dificultado e diminuído o público do Dragão”, comenta a cineasta e produtora Verônica Guedes. “É lamentável, porque nós tínhamos ali um entorno cheio de vida e agora praticamente só tem mesmo o Centro Dragão do Mar”.

Moisés Loureiro reforça que o Dragão segue em funcionamento porque, a exemplo da cena cultural cearense, busca se reinventar em meio aos desafios. “O abandono do equipamento é nítido. Sobra dinheiro para novas empreitadas, como Estação das Artes e MIS, mas falta o básico em equipamentos históricos e importantíssimos como Dragão do Mar, Theatro José de Alencar e Teatro São José”, declara.

Outro desafio destacado pelos artistas é a necessidade de uma programação descentralizada, que foque mais em programação contínua que em grandes eventos pontuais. "Uma lógica que não está acontecendo agora, mas que já aconteceu, é a de condensar em grandes eventos uma verba que precisa ser diluída", afirma a cantora Lorena Nunes. 

"Acho que pode voltar a ter esse tipo de ação continuada, para que volte a ter uma formação de plateia e as pessoas voltem a ir pro Dragão e consumir o que quer que esteja acontecendo lá, mesmo que não conheçam. Porque é exatamente isso que faz o artista chegar a novos públicos", conclui.

Mais parcerias, novos formatos e volta da Maloca Dragão

Dragão do Mar deve focar em ações diluídas e retomar grandes eventos
Legenda: Dragão do Mar deve focar em ações diluídas e retomar grandes eventos
Foto: Ismael Soares

Em um processo de retomada após a pandemia, quando novas gestões assumiram o CDMAC e o IDM, o Dragão do Mar tem colocado em prática uma série de novas programações, a exemplo dos bailes e festas com DJs no Espaço Rogaciano Leite Filho. 

Mesmo em meio aos desafios, a superintendente do CDMAC, Helena Barbosa, avalia com otimismo as novidades e explica há um planejamento de ações preventivas para a manutenção da estrutura técnica, que pode evitar, por exemplo, a demora na aquisição de novos equipamentos.

Isso porque a captação de recursos e o próprio fornecimento dependem de uma logística complexa. "Existe todo um tempo da instituição e todo o tempo do trâmite de fornecimento, para se ter uma boa tecnologia não se qualifica e não se limita só aqui, se não seria até mais fácil, mas não é essa a realidade", conta.

Helena comenta que o Cinema do Dragão "irá ganhar uma força muito grande em 2024", por ter sido contemplado pela Lei Paulo Gustavo a nível municipal e estadual. Entre as novidades previstas está o retorno do projeto Percurso Curatorial, que realiza mostras especiais.

O fortalecimento do programa Cena Ocupa, de convocatória permanente, também tem sido uma prioridade para a gestão, bem como a realização de eventos em espaços já formatados, que exigem menos custo, como o anfiteatro.

Dessa forma, segundo Helena, uma programação contínua e descentralizada será o grande foco do Dragão nos próximos meses. Os grandes eventos, afirma a gestora, devem ficar para os projetos especiais do Dragão – como a possível volta da Maloca Dragão, o Carnaval e o projeto Férias no Dragão – e para cessões de espaço a parceiros, como o Festival Elos.

Não vou ficar colocando todo o dinheiro na Praça Verde para ficar com o anfiteatro cinco meses fechado. Isso para mim não faz sentido. A Praça Verde demanda muita energia e investimento, enquanto o anfiteatro já tem tudo montado. A gente economiza em estrutura e coloca em cachês, consegue colocar pra rodar. Essa é uma das nossas estratégias.
Helena Barbosa
superintendente do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

Segundo a presidente do Instituto Dragão do Mar (IDM), Rachel Gadelha, como o planejamento de novos eventos só pode ocorrer se houver captação de mais recursos, o instituto tem buscado novas fontes de financiamento, que vão além do orçamento disponibilizado pela Secretaria de Cultura do Estado (Secult-CE).

"A gente colocou o projeto da Maloca na Lei Rouanet, para fazer uma nova Maloca. Há perspectivas de retorno, mas ainda está em captação. Entramos também no edital da Petrobras para fazer uma grande exposição nos museus do Dragão”, explica. “Além disso, entramos com projetos que foram aprovados pelo Nubank e pelo Itaú Cultural para trazer mais recursos, novos shows, exposições e peças de teatro. E também participamos de um edital para incremento dos cinemas”, enumera.

Ainda segundo Rachel, os novos recursos devem aumentar o público e melhorar a estrutura não só do Centro Dragão do Mar, mas de todo o chamado “Parque Dragão”, formado pelo CDMC, Biblioteca Estadual do Ceará (BECE), Escola Porto Iracema das Artes e Hub Porto Dragão.

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