Drag Brunch Ceará: conheça evento para toda a família que traz novo fôlego à cena drag de Fortaleza
Ampliar o público da arte drag, com horário mais cedo do que nas casas noturnas, é objetivo do projeto que acontece uma vez por mês no Benfica
É fim de tarde de domingo e uma pequena fila começa a se formar perto em frente ao bar e restaurante É Sim Comer e Beber, no Benfica. Os espectadores chegam em duplas e pequenos grupos – alguns com leques coloridos nas mãos, a maioria com olhares curiosos – e têm idades variadas. Na porta, a hostess Heaven Clouds recebe os espectadores com simpatia e os leva às mesas, espalhadas por todo o térreo e primeiro andar da casa. Apesar de ser quase noite, mais uma edição do Drag Brunch Ceará está prestes a começar.
Novidade na cena artística de Fortaleza e o primeiro do gênero no Nordeste, o evento se inspira nos drag brunches internacionais, que ocorrem com frequência em diversas cidades dos Estados Unidos, como Las Vegas, Houston e Nashville, e também nos brasileiros, que começaram a ocorrer em São Paulo, Brasília e Porto Alegre nos últimos dois anos.
Tradicionalmente diurno, o formato teve o nome mantido no Ceará, mas ganhou novo horário para garantir o conforto térmico de clientes e artistas – que preferem evitar lidar com o combo maquiagem forte, perucas e looks pesados e performances enérgicas na hora mais quente do dia.
A ideia do formato é levar a arte drag a um público diferente do de boates e casas de show onde as artistas costumam se apresentar à noite. Os drag brunches costumam ocorrer durante o dia, em lugares amplos e acolhedores, com um menu especial de comes e bebes e programação dividida em blocos de apresentações – que passam por lipsyncs (dublagem), dança, canto, números de comédia e muito mais.
Idealizadora do projeto no Estado, a drag queen Alpha Killer conta que passou quatro meses estudando eventos de fora para começar a botar o de Fortaleza em prática. Junto à amiga e drag queen Supremmas, decidiu que era hora de descentralizar a cena drag na Capital – que basicamente ocorria entre o Dragão do Mar e o Valentina Club, no Centro – e entendeu que o É Sim tinha estrutura e localização ideais para acolher a proposta.
A nossa cena drag precisava de algo novo, porque estava muito fechada dentro de uma bolha e a gente já estava acostumada a um tipo só de trabalho, em um só local. E eu entendo que a minha arte não é só para um local, eu gosto de expandir.
Mesmo começando já no início da noite, a estratégia da dupla tem dado certo. Desde a primeira edição, em outubro do ano passado, o evento tem esgotado ingressos e atraído público diverso, de crianças a idosos, passando por casais, famílias e jovens que até acompanham a cena drag internacional, mas ainda não tinham tido a oportunidade de ver performances genuinamente cearenses.
Ganham todos: além de uma oportunidade única de conferir performances que antes ocorriam apenas nos clubes, de madrugada, a organização do Drag Brunch Ceará afirma que, com apresentações lotadas e apoio de patrocinadores, tem conseguido oferecer cachês melhores às performers – que, em boates e outros eventos, chegam a receber apenas entre R$ 70 e R$ 80 por apresentação, mesmo com o alto custo que têm com maquiagem, cabelo e figurino.
“Ser artista é muito caro, principalmente na nossa cidade, onde a gente não tem muitos recursos para fazer tudo acontecer", destaca Alpha Killer. "Os produtores às vezes fingem não entender que a gente é caro para se produzir, então eles pagam barato, e acho já tínhamos nos acostumado com nossa arte sendo desvalorizada”, completa.
Nas quatro edições do projeto, o line-up dos brunches contou com performances das idealizadoras, estrelas fixas do projeto, e outras grandes artistas da cena cearense, como Mulher Barbada, Deydianne Piaf, Mizzayra Alonzo e Ravenna. Além das performances, o público pode se deliciar com o menu do restaurante – e inclusive provar o exclusivo drink Supremmas, comercializado apenas durante as noites de Drag Brunch.
Em comum, as edições buscam explorar a diversidade da arte drag, como forma de lembrar ao público que drags são artistas com múltiplos talentos, e que podem ser modelos, cantoras, dançarinas, comediantes, dubladoras ou tudo isso junto.
Formato aproxima público e quebra preconceitos
Em um segmento em que muitos artistas são LGBTQIAP+, o Drag Brunch Ceará chega também como possibilidade de criar novos caminhos de afeto e empregabilidade para uma parte de população que enfrenta desafios constantes, quebrando estigmas ligados à cena drag e ampliando as possibilidades de trabalho para uma profissão que costuma ser desvalorizada.
“A gente quebrou um paradigma, porque a drag era vista como marginalizada, né? Não só aqui em Fortaleza, mas no Brasil inteiro, por estar sempre ali nas boates. Por exemplo, a minha mãe achava que eu fazia show pelada na boate”, conta Supremmas, rindo. “E tudo bem se eu fizesse, mas ela não sabia o que eu fazia, que eu fazia cover da Beyoncé, da Lady Gaga. Hoje ela é apaixonada pelo Drag Brunch, em toda edição ela tá colando aqui”.
Fazer a curadoria de artistas é muito fácil, porque aqui em Fortaleza tem muito artista bom, então a gente não perde tempo quando se trata de talento. A gente não tem dificuldade de encontrar artistas com talento aqui no Nordeste como um todo, porque tem muito. No Drag Brunch, a gente valoriza o fato de poder mostrar quem é essa galera que tá aqui em Fortaleza, dando o nome e no mercado há muito tempo.
A artista ainda destaca que o evento também serve para mostrar que a arte drag é para todos. “Uma menina uma vez chegou até mim e falou ‘um dia eu vou me montar também’. Ou seja, ainda quebra aquele paradigma de que só gay pode se montar. Não: é arte, qualquer pessoa pode fazer. Seja mãe de família, pai de família, qualquer pessoa”, conclui.
A queen Mizzayra Alonzo, que trabalha como drag há dez anos e se apresentou em três das quatro edições do Drag Brunch, reitera que o formato permite que novos públicos se aproximem da cena, se divirtam e interajam com os artistas, o que traz um novo olhar sobre a profissão.
“Muitas pessoas vêm pra cá porque gostariam de conhecer uma drag pessoalmente. Elas nos abraçam e dizem isso, e é uma curiosidade positiva, porque há um certo preconceito e a gente tá aqui pra quebrar isso mesmo”, comenta a artista, que atua como performer, cantora e apresentadora em bares e eventos.
“Costumo dizer que a nossa drag é uma máscara que a gente usa pra gente poder mostrar o que tem de melhor. A gente tá aqui pra mostrar os nossos talentos”, completa.
Já habituadas a ocupar palcos para além das boates, as veteranas da cena drag cearense Deydianne Piaf e Mulher Barbada – multiartistas que integraram o coletivo artístico As Travestidas por mais de uma década e hoje tocam o Bloco Mambembe, além de projetos autorais individuais – também performaram no Drag Brunch Ceará.
Deydianne Piaf destaca que o projeto, apesar de ser tocado oficialmente por Alpha Killer e Supremmas, tem caráter coletivo e ressignifica a história drag de Fortaleza. “É muito importante que outras drags sejam protagonistas de novos projetos e consigam se conectar a outros artistas”, ressalta.
Para Mulher Barbada, o projeto tem como marca o profissionalismo, uma característica forte da nova cena drag da Capital. “Na Valentina (Club) a gente vê muito isso também, muito esmero e cuidado com os figurinos, com a produção, com os ensaios. Isso faz com que a gente realmente valorize o que a gente está fazendo, sabe? É um trabalho que não deixa nada a desejar para as drags que estão aí mundo afora”, afirma.
Espaço familiar permite trocas e a chegada novos fãs
Citado por todas as performers como o grande motivo por trás do projeto a nível local e global, o objetivo de levar os múltiplos talentos das drag queens a um público cada vez mais diverso tem sido alcançado em Fortaleza.
Na última edição do Drag Brunch Ceará, conferida pela equipe do Verso no último domingo (25), além de casais e grupos de amigos jovens, havia também mesas com famílias, algumas chegando ali pela primeira vez, outras já fãs de carteirinha.
A aposentada Helena Coelho, 60, é uma das espectadoras que conheceu o projeto recentemente, mas já se sente em casa. Ela ficou sabendo da edição de janeiro do Drag Brunch no Instagram, por ser seguidora de Supremmas, resolveu conhecer o formato e se encantou. Na edição deste mês, chegou cedo e garantiu boa visão do espaço com a família: filha, irmã, irmão, cunhada e um casal de amigos fecharam a mesa de sete pessoas.
“Eu vou vir sempre. Gosto muito das músicas, das performances das drags, me divirto muito. Já via o movimento pelas redes sociais, mas não sabia que estava tão grande e forte aqui. Torço muito pra que dê tudo certo pra eles, porque sou uma admiradora”, declarou.
Na plateia, havia também muitos jovens entre 20 e 30 anos – alguns deles entusiastas de realities shows que popularizaram a arte drag, como o premiadíssimo RuPaul's Drag Race, e outros que, além de acompanhar a cena de Fortaleza, também "se montam".
O ilustrador Patrick Camelo, 27, que dá vida à drag queen Satana D'vill, foi um dos que curtiu a noite como espectador de primeira viagem, e ressaltou a relevância de novos espaços para shows para garantir a sustentabilidade da cena. Ele foi ao show com a "filha drag", Isa de La Noche, persona do amigo Isaac Barreto, 24.
“A maioria do que as meninas ganham fazendo show elas gastam investindo na própria drag”, explicou Patrick. “O legal é que, hoje em dia, drag tá mais popular, mais mainstream, e todo mundo está vendo que são pessoas talentosas, que fazem muito e que merecem muito ganhar os holofotes”.
Outra que foi pela primeira vez ao Drag Brunch na edição mais recente do projeto foi a analista de tecnologia da informação Ana Socorro Pereira Carvalho, 50. Fã de Supremmas, declarou emocionada ter tido a vida transformada pela arte da performer, que também faz sucesso como influencer e humorista.
“Ela mudou a minha vida e a do meu irmão. A gente perdeu a nossa mãe em 2021 e o processo do luto foi muito pesado pra gente. Seguindo ela, a gente conseguiu descontrair um pouco. Então, pra mim, ela é uma referência de humor, de um estilo irreverente de ver a vida", contou, sorrindo.
Em uma mesa com amigos, Ana Socorro usava um leque azul para afastar o calor e reagir aos números das artistas – dez no total, divididos em dois blocos. Ficou feliz não só por ver a influencer favorita, mas por poder rever Deydianne e Mulher Barbada, que acompanha nas redes e nas apresentações do Bloco Mambembe.
"Adorei vir porque é uma forma de trazer a vivência drag para as famílias. O mundo drag é amor, não tem como ser diferente. Eles nos passam muito amor e precisam receber amor também”, pontuou, destacando a leveza e o humor das apresentações como pontos altos da noite e prometendo voltar na próxima edição, desta vez com as filhas.
“No mundo que a gente tá vivendo hoje, com tanta doença psicológica, ansiedade, depressão, isso faz bem. Isso é cura, faz bem pro espírito, faz bem pra alma”.
Confira trechos da última edição do Drag Brunch Ceará:
Serviço
Drag Brunch Ceará
Próxima edição: 24 de março de 2024
Local: Restaurante É Sim Comer e Beber (rua Waldery Uchôa, 235 - Benfica)
Valores: R$ 70 (mesa para 2 pessoas) / R$ 140 (mesa para 4 pessoas) / R$ 210 (mesa para 6 pessoas) | Vendas a partir da próxima segunda-feira (04/03)
Mais informações: @dragbrunchceara