Documentário sobre mulheres árabes afetadas pela guerra é feito de silêncio e distância
"Caos", dirigido pela síria Sara Fattahi, não é para quem espera respostas, mas para os que aceitam a navegação imprecisa de suas personagens
As personagens de "Caos" parecem viver uma espécie de dupla perplexidade - o que dizer do mundo e o que dizer ao mundo? Como entender e comunicar a dor imensa que ocupa toda sua experiência?
Duas dessas mulheres sírias têm cabelos morenos. A terceira, loira, mal chegamos a ver, apenas entrevemos. Elas dialogam entre si. Mas são mesmo diálogos? A uma das jovens, alguém faz perguntas. Mas quem? Presumivelmente é a loira, mas ela está fora do campo de visão, não há certezas.
As respostas vão na mesma direção - a fuga, as guerras na Síria, as mortes, o afastamento da língua e dos costumes, o refúgio imposto.
A mulher mais velha arruma as roupas, os móveis. Em dado momento, ela fala de uma morte, do corpo do filho, encontrado no rio. Essa morte não passou, não acabou - ela vive na mulher, na mãe. O mesmo ocorre com o irmão de Heba, a mais jovem. O sentimento da morte perpetua-se nas pinturas que ela faz, no sentimento de ausência que experimenta. É possível experimentar a própria ausência?
Talvez por isso ela tenha sido recolhida ao hospital, psiquiátrico, presume-se. Queria se matar. Transtorno bipolar? Alguém pergunta se a causa disso não será justamente a paz, a paz infinita do lugar onde vive agora, longe da guerra, longe do seu país, afastada do caos que se tornou a Síria e Oriente Médio.
Tudo é mistério
A mais velha volta à guerra. "Eles violaram tudo em nós." Eles quem? Muçulmanos, cristãos, americanos, estrangeiros? Mais adiante, a moça loira por fim aparece em cena. Está onde vive agora, na Europa.
Anda com passos firmes, mas a certeza que parece constituí-la não é, afinal, tão certa assim. Quando tenta abrir a porta do seu apartamento, ela não consegue. Luta com as chaves para, por fim, entrar em um espaço vazio, escuro, solitário.
De repente, o ateliê de Heba, a pintora, reaparece, luminoso. Ela recorta, cola, pinta. Vira-se e diz: "Acabo de descobrir que este é meu pai, ele se sentava assim". Em "Caos", cada observação parece ao mesmo tempo óbvia e incompreensível - como a guerra, como o exílio, como a situação das mulheres na Síria?
Os quadros de Heba são sua viagem, seu sonho. Ela pinta para descobrir o que é pintado. Tudo é mistério, nela e no filme. Parecem os velhos fantasmas das velhas televisões, que perdem sempre a nitidez.
O documentário da síria Sara Fattahi é feito de ódio, silêncio, resignação, desterro, da distância entre o tumultuado ponto de partida e o ponto de chegada, a Europa, calmo, até monótono. Como juntar tudo isso? Não é óbvio nem é certo que tudo se encontre.
"Caos" não é um filme para quem espera respostas, mas para quem aceita a navegação imprecisa de suas personagens, distantes e próximas de nós. Um outro que nos habita? É como os contos de Edgar Allan Poe, mas sem ser.