Cearense precisa se deslocar em média por 52 minutos para acessar município com sala de cinema

Dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) 2011-2022 refletem experiências de produtores e cineastas do interior do Estado compartilhadas com o Verso

Escrito por João Gabriel Tréz , joao.gabriel@svm.com.br
Ações como cineclubes e mostras de cinema ajudam a estimular acesso ao audiovisual no interior do Ceará; na imagem, registro de ação do Cineclube Dikebrada, em Tianguá
Legenda: Ações como cineclubes e mostras de cinema ajudam a estimular acesso ao audiovisual no interior do Ceará; na imagem, registro de ação do Cineclube Dikebrada, em Tianguá
Foto: Cineclube Dikebrada / divulgação

Ir de Meruoca — a 248 km de Fortaleza, com 15 mil habitantes — para Sobral — município com maior oferta de salas de cinema — é algo comum para conseguir acesso a filmes no município, compartilha a diretora e produtora Raylane Neres, sócia da Argumento Produções. O tempo de deslocamento entre as cidades varia entre 25 e 35 minutos.

Já em Tianguá, com 81 mil habitantes e a 310 km da Capital, há uma sala de cinema localizada em um shopping, como informa o produtor e cineasta Natal Portela. O artista ressalta que, no equipamento, “são exibidos apenas filmes com apelo comercial, em sua maioria blockbusters americanos”.

Em Iguatu, com mais de 98 mil habitantes e a 380 km de Fortaleza, o deslocamento também é necessário para acessar uma sala de cinema: “O mais próximo é Juazeiro ou Crato, mas para a gente é muito longe ainda”, aponta a professora e realizadora Sara Benvenuto. O caminho de carro, segundo o Google, ultrapassa as duas horas seja qual for a escolha.

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As experiências descritas pelos profissionais do audiovisual, que vivem e trabalham no interior do Ceará, são exemplos práticos de um cenário de centralização de acessos culturais evidenciado por dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) 2011-2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no início do mês.

Conforme o SIIC, 45,1% da população cearense vive em um município com sala de cinema, mas somente 8,2% dos municípios do Estado contam com um equipamento do tipo. Para acessar uma sala, o tempo médio de deslocamento do cearense entre um município sem e outro com cinema é de 52 minutos.

Outras formas de acesso

Cineclube Dikebrada promove acesso ao audiovisual em Tianguá
Legenda: Cineclube Dikebrada promove acesso ao audiovisual em Tianguá
Foto: Cineclube Dikebrada / divulgação

Pelas ausências, uma das formas de promover o acesso ao audiovisual nos municípios tem sido contar com o cineclubismo, quase sempre de maneira independente. Em Tianguá, Natal destaca o Cineclube Dikebrada, realizado por ele desde 2015. 

“O projeto oferta a comunidades rurais e periféricas sessões gratuitas de cinema ao ar livre e em espaços cedidos pelas comunidades beneficiadas”, afirma o realizador, que ressalta a ação como contribuidora na difusão do cinema nacional e na formação de plateia.

Já Raylane lembra de uma iniciativa cineclubista de Meruoca que se desenrolou entre 2010 e 2014. “Ela proporcionou a exibição de uma extensa variedade de filmes nacionais alheios ao convencional circuito comercial. Contudo, tal empreendimento foi relegado ao segundo plano, resultando na atual ausência de opções locais”, aponta.

Em Iguatu, Sara reforça também iniciativas como a Mostra de Cinema da cidade, além de cineclubes como o Cine Alicerce, do qual ela é uma das coordenadoras. Projeto de extensão da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a iniciativa passou a promover em outubro o Cine Bastiana, que propõe uso de auditórios do Campus Multi-Institucional Humberto Teixeira como salas de exibição abertas e gratuitas para toda a população da cidade. 

“A gente resgatou uma parcela grande (de espectadores) não só do município, mas da região, de Icó, Acopiara, do Quixelô, que vem assistir o Cine Bastiana”, comemora, destacando o papel relevante de instituições sobretudo de educação, como a própria Uece, Universidade Regional do Cariri e o Instituto Federal do Ceará.

Projeto Cinema da Cidade

Sara, porém, não deixa de lembrar: “A gente tem iniciativas específicas, mas que não dão conta nem de longe do local de fomento público que a gente já deveria ter”. “Falta mesmo um incentivo estável, a presença do Estado na construção e manutenção de equipamentos culturais”, aponta.

A visão é reforçada por Raylane. “Quanto a salas de cinema nos interiores, numa medida a longo prazo, há duas possibilidades: a construção e manutenção de salas públicas ou incentivos fiscais para que o setor privado faça tais investimentos. Ambas as abordagens, cabe ressaltar, dependem do acolhimento e impulso do poder público”, opina.

“Com efeito, existem salas de cinema públicas em construção em vários municípios do interior, mas o processo é notoriamente moroso devido à intrincada burocracia estatal”, avalia a produtora, se referindo ao programa Cinema da Cidade.

  • 8,2% dos municípios cearenses tem cinema
  • 54,9% dos municípios cearenses tem tempo de deslocamento para outro município com cinema menor do que 1 hora
  • 30,4% dos municípios cearenses tem tempo de deslocamento para outro município com cinema entre 1 e 2h
  • 6,5% dos municípios cearenses tem tempo de deslocamento para outro município com cinema entre 2 e 3h

Fonte: Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) 2011-2022

Ação da Secretaria da Cultura do Ceará, ele prevê a abertura de equipamentos do tipo em 10 municípios cearenses. O “Cinema da Cidade”, explica a secretária da Cultura Luisa Cela em entrevista ao Verso, prevê a construção dos espaços e a aquisição de equipamentos e mobiliário.

“No que se refere a construção dos Cinemas, uma obra já está concluída [Canindé], outras seis estão em andamento (com previsão de entrega para 2024) [Cedro, Aquiraz, Itaitinga, São Benedito, Crateús e Tauá] e três não foram iniciadas [Amontada e Iguatu e Crato]”, informa a gestora.

Programa Cinema da Cidade prevê construção de salas de cinema em 10 municípios cearenses; na foto, imagem ilustrativa de modelo da área externa
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Foto: Secult / divulgação

Ações para descentralização de fato

“Apesar dos inúmeros gargalos, tenho uma expectativa positiva diante dos investimentos previstos para o setor cultural nos próximos quatro anos, que visam a implementação da nossa política nacional de cultura”, confia Natal, sem deixar de demandar “qualificação” de diálogo por parte do poder público.

“Uma alternativa viável, sobretudo em curto prazo, consiste no aporte de recursos destinados a cineclubes e cinemas localizados em bairros”, defende Raylane. Ela ainda cita possibilidades como o desenvolvimento de uma plataforma de streaming voltada ao audiovisual cearense. 

Cine Bastiana, que promove sessões abertas e gratuitas em Iguatu, demonstra a demanda da população por acesso a cinema
Legenda: Cine Bastiana, que promove sessões abertas e gratuitas em Iguatu, demonstra a demanda da população por acesso a cinema
Foto: Reprodução / Instagram

“A concretização de cineclubes e a promoção de plataformas de streaming regionalizadas emergem, portanto, como estratégias promissoras para mitigar as lacunas existentes no acesso à produção cinematográfica em áreas distantes dos epicentros urbanos”, defende a produtora. 

“Editais da Lei Aldir Blanc I, da Paulo Gustavo, têm vindo. Com a LPG, a gente espera que esse desenho em relação ao cinema itinerante, à sala de cinema, seja melhorado”, espera Sara.

A secretária Luisa Cela destaca que, em editais da Lei Paulo Gustavo, há previsão de investimentos voltados a essas demandas. “Por meio da execução dos recursos do inciso II do art. 6 da LPG, a Secult Ceará fortalece a política de audiovisual cearense por meio do apoio a salas de cinemas públicas, cinemas itinerantes e salas multiuso públicas de exibição do Estado”, elenca.

Em Iguatu, projeto de extensão Cine Alicerce promove sessões abertas para a população
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Foto: @cinealicerce / reprodução

O apoio às salas de cinema públicas, do edital “Apoio ao Audiovisual Cearense - Difusão, Formação e Pesquisa (Lei Paulo Gustavo)”, prevê apoio para dois projetos com recursos no valor de R$ 1,5 milhão cada.

Já no edital “Premiação Cultural - Fomento à Exibição, Preservação e Empresas do Audiovisual Cearense”, o apoio a cinemas itinerantes contempla dois projetos com R$ 350 mil cada e, ainda, 10 projetos de salas multiuso públicas de exibição também com R$ 350 mil cada.

Cinema reflete outras dificuldades de acesso do interior

“Quando se fala sobre o acesso ou a falta dele a bens e serviços culturais, o interior é o primeiro nome que vem à cabeça, pois para nós, artistas e agentes culturais residentes e atuantes nesse território, a falta de acesso vai muito além do cinema”, expressa Natal.

Destacando o “cenário cultural potente e promissor” de Tianguá, ele ressalta o que define como uma “extrema carência”: “Não temos uma escola de artes, um museu, um teatro, um centro cultural ou qualquer equipamento público que possa, de alguma maneira, ‘abrigar’ e/ou contribuir com a cultura local”, lamenta.

“Isso acaba contribuindo também para a dificuldade do artista se formar e se qualificar para acessar a política de editais estaduais, por exemplo. Essa carência de acesso é ainda maior para quem reside e atua em comunidades rurais, que são a maior parte do território cearense”, lembra Natal.

Iniciativa do Cineclube Dikebrada é do realizador tianguaense Natal Portela
Legenda: Iniciativa do Cineclube Dikebrada é do realizador tianguaense Natal Portela
Foto: Cineclube Dikebrada / divulgação

“A Capital tem um recurso previsto e estável que são os aparelhos de cultura que estão lá, a própria Secretaria. O interior não vive essa realidade por diversas questões. A gente precisa resolver mesmo uma descentralização do aparelho da Secult nas regiões”, ressalta Sara.

“A viabilização de equipamentos culturais pelo interior do Estado seria uma medida que descentralizaria bastante o acesso. Outro ponto seria o incentivo para que projetos concentrados na capital fossem executados no interior, criando uma dinâmica mais robusta de intercâmbio e democratização do acesso”, dialoga Raylane.

Mais do SIIC

O SIIC 2012-2022 destaca dados sobre a presença de outros dois tipos de equipamentos culturais nos estados e no País além do cinema: museus e teatros ou salas de espetáculos

Em relação a museus, o número de municípios cearenses com o equipamento é de 42,9%, com 70,7% da população cearense vivendo em cidade com um espaço do tipo.

Já sobre teatros ou salas de espetáculos, 35,3% dos municípios do Ceará contam com equipamento, enquanto 71,5% da população do Estado mora em cidade que tenham um espaço do tipo.

Para acessar um museu no Ceará a partir de um município sem um equipamento do tipo, o tempo médio de deslocamento é de 16 minutos. Já o mesmo índice em relação teatro ou sala de espetáculo é de 17 minutos.

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