Bárbara Matias Kariri estreia na literatura com poesia que resgata memória do povo Kariri
Livro é resultado da trajetória profissional e pessoal da multiartista e busca, por meio da poesia, contar história coletiva do povo Kariri
Atriz, performer, roteirista, pesquisadora e doutora em Artes – são muitas as facetas que constroem a trajetória profissional de Bárbara Matias Kariri. Porém, antes disso tudo, houve a conexão com a palavra.
Multiartista nascida e criada na Aldeia Marrecas, em Quitaiús, Lavras da Mangabeira, Bárbara acompanhou, desde pequena, o contexto de revitalização da memória do povo Kariri na região – incluindo o período de desmonte da comunidade do Marreco em meio à construção do Açude do Rosário, que ocorreu quando tinha apenas seis anos de idade.
Na época, Bárbara viu familiares e amigos serem obrigados a se afastarem de seus entes queridos e tradições e migrarem para o contexto urbano para conseguir sobreviver. A experiência traumática fez com que a luta pelos direitos indígenas integrasse as memórias mais antigas da artista – e foi por meio da escrita que Bárbara encontrou ferramentas para lidar com as dores do passado e projetar sonhos para o futuro.
Após quase duas décadas de escritos acumulados, neste mês, a artista caririense de 31 anos estreia no mercado editorial com “Poesia da Terra”, coletânea de mais de 50 poemas publicada pela editora Feminas. O livro, que conta com ilustrações da artista cearense Indja, foi publicado após ser aprovado em primeiro lugar no Programa de Ação Cultural de São Paulo (ProAC), e será lançado simultaneamente na capital paulista e online no próximo sábado (21).
A obra, no entanto, não simboliza o início de uma carreira, mas a culminância de um percurso artístico de múltiplas habilidades, que começou ainda na infância. Na época, Bárbara já acompanhava diversas manifestações culturais do Cariri, como o reisado, e aprendia tecnologias ancestrais com os parentes, como a cura pelos “remédios do mato” e os festejos tradicionais do povo Kariri.
A minha memória carrega uma memória de uma alegria, uma memória fértil de festejo, de comunidade. Mas ela carrega também esse silenciamento, esse lugar de perder o território.
Em meio aos desafios cotidianos, era nas atividades de teatro da escola que Bárbara canalizava maior energia. Participava de aulas, cursos e tentava aproveitar o fato de viver em um local onde, ainda que as condições financeiras não fossem boas, a cultura era pulsante. Foi ali, na escola, que começou a se apaixonar pela força das palavras – não só escritas, mas transformadas em cenas.
Uma vez, ganhou um concurso de literatura e, como prêmio, recebeu várias obras de teatro. Ali, entendeu que queria ser atriz. Mesmo sabendo que o caminho não seria fácil, ao sair da escola, aos 17 anos, Bárbara decidiu cursar teatro da Universidade Regional do Cariri (Urca), no Crato.
A formação se tornou ponte não só para a produção artística, mas também para a pesquisa. Nos últimos anos, ela participou do Laboratório de Roteiro do Porto Iracema das Artes, fez mestrado em Artes Cênicas e, no início deste ano, concluiu o doutorado em Artes, onde estudou a resistência do povo Kariri nas artes da cena.
Nesse trajeto, porém, a poesia se manteve presente, ainda que Bárbara não se enxergasse como poeta – só foi aceitar o “rótulo” há cerca de três anos, após diversas conversas com a curadora de seu primeiro livro, Janaú.
“Nunca parei de ser artista. Acho que todos os dias eu produzo, pelo menos, umas quatro obras de arte. Não para servir o mercado, mas no sentido de que é isso que o lugar da poesia te dá: se deixar emergir, se deixar fluir pelo que o mundo te oferece. Pensar o mundo por outros canais, que acho que é o que a arte nos provoca”, pontua.
Escrever para ecoar a memória ancestral
“Quando eu publico um livro, muitas pessoas publicam esse livro comigo”. É assim que Bárbara Kariri entende a estreia de Poesia na Terra, que traz escritos produzidos durante a adolescência e a juventude da autora. Para ela, a obra é uma chance de “distribuir sementes” e perpetuar “a memória ancestral”.
“Vejo o campo artístico como um lugar de fazer justiça. E essa justiça é, sobretudo, um lugar de transformação para nós todos, um lugar que pode mexer com nosso desconforto e que, às vezes, também pode nos acolher”, destaca a artista.
Os poemas escolhidos para a publicação trazem, para além da valorização da ancestralidade indígena, reflexões sobre autoestima, representatividade, a urgência do combate à crise climática e o papel essencial das mulheres – especialmente as indígenas – na história da construção do País.
As mulheres que existiram antes de mim / encheram a barriga até dos curumins / que ainda estão por vir
Com a ajuda da curadoria de Janaú e das imagens ilustradas por Indja, Bárbara organizou o livro como se organiza um roteiro: tentando entender o que devia vir no início e traçando uma linha do tempo para chegar a um final que fizesse sentido.
Ora com afeto, ora com raiva, ora com bom humor – mas sempre com intencionalidade –, a poética da artista traz elementos de prosa: personagens, falas, descrição de espaços. O propósito, destaca Bárbara, é relatar um pouco de suas vivências, mas trazendo uma história que é coletiva.
“Tem esse lugar que é a Terra, o que a gente faz com a Terra, com o território. Tem momentos em que aparece o lugar de autoestima das pessoas que cuidam da Terra – quem são essas pessoas, a beleza dessas pessoas enquanto guerreiras e herdeiras de uma sabedoria ancestral. E acho que tem um lugar muito forte também de falar com o invisível, de trazer a força espiritual”, explica.
Nas páginas de Poesia da Terra, saberes ancestrais, leituras acadêmicas e vivências pessoais da autora se unem à luta pelo corpo-território e o combate à crise climática – tema que Bárbara julga como o principal aspecto de toda a sua obra artística e uma questão essencial da história dos povos originários.
“Essa questão está em tudo que eu faço de alguma forma. São os marcadores que me atravessam: o feminino e as questões da memória indígena, que é a narrativa da minha família inteira”, pontua.
A crise climática precisa ser um desconforto de todo mundo, uma dor de todo mundo, uma dor que nós todos sentimos, sim. E eu penso que a arte é o canal em que, talvez, a gente consiga chamar as pessoas para essa conversa séria. Essa ferida é latente e é importante que todos sintam isso de alguma forma.
A arte indígena como formadora de opinião
Única escritora cearense premiada pelo ProAC, Bárbara acredita que, como ela, outros artistas indígenas têm tido um pouco mais de espaço no mercado de arte formal por conta das leis de incentivo – que não só premiam, mas formam novos artistas por meio de cursos e oficinas.
Porém, ela destaca que os avanços ainda costumam privilegiar formatos que nem sempre reconhecem a arte indígena de uma forma mais ampla. Por isso, Bárbara ressalta a importância do consumo e impulsionamento da arte indígena – não só para que haja mais representatividade, mas também para que se crie um imaginário sobre a existência de outros tipos de produções artísticas.
“As artes indígenas têm um sistema próprio e o mercado da arte, por muito tempo, não esteve interessado nisso”, afirma. “Por isso, esse corpo indígena acaba tendo também esse dever de ser um formador, mesmo”, pontua.
Pensando nesse papel do artista-educador, como parte da campanha de lançamento, Bárbara Kariri irá ministrar uma oficina de artes para adolescentes e exemplares de Poesia da Terra serão doados para aldeias de São Paulo. Ainda neste ano, a artista deve lançar o livro também no Ceará. Por enquanto, três eventos com a autora estão previstos, ainda sem data certa: um na Aldeia Marrecas, um no Crato e um em Fortaleza.
As oportunidades de apresentar seu livro de estreia ao Ceará trazem alegria a certa ansiedade, confessa Bárbara, que conta estar animada para saber o que os leitores irão achar das poesias. Isso porque, para ela, o livro nasce com uma importante missão, que vai além da boa literatura: contribuir para o fortalecimento da cultura dos indígenas Kariri.
“Gostaria que muitas pessoas também se sentissem lançando esse livro comigo. Que muitas pessoas possam se identificar também e se ver naquelas palavras e naquelas imagens”, convida.
Serviço
Acompanhe a artista nas redes sociais: @barbaramatiask e @coletivaflechalancadaarte
Para adquirir o livro, acesse o site da editora Feminas (disponível a partir do dia 21 de setembro)