Como a política pode e deve atuar pelos direitos das pessoas trans no Ceará
Apesar dos avanços, população chama atenção para o aumento da transfobia e a necessidade de acesso a direitos básicos
“Sabe por que você chegou aqui? Na minha visão?”, perguntou a cantora Naiara Azevedo, na madrugada do último sábado (22), à cantora e atriz Linn da Quebrada, que se identifica como travesti e é a segunda pessoa trans a participar do ‘Big Brother Brasil’ em 22 anos de reality. Linn não esperou a sertaneja opinar: “Porque elas (trans) não tiveram visibilidade e eu tive um pouco de sorte”.
A participação de Lina Pereira, 31 anos, num dos maiores realities do País é, sobretudo, política. A artista tem consciência de que ocupa, hoje, um espaço historicamente negado a travestis, pessoas não binárias e mulheres e homens transsexuais.
O preconceito tem raízes fincadas não só no universo do entretenimento como ainda no acesso a direitos básicos como educação, saúde, cidadania, segurança, moradia e trabalho, ou seja, todos os espaços ditos democráticos.
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Neste sábado (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans, o Diário do Nordeste ouve representantes do movimento LGBTQIA+ e parlamentares ligados à causa sobre as demandas mais urgentes desse público e como os direitos das pessoas trans têm atravessado os poderes Legislativo e Executivo em tempos de avanço da pauta conservadora na política.
Saúde e segurança
Quando determinada parcela da população é historicamente excluída da sociedade em razão de etnia, raça, gênero, religião ou orientação sexual, são necessárias políticas públicas afirmativas que corrijam desigualdades sociais e garantam a essas pessoas o acesso a direitos básicos.
Dentre os muitos direitos ainda negados ou acessados com dificuldade pela população de travestis, pessoas não binárias e mulheres e homens transexuais no Ceará, estão o acesso a tratamentos específicos de saúde no que diz respeito à transexualização e o despreparo de agentes da segurança pública para identificar e combater crimes de homofobia e transfobia.
O Ceará, em 2020, foi o segundo estado que mais registrou assassinatos de pessoas trans no Brasil, atrás só de São Paulo. Dado foi divulgado há um ano, em pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra).
“É demanda antiga do movimento a necessidade de uma política de saúde integral. Não existe. Outro déficit enorme é na segurança pública. Não temos uma política de estado para a população LGBTQIA+. Não temos plano de segurança que promova ações de enfrentamento ao preconceito e à discriminação, que trace metas e ações para a erradicação da transfobia, da homofobia, da lesbofobia”, cita a presidenta da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Andrea Rossati.
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Além disso, frente ao crescimento da pauta conservadora na nas casas legislativas municipais e estadual, frustra os movimentos sociais, de acordo com Rossati, a falta de respostas mais enérgicas dos parlamentares do campo progressista aos ataques da bancada chamada "reacionária".
Temos uma ausência gigantesca de políticas públicas efetivas para a vida da população trans. (...) Infelizmente, por causa de poucos políticos conservadores e intolerantes aos direitos da população LGBTQIA+, em especial, de travestis e de mulheres trans. (...) Eles (conservadores) não estão sendo combatidos pelos políticos que se dizem democráticos, que lutam pelo estado de direito, pela cidadania, respeito ao próximo”.
Resistência no Legislativo
Embora existam aliados à pauta LGBTQIA+ na Câmara Municipal de Fortaleza e na Assembleia Legislativa do Ceará, tramitações de matérias relativas ao tema costumam ser lentas e, por vezes, estancam, não chegando nem mesmo à discussão no plenário.
O deputado estadual Renato Roseno (Psol), autor da Lei do Nome Social, uma das mais importantes aprovadas nos últimos anos e que assegura o uso do nome social em serviços públicos e privados no Estado, assume que “todos os nossos projetos relativos à cidadania de pessoas trans têm dificuldade” para tramitar e até para serem efetivados após a aprovação, especialmente devido às respostas da “ala reacionária e conservadora” da política.
A Semana Janaína Dutra de promoção do respeito à diversidade sexual e de gênero, instituída pela Lei 16.481/17, também é considerada uma conquista importante do segmento no enfrentamento à LGBTfobia.
“Foi assim com a Lei do Nome Social. Criaram várias fake news. (...) Dizendo que eu tinha aprovado uma lei que proibia que os pais batizassem seus filhos. Ou seja, não só é mentira como é uma desinformação intencionalmente criada para gerar pânico. Abertamente preconceituosa e mentirosa, porque desvirtua a realidade”, critica o deputado.
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Roseno é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Ele conta que, além de denúncias de violências e violações de direitos das pessoas LGBTQIA+, a comissão recebe com frequência demandas por inserção no mercado de trabalho, acolhimento institucional a pessoas trans expulsas de casa, acesso a serviços específicos de saúde e garantia do cumprimento do ciclo escolar obrigatório.
Na Câmara Municipal de Fortaleza, vários projetos das vereadoras Larissa Gaspar (PT) e Adriana Nossa Cara (Psol), protocolados ano passado, ainda aguardam autorização para ir a plenário.
São matérias importantes que tratam desde a criação de um fundo municipal de defesa dos direitos da população LGBTQIA+ à promoção da cidadania de pessoas trans em situação de vulnerabilidade e à reserva de vagas para este público em empresas privadas contratadas para a prestação de serviços públicos na Cidade.
Sobre o último projeto, Adriana Gerônimo, da mandata coletiva Nossa Cara, afirma que nunca chegou a tramitar. “Foi feito no primeiro semestre (de 2021), mas nunca foi para o plenário, para apreciação dos vereadores. Nosso maior entrave é o preconceito, a transfobia”.
Orçamento
Outro fator que dificulta a execução de políticas afirmativas para travestis, pessoas não binárias e mulheres e homens transexuais no Ceará é o orçamento escasso para o segmento.
Gerônimo, contudo, comemora a aprovação de uma emenda de sua mandata ao Plano Plurianual que garante mais aporte financeiro ao Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, equipamento de assistência social vinculado à Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS). “A gente considera um ganho significativo porque a população LGBT praticamente não tem uma política eficaz, concreta” na Capital, segundo a vereadora.
A coordenadora do Centro Janaína Dutra, Labelle Silva, admite que orçamento “é sempre um gargalo” no que diz respeito às políticas públicas LGBTQIA+. Depois de passar por uma série de processos de sucateamento, segundo ela, o centro funciona, hoje, com equipe completa e todos os dias úteis da semana. “Porém, a gente precisa avançar, precisa de mais. A gente sempre vai precisar de mais. Precisa ampliar equipe, melhorar a estrutura física”, conta.
Até para pôr em prática projetos que atendam a demandas antigas do segmento como, por exemplo, a construção de uma casa de acolhimento institucional específica para esse público.
Em 2021, o Centro de Referência Janaína Dutra acompanhou 198 casos envolvendo direitos de pessoas LGBTQIA+. Também foram prestadas 405 sessões de atendimento psicossocial e jurídico gratuitas e desenvolvidas 41 ações educativas de promoção da cidadania e combate à LGBTfobia. 79% das pessoas que buscaram atendimento se identificaram como pessoas trans.
“Mais orçamento é fundamental”, compreende o deputado Renato Roseno. No âmbito estadual, o parlamentar também tem tentado angariar mais verba para fortalecer os centros de referência e, assim, garantir a efetivação de políticas públicas para pessoas LGBTQIA+.
“O que cabe a uma coordenadoria LGBT é, sobretudo, articular as várias dimensões do Estado para que estejam abertas e tenham agendas proativas de cidadania. Quero reiterar essa importância porque, no momento em que há uma pauta tão abertamente LGBTfóbica por uma parte da política brasileira, isso corrói a democracia e acaba, inclusive, gerando intolerância, crimes de ódio, impulsionando violências”, alega.
“Para se ter a efetivação de uma política, tem que ter orçamento. E, infelizmente, a gente vem percebendo a ausência de um orçamento específico. [Geralmente] são coordenadorias dentro de outros espaços maiores e que nem sempre têm a caneta na mão, o poder de decisão. Isso dificulta muito”, opina a Andrea Rossati, presidenta da Atrac.
O Governo do Ceará inaugurou em dezembro do ano passado o Centro Estadual de Referência LGBT Thina Rodrigues. O equipamento é semelhante ao Centro Janaína Dutra, mas com a missão de atender às demandas dos 184 municípios cearenses.
Silvinha Cavalleire, coordenadora do Centro Thina Rodrigues, acredita que a própria criação do equipamento já representa um aumento de investimento na área. Agora, segundo ela, o objetivo é criar conselhos municipais e um conselho estadual LGBTQIA+ para fortalecer o controle social sobre as políticas públicas e cobrar mais verba.
Avanços
Com a sanção da Lei do Nome Social e o fortalecimento dos centros de referência Janaína Dutra e Thina Rodrigues, as pautas LGBTQIA+ vêm, paulatinamente, ocupando seu devido espaço no debate público.
Silvinha Cavalleire, do Centro Thina Rodrigues, diz que já percebe um aumento do interesse dos municípios em promover debates, capacitações e campanhas locais sobre o tema. Além disso, o centro também tem trabalhado no levantamento de dados sobre a população LGBTQIA+ do Estado, uma vez que não há "contagem oficial" no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que os números são necessários no desenvolvimento de políticas públicas direcionadas.
Também estão sendo discutidas internamente a possibilidade de um centro "itinerante", que leve capacitações e atendimentos individualizados com mais frequência para os municípios, e a criação de uma casa estadual de acolhimento institucional para pessoas LGBTQIA+.
"O lugar de gestão pública é um grande desafio. Como figura que estou na luta e na resistência há bastante tempo, é diariamente encarar desafios, mas encarar construindo aproximações, parcerias, para termos mais pastas e pensarmos em mais estratégias de enfrentamento à LGBTfobia", complementa Labelle Silva, do Centro de Referência Janaína Dutra, responsável por prestar atendimento e elaborar campanhas e capacitações na Capital.
Diálogo entre poderes
Quando dialogam, os poderes Executivo e Legislativo conseguem mitigar os prejuízos provocados às populações discriminadas. Contudo, é necessário compromisso e abertura para o debate.
"O primeiro passo é o Estado como um todo ter a humildade de reconhecer que existe um déficit de políticas públicas nessa área e que esse mesmo Estado precisa dialogar, escutar o movimento social LGBT", cobra a presidenta da Atrac, Andrea Rossati.
Labelle Silva, do Centro Janaína Dutra, também compreende que esses espaços precisam estar próximos e visualizar, juntos, o "horizonte da garantia de direitos, do respeito e do enfrentamento às desigualdades e da luta por justiça social e acesso a cidadania".
"Essas pautas deveriam ser tratadas com compromisso, justiça. Mas, o que a gente vê é que todos esses poderes são muito conservadores e expulsam para a margem da sociedade a diversidade, a diferença. Mas, o que a gente mais sonha, enquanto poder legislativo, é que esses poderes dialoguem e construam caminhos que salvem a população LGBT como um todo", conclui a vereadora Adriana Gerônimo.
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Dia Nacional da Visibilidade Trans
O Dia Nacional da Visibilidade Trans é celebrado no dia 29 de janeiro, desde 2004.
Serviço
Centro de Referência LGBT Janaína Dutra
Endereço: Rua Guilherme Rocha, 1469 - Centro
Telefone: 3452.2047
E-mail: centro.lgbt@sdhds.fortaleza.ce.gov.br
Centro Estadual de Referência LGBT+ Tina Rodrigues.
Endereço: Rua: Valdetário Mota, 970 - Papicu
Telefone: (85) 98993-3884
E-mail: cerlgbt@sps.ce.gov.br