'Não sou coveiro' é a frase que marca os 5 anos da pandemia

Na “aritmética hedionda dos coveiros”, como o poeta punk-gótico paraibano Augusto dos Anjos contava os mortos, o descuido da gestão do ex-presidente Bolsonaro deixou uma marca na memória dos brasileiros que perderam familiares por falta de gestão e vacina contra a Covid-19. Relembrar (para nunca mais deixar que se repita) é uma missão patriótica nesta semana em que a pandemia completa cinco anos.
Com 6,9 declarações falsas a cada 24 horas de pandemia, o ex-presidente definiu a doença como “gripezinha”, disse que era coisa de “maricas” e associou a imunização a Aids. Diante das mortes, tripudiou: “Não sou coveiro, tá certo?”
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O governo de Jair Bolsonaro teria sido apenas cômico e folclórico se as suas bizarrices não representassem consequências desastrosas, muitas vezes mortais, na vida dos brasileiros. Durante a pandemia de Covid-19, o político do PL desprezou a doença, desaconselhou o uso de máscaras, promoveu aglomerações e atrasou a imunização. Em nenhum outro lugar do planeta, o Coronavírus contou com um aliado político tão conveniente.
Em depoimento à CPI da pandemia, o epidemiologista Pedro Hallal revelou, baseado em estudos e pesquisas, que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso o Brasil tivesse adotado medidas mais rígidas de controle da pandemia e imunização mais rápida, ao contrário das orientações espalhadas por Bolsonaro e sua equipe. Até dezembro de 2022, o país registrava cerca de 700 mil óbitos por causa da doença.
Ao desempenhar o papel de garoto-propaganda de hidroxicloroquina e ivermectina — medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento de Covid —, o presidente teria cometido o crime de charlatanismo, uma das principais acusações da CPI do Senado. Nas suas “lives” do Facebook e cerimônias oficiais, Bolsonaro exibia as caixas dos remédios e receitava o uso aos brasileiros. Uma cena, em especial, marcou essa obsessão presidencial: ele mostrou as embalagens dos medicamentos para duas emas no gramado do Palácio da Alvorada — as aves saíram correndo, em desespero.
Ao longo de 2020, Bolsonaro sabotou, de forma metódica, as tentativas dos governos estaduais e municipais de combaterem a pandemia, sempre se escorando em uma suposta “imunidade de rebanho” que seria alcançada graças à infecção generalizada da população. Quando começou a ser cobrado pelo número de mortes, ainda no segundo mês depois da chegada do coronavírus ao Brasil, respondeu: "Eu não sou coveiro, tá certo?". Àquela altura, 20 de abril, o número de vítimas era de 2.575.
O festival de falas bizarras seguiu no rastro das mortes. Em novembro, Bolsonaro associou o medo dos brasileiros diante da pandemia à sexualidade: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?”
No mês seguinte, em Porto Seguro, no sul da Bahia, o presidente seguiu na sua cruzada negacionista contra as vacinas. “Eu não vou tomar. Alguns falam que eu estou dando um mau exemplo. Ô, imbecil, ô idiota. Eu já tive o vírus. Eu já tive anticorpos, para que tomar a vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem clara aqui: lá na Pfizer tá bem claro no contrato ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’, se você virar um jacaré o problema é de você, pô”, disse, em ritmo de desaforo. A frase levou inúmeros brasileiros a se fantasiar do réptil no momento de tomar a vacina nos postos de saúde.
A tentativa de desacreditar as vacinas seria atrelada a uma série de denúncias de corrupção. Segundo a CPI da Covid, o Ministério da Saúde teria postergado a decisão de comprar os imunizantes ao negociar propina com intermediários nos contratos.
Nesse período, o governo ignorou uma série de ofertas da Pfizer para vender sua vacina para o Brasil. A empresa farmacêutica havia encaminhado 56 e-mails às autoridades, perguntando sobre o interesse nas negociações. A administração federal demorou 47 e-mails para dar a primeira resposta, em 9 de novembro de 2020.
Ao mesmo tempo em que ignorava a Pfizer, assessores do governo andavam metidos em uma negociata paralela com um grupo comandado pelo pastor evangélico Amilton Gomes. A empreitada era um golpe por parte de Gomes, que não tinha qualquer contato com a Johnson e a Astrazeneca, farmacêuticas citadas na trama.
Como se não bastasse o rolo na compra dos imunizantes, conforme mostrou a CPI, Bolsonaro associou as vacinas à transmissão do vírus HIV. “Vacinados contra a Covid estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids]", alardeou na sua live do dia 21 de outubro de 2021, amparado por notícias falsas. "Posso ter problema com a minha live. Não quero que caia a live aqui, quero dar informações", disse o presidente. Três dias depois, o Facebook e o Instagram retiraram os vídeos mentirosos do ar.
O negacionismo virou uma marca presidencial. Quando a maioria dos brasileiros já havia tomado, mesmo com atraso, as duas doses do imunizante, Bolsonaro ainda esperneava, em março de 2022, em um evento no Palácio do Planalto: “O problema é meu, a vida é minha. 'Ah, ele não tomou vacina'. Pô, tem gente que quer que eu morra e fica me enchendo o saco para eu tomar vacina. Deixa eu morrer...”.
Um levantamento da agência de checagem “Aos fatos” concluiu que o presidente deu uma média de 6,9 declarações falsas ou distorcidas por cada dia de 2021, o segundo ano da pandemia. O “normal”, desde o início da sua gestão, era um número de 4,3 mentiras ou inverdades a cada 24 horas. Memória para que nunca mais se repita uma tragédia semelhante.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.